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MUNDO DO TRABALHO

Balanço 2023. Mundo do trabalho: Governo federal termina o ano sem regulamentar trabalho por plataformas digitais

Desde as eleições, Lula (PT) defende a regulamentação do trabalho por plataformas, mas termina o ano sem proposições

Campinas (SP) |
Entregadores de APP em Sâo Paulo - Pedro Aguiar

Desde meados de 2014, o Brasil convive com a expansão do trabalho subordinado às plataformas digitais, especialmente as de entregas de objetos e alimentos e de transporte de passageiros, sem nenhum tipo de regulamentação social e trabalhista, o que impacta diretamente nas condições de trabalho, saúde e segurança de milhares de pessoas que encontraram nessas plataformas um modo de sobrevivência diante do aumento do desemprego.

Em pesquisa recente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que, em 2022, o Brasil tinha 1,5 milhão de pessoas que trabalhavam em plataformas digitais e aplicativos de serviços, o equivalente a 1,7% da população ocupada no setor privado. Desse total, havia cerca de 778 mil motoristas por aplicativos, e 589 mil entregadores de alimentos ou objetos. Com uma maioria formada por homens de escolaridade média, os trabalhadores plataformizados tinham jornadas maiores e rendimentos menores do que os trabalhadores não-plataformizados.

Embora as empresas, por meio dos seus algoritmos, controlem todo o processo de trabalho, desde a possibilidade ou não da execução de tarefas até o tempo e o preço, podendo, inclusive, punir os trabalhadores sem qualquer justificativa, o entendimento jurídico e legislativo que ainda impera no Brasil, à contramão de outros países, é que as empresas não subordinam os trabalhadores, mas mediam o interesse entre eles e os clientes demandantes por serviços. Nessa compreensão equivocada, empresas, clientes e trabalhadores estariam em pé de igualdade.

Não é preciso uma análise tão aprofundada para ver o impacto que a ausência de regulamentação promove em nosso país: não são poucos os relatos de trabalhadores que se sentem abandonados pelas empresas e pelo poder público, sem acesso a qualquer garantia mínima de dignidade e conforto. Entregadores sentados nas calçadas e amparados em suas bags, motoristas urinando em garrafinhas d’água, uso de entorpecentes, má alimentação, sono, ferimentos causados no trânsito e marcados na pele, inseguranças e estresse… Tudo isso faz parte do cotidiano desses trabalhadores e da cena urbana que é escancarada em nossa frente, mas que não é levada em conta nas decisões tomadas no interior dos espaços de poder.

Discurso empresarial

O discurso das empresas, calcado na individualização típica do neoliberalismo, e, acrescento, combinado à própria trajetória de exploração desses trabalhadores — de convivência com a precarização do mercado de trabalho brasileiro —, por muitas vezes faz com que esses sujeitos criem uma oposição entre a possibilidade de ter jornadas flexíveis e o acesso aos direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). É preciso desmentir o discurso empresarial de que autonomia é o mesmo que jornada flexível, e que jornada flexível é o mesmo que flexibilização de direitos.

Sendo consideradas empresas de tecnologia, e não de logística ou transporte, e defendendo que os trabalhadores são prestadores de serviços autônomos, e não subordinados, essas grandes multinacionais camuflam, sob o véu da modernidade, condições de trabalho do início do século passado.

Não se sabe ao certo o quanto essas empresas faturam em nosso país, mas uma rápida busca pela internet nos permite estimar a casa dos bilhões de reais. E embora o lucro seja certo e gigante, as empresas defendem que, ao terem reconhecido o vínculo empregatício com os trabalhadores prestadores de serviço, encontrarão problemas financeiros e precisarão abandonar a lucrativa operação no país — um discurso falacioso que, novamente, por vezes também é adotado por trabalhadores e usuários das plataformas —, gerando um senso de “menos pior”: é menos pior tê-las operando aqui, sem nenhuma contrapartida, do que não tê-las.

O governo Lula e a regulamentação

Desde o período da campanha eleitoral que o levou à presidência da república, Lula da Silva (PT) se posiciona favoravelmente à regulamentação do trabalho por plataformas digitais. Tais discursos, no entanto, se tornaram menos frequentes e perderam a tonalidade ofensiva ao longo deste ano, que, a despeito da promessa, termina sem nenhuma proposta de regulamentação.

Apostando no diálogo social, o governo federal criou um Grupo de Trabalho (GT), interno ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), para debater as condições de trabalho e renda dos trabalhadores por plataformas digitais e criar propostas que seriam incorporadas num projeto de lei a ser encaminhado ao Congresso Nacional.

O GT, constituído em maio, contou com 45 membros, divididos entre as representações de trabalhadores, empresas e do próprio governo. A bancada dos trabalhadores foi composta por indicações de centrais sindicais, sindicatos oficiais e extraoficiais e associações, enquanto a das empresas foi composta por indicações de organizações como a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) e do Movimento Inovação Digital (MID).

Com quatro reuniões ocorridas em São Paulo e Brasília, o GT foi encerrado oficialmente em setembro, sem nenhuma proposta de regulamentação. Outras duas reuniões extraoficiais ocorreram desde então, contando com as mesmas representações, para dar continuidade aos debates. Frustrando as expectativas depositadas, conforme algumas lideranças dos trabalhadores apontam, não há, até o presente momento, nenhuma proposição legislativa que vise assegurar direitos aos trabalhadores.

Cumpre destacar que a participação dos trabalhadores por plataformas digitais no GT foi combinada com a contestação por meio de manifestações de rua e da agitação nas redes sociais. Foram realizados breques e manifestações em maio, agosto, setembro e outubro. Além disso, um acompanhamento sistemático de perfis em redes sociais de lideranças e organizações coletivas demonstra a realização de uma campanha de denúncia permanente das péssimas condições de trabalho que são impostas pelas empresas e possibilitadas pela ausência de regulamentação.

O que se desenha para o próximo período é o interesse do governo em criar dois projetos de lei (PL): um destinado aos entregadores e outro aos motoristas por aplicativos. Nessa proposição, trabalhadores que fazem entregas por automóveis ou por bicicletas — os bikers —, e trabalhadores que fazem transporte por motocicletas — os mototáxis —, realidade que faz parte do cotidiano dessa multidão de trabalhadores, situariam-se num limbo. Além desses trabalhadores, estariam de fora da regulamentação todas as demais categorias que cada vez mais convivem com a plataformização do trabalho, como empregadas domésticas, advogados e professores, dentre muitos outros. 

Se, por um lado, a separação entre essas duas categorias de trabalhadores permite assegurar especificidades em projetos de lei próprios, por outro acaba reforçando a fragmentação, isolando os trabalhadores e dificultando a capacidade de se verem como comuns, isto é, como trabalhadores subordinados às plataformas digitais.

Um balanço do GT

Três pontos chamam atenção no debate da regulamentação do trabalho por plataformas digitais e no funcionamento do GT. O primeiro deles é a sua própria natureza institucional: o governo criou esse espaço de diálogo social na expectativa de haver consenso entre os interesses dos trabalhadores e das empresas.
Sabemos, e não é de hoje, o quanto Lula e o Partido dos Trabalhadores apostam em alianças — que se materializam na manutenção de certos discursos e práticas ditas “republicanas”, de respeito à diferença — mesmo quando os diferentes buscam o aniquilamento dos nossos.

Expectativa de consenso entre empresas de plataformas e trabalhadores plataformizados é parte de uma mesma expectativa de consenso entre a preservação de comunidades indígenas e a manutenção dos lucros do agronegócio, entre a promoção da educação de qualidade e o avanço dos conglomerados empresariais da educação etc.

O segundo deles, ainda sobre a natureza do GT, é que o governo assumiu uma postura de “coordenar” as discussões, não declarando exatamente para qual lado a sua proposição tenderia, embora, para fora do GT, houvesse declarações — por vezes polêmicas, feitas pelo ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho (PT) — de que as empresas deveriam se adequar à regulamentação — indicando, assim, uma proposição ofensiva, favorável aos trabalhadores.

O GT surge, e é fato, como uma forma do governo sinalizar que agradará a todos os lados, mas mais que isso: para legitimar uma proposta desconhecida. O governo não buscou revisar e escolher os PLs já existentes — muito, pouco ou nada favoráveis aos trabalhadores —, e tampouco elaborar uma nova proposta, mas criar uma atmosfera de que algo novo sairá do forno, seja lá o que isso represente, que será melhor do que o que temos hoje, fruto de consenso —  mesmo que não seja nem uma coisa e nem outra.

Por fim, apreende-se, por meio das declarações feitas pelo ministro do trabalho e pelo próprio Lula, que a regulamentação irá prever a contribuição previdenciária e garantias mínimas de segurança — elementos pertinentes, sem dúvida, mas ainda aquém do conjunto de demandas que os trabalhadores têm apresentado nesses últimos anos em suas ações coletivas.

Os trabalhadores por plataformas digitais já apresentaram nas reuniões do GT, e sistematicamente formulam e debatem em suas atuações locais, aquilo que consideram o mais adequado no que diz respeito ao acesso aos direitos. A Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos (ANEA), por exemplo, publicou, em fevereiro de 2023 — pouco antes de ingressar no GT —, um programa que sistematiza 12 pontos básicos para a garantia de melhor qualidade de vida e trabalho dos entregadores por aplicativos, em específico, mas que facilmente poderiam ser adotados ao conjunto dos trabalhadores por plataformas digitais.

São eles: a formalização da relação de trabalho; o acesso à previdência social; as garantias de remuneração; a definição de jornada de trabalho e descanso semanal; a responsabilidade das empresas por custos e equipamentos; o seguro de acidentes de trabalho; o auxílio-doença e o auxílio-acidente; garantias contra desligamentos abusivos; melhores condições de trabalho e serviços de apoio; liberdade de associação sindical; direito à informação e transparência dos algoritmos; e mudanças no registro profissional e na carteira de habilitação. 

O governo já sabe o que é melhor para os trabalhadores, e sua insistência por encontrar consenso, sua demora em realizar proposições, e suas dificuldades em manter o discurso ofensivo perante as empresas apontam que, sem luta no próximo período, os trabalhadores correrão o risco de terem rebaixadas as suas condições de trabalho perante uma regulamentação “menos pior”, isto é, uma regulamentação que prevê o mínimo do que as empresas estão dispostas a aceitar, e não aquilo que os trabalhadores desejam.

*Eduardo Rezende Pereira é doutorando em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e militante da Consulta Popular
**As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato Paraná

Edição: Pedro Carrano