Paraná

MUNDO DO TRABALHO

OPINIÃO. Cálices de vinho tinto de sangue: sobre o caso de Bento Gonçalves

Maioria composta por homens adultos, negros e nordestinos, servindo como mão-de-obra altamente precarizada no trabalho

Campinas (SP) |
Segundo o Ministério do Trabalho, 2.575 pessoas foram resgatadas em condições análogaa à escravidão em 2022 - Sérgio Carvalho/ Inspeção do Trabalho

Têm sido repercutido recentemente notícias sobre o caso de Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. Após a fuga e a denúncia de três trabalhadores, foi realizada, na quarta-feira, 22 de fevereiro, uma operação que conseguiu resgatar mais de 200 trabalhadores em condições análogas à escravidão, por meio do envolvimento de agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), da Polícia Federal (PF), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) do Rio Grande do Sul.

Conforme apurado, os trabalhadores, cuja maioria era do estado da Bahia, viajaram até a Serra Gaúcha com a promessa de um salário de R$ 3 mil. Dentre os pontos denunciados, os trabalhadores relataram atraso nos pagamentos e longas jornadas de trabalho, violências físicas e tortura, violência psicológica e ameaças, além da obrigatoriedade de permanecerem no alojamento durante o contraturno e de comprar seus produtos num único estabelecimento, contraindo dívidas que eram descontadas do próprio pagamento.

Os registros fotográficos, amplamente divulgados, mostram a condição estrutural do alojamento: são quartos, banheiros e refeitório mal equipados e sufocantes, com pouca luz natural e circulação de ar, conseguindo dimensionar o alto grau de precarização vivido cotidianamente por essas dezenas de trabalhadores. 

Bento Gonçalves é conhecida como a "Capital Brasileira da Uva e do Vinho”, contando com grandes feiras e eventos e ampla produção, comercialização e exploração turística voltada à vitivinicultura. Os dados do censo de 2017, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dimensionam a produção de uva no município: são mais de cem estabelecimentos agropecuários com 50 pés ou mais, que produziram 2.011 toneladas. O trabalho que envolve a produção de uva é, em sua maioria, realizado por trabalhadores contratados apenas em época de colheita. Para se ter dimensão, em 2017, na área rural bento-gonçalvense, dos 2.928 trabalhadores sem laços de parentesco com o produtor, 2.350 eram trabalhadores temporários.

Os trabalhadores que foram resgatados em Bento Gonçalves eram contratados pela empresa Oliveira & Santana, que prestava serviços de forma terceirizada para as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton. Em notas publicadas após a repercussão do caso, as três vinícolas afirmam que desconheciam as condições desumanas nas quais os seus trabalhadores terceirizados eram submetidos, prestam solidariedade aos mesmos, ressaltam seus compromissos com a sociedade e reforçam que o trabalho análago à escravidão era “um caso isolado”.

Conforme as vinícolas, o contrato terceirizado com trabalhadores de outras regiões do país se justifica pela escassez da mão-de-obra na Serra Gaúcha. Uma semana após o resgate dos trabalhadores, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves afirmou o mesmo que as vinícolas, acrescentando que há "uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”. Em outras palavras, a entidade não apenas exime as vinícolas da responsabilidade pelo trabalho em condição análoga à escravidão como culpabiliza as políticas sociais, tão importantes para a geração de renda e sobrevivência material de inúmeras famílias, pelo caso, desviando, assim, numa mensagem baixa e oportunista, o foco do combate ao trabalho em condição análoga à escravidão e contratos tipicamente precarizados para a possibilidade de gerar emprego local.


Os trabalhadores resgatados receberão fiança e poderão entrar com processos judiciais contra a empresa terceirizada, mas os danos físicos e psicológicos, pessoais e coletivos, certamente permanecerão vivos. O pagamento imediato, conforme decisão da justiça, aos mais de duzentos trabalhadores, é o mínimo, mas está longe de encerrar este caso. Esses trabalhadores serão assistidos de modo integral ao retornarem às suas cidades de origem? Como o poder público de Bento Gonçalves agirá, a partir de agora, diante do caso denunciado? Como o município irá manter o seu título de atração turística, de interesse cultural e comercial, sustentado por essa forma de exploração do trabalho? Irá, levado pelo poder do dinheiro, eximir as vinícolas da responsabilidade deste caso?

É indispensável refletir que, a depender das escolhas dos políticos locais, o conceito do que é “tradicional”, tão caro a Bento Gonçalves, será mais do que cabível aos seus dias atuais: lucro das famílias produtoras, associado ao trabalho escravo e com a conivência das instituições do Estado – uma herança viva dos séculos passados. Precisamos cobrar coletivamente a responsabilização de todas as partes envolvidas direta ou indiretamente, neste caso: empresa terceirizada e vinícolas terceirizadoras, poder público local, entidades patronais e órgãos de regulamentação.

Mas a pergunta que realmente nos move é: como impedir que casos como o de Bento Gonçalves sejam comuns em nosso país? Em 2022, a Inspeção do Trabalho, vinculada ao MTE, resgatou mais de 2,5 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão, em um total de 462 fiscalizações. Os trabalhadores de Bento Gonçalves são um retrato desta realidade: a maioria é composta por homens adultos, negros e nordestinos, servindo como mão-de-obra no trabalho rural.

Tais dados, que elucidam a permanência do trabalho análogo à escravidão no Brasil, não podem ser dissociados do projeto político neoliberal, vigente nos últimos anos, que tem como centro o sucateamento das instituições públicas, a desproteção dos direitos da classe trabalhadora e o aumento da exploração do trabalho e da miséria. A reforma trabalhista de 2017 e a ampliação da terceirização como modo de contratação, promovidas pelo governo de Michel Temer (MDB), e a extinção do MTE, feita como primeiro ato do governo de Jair Bolsonaro (PL), em 2019, dentre outras medidas, impactaram e fragilizaram o funcionamento das instituições que fiscalizam as relações de trabalho e que combatem ações com o trabalho análogo à escravidão.

Importante destacar que o atual governo retomou o MTE e tem se pronunciado sobre o caso de Bento Gonçalves, mas é necessário, para evitar que casos como esse sejam comuns, que seja retomado, no discurso e na agenda governamental, bem como no debate público, o fortalecimento das instituições do trabalho combinado tanto com a revogação da reforma trabalhista quanto com o avanço na proteção dos direitos sociais e trabalhistas. Ter direitos ampliados e garantidos deve ser uma bandeira prioritária para o desenvolvimento econômico e social do nosso país.

Migração com promessas falaciosas de emprego e melhoria de vida, trabalho em condição análoga à escravidão, precarização social, terceirização do trabalho, culpabilização do setor patronal por políticas públicas de assistência social… Essa conjunção de elementos está presente historicamente em nosso país e devem ser extintas se tivermos compromisso com o nosso povo. É preciso, no tempo presente, corrigirmos a rota para evitar que casos como o de Bento Gonçalves continuem existindo no Brasil.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Pedro Carrano