Paraná

HERANÇA MALDITA

Entrevista | Os impactos de Temer e Bolsonaro sobre a assistência social

Entrevista com a assistente social Elaine Batista sobre falta de políticas públicas e erros no despejo da Povo Sem Medo

Curitiba (PR) |
Bolsonaro piorou o cenário de gestão do SUAS, que é co-financiado. - Arquivo pessoal

Os governos Temer e Bolsonaro realizaram menos investimentos, redimensionaram e prejudicaram as políticas públicas na área de assistência social e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Na ponta, em ações recentes, organismos como a Fundação de Ação Social (FAS) foram criticados pela sociedade civil pela forma como atuaram nos procedimentos de reintegração de posse na área Povo Sem Medo, no Tatuquara, quando não fizeram o devido acompanhamento da população, quando deveriam atuar para evitar “provável insegurança alimentar e outras identificadas numa avaliação anterior, cuidadosa e preventiva. E não da forma como foi realizada, no momento da ação de despejo, sendo a assistência social confundida com os atores que executaram a ação”.

A avaliação é de Elaine Batista, assistente social, que há dez anos atua no SUAS. Possui especialização e mestrado interdisciplinar com a discussão sobre políticas públicas, participação social e população em situação de rua. Representa o CRESS no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), gestão 2022-2024.

Brasil de Fato Paraná. Quais os impactos dos governos Temer e Bolsonaro para a Assistência Social, para o SUAS e para políticas públicas na área?

Elaine Batista. Se levarmos em consideração que a política de assistência social é aquela que cuida, protege, ampara e inclui as famílias e indivíduos num contexto de vida com garantias de dignidade e autonomia, chegamos à conclusão que tanto Temer quanto Bolsonaro optaram por uma orientação necropolítica para executar a Lei orgânica da assistência social (LOAS). Temer com o Teto de Gastos (PEC 241) impossibilitou a melhoria em reordenamentos do aparato estatal que executa os serviços do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Uma rede complexa, sistematizada de escalonamento da proteção social, para a prevenção e intervenção nas situações de violência. Num sistema capitalista como o nosso, o aumento das expressões da questão social, ou seja, o empobrecimento das famílias devido ausência de renda, é previsto que se esgarcem as relações sociais, tendo como sintoma piora das violações de direitos. Como aumentar em contrapartida a rede de cuidado e proteção, se temos impossibilidades de aumentar recursos? Bolsonaro piorou o cenário de gestão do SUAS, que é co-financiado. Ou seja, seu orçamento é partilhado entre os entes federados, com previsão de repasse por piso de complexidade da política de forma regular. Já com o teto de gastos, o governo anterior descontinuou os repasses, implicando submissão dos governos a emendas parlamentares. Decisão que corrobora com as alianças políticas e faz manutenção de relações clientelistas, um ranço que a assistência social ainda tem se desafiado romper. Ou seja, ele quis colocar a assistência social como cabresto para uma população já extremamente empobrecida, o que facilita a manipulação das massas que dependem, por vezes, exclusivamente da assistência social. Para isso ele alterou as estratégias de acompanhamento familiar no programa de repasse direto de renda. O Auxílio-Brasil não se pautava na equidade como princípio para inclusão e permanência no programa, o que facilita a desigualdade de renda no interior de um programa desta natureza. Além de ter desarticulado a responsabilidade das demais políticas para as famílias partícipes do programa, o que impacta no seu efeito, tal como o Bolsa-Família previa. Fato é que desarticulação das políticas sociais nestes governos desmobilizou a complexa rede de proteção social que, ainda com limitações importantes, estávamos construindo. A lógica e cultura do ofertar bem estar social às famílias trabalhadoras, no sentido de garantir possibilidades de moradia, alimentação, renda, educação e saúde, não se tratou somente de atacar a seguridade social (assistência social, saúde e previdência), mas sim desestabilizar um sistema de proteção que é intersetorial, e se fundamenta na cultura do cuidado com o povo, com garantias de autonomia, interdependência e inclusão social. Os impactos da intervenção que Temer e Bolsonaro fizeram vemos no cotidiano. Seja o aumento da população em situação de rua, que, a exemplo de Curitiba, teve sua rede de equipamentos sociais constrangida antes mesmo da pandemia, em um reordenamento justificado pela pelo corte de orçamento, a Fundação de Ação Social (FAS) fechou centros de referência da assistência social, equipamento de proteção básica. Na pandemia, houve a necessidade de fechamento de três Centros Pop - que atendem exclusivamente a população em situação de rua. Ou seja, a linha de cuidado social da população foi fraturada. Sabemos que os reordenamentos foram necessários devido aos impactos da PEC do Teto de Gastos. A saber, o ano de 2023 ficará marcado com o menor orçamento do SUAS desde sua implantação, em 2014, a porcentagem de responsabilidade do governo federal vem diminuindo, e segue no mesmo compasso dos governos estaduais. O constrangimento da rede de proteção que fica nos territórios tem expressões variadas: desde a exaustão dos trabalhadores sobre essas políticas, que são desafiados pela inoperância e ausências de recursos, e a comunidade que sofre com filas de espera, demora de inclusão na política de transferência de renda e acesso aos benefícios eventuais, a saber aquela que garante o alivio da insegurança alimentar: a cesta básica. Intervir no orçamento público das políticas sociais, sabemos, é a primeira ação dos governos neoliberais quando o sistema capitalista está em crise. Esta é a necropolítica: acirrar a vida, tornando-a insegura.

Você participa do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), no qual houve ponto de pauta sobre o despejo forçado da ocupação Povo Sem Medo. Como você tem avaliado o papel da Fundação de Ação Social (FAS) nesse tipo de situação? Uma vez que, com a pandemia, aumentou o número de ocupações em Curitiba e o risco de mais despejos.

Importante esclarecer que o CMAS recebeu o assunto sobre o despejo em setembro de 2022 e, em consenso com o segmento governamental, deliberou que a FAS estaria à frente de articular, junto com as demais secretarias que compõem o CMAS, ações para o melhor atendimento daquela comunidade. A saber, fazem parte deste conselho de direitos a Cohab, secretaria municipal da saúde, da educação e outras. Porém, a gestão municipal não teve responsividade com esta deliberação e, sem atuar com planejamento intersetorial, negligenciou até mesmo o Decreto Municipal 712 de 2022 que institui Grupo de Trabalho (GT) permanente para gestão de questões de ocupações irregulares. Grupo este já existente no CMAS, na época da discussão da comunidade Povo sem Medo, mas, pelo que se percebe, não era de conhecimento dos atores governamentais a existência deste GT. A FAS reclama para si que seu papel numa ação de despejo é secundário, uma vez que se trata de demanda de moradia. Porém, sendo a assistência social uma política que deve atender a quem dela precisar, em contexto de vulnerabilidade social e violações de direitos, importa que as decisões da gestão desta política estejam implicadas em articular os setores da prefeitura para prevenir o aprofundamento do contexto de risco social. De fato, a FAS não deve ser a protagonista na ação de despejo, mas deve assumir seu compromisso de garantir proteção social, segurança que é atravessada em cenários como este em que as famílias são retiradas de suas moradias sem garantias. O GT mencionado, de acordo com o decreto que o instituiu em 2014, o mesmo é coordenado pela Secretaria do Meio Ambiente, e a FAS em julho de 2022 alterou seus membros. Ou seja: sabia da existência de um GT dessa natureza e mesmo assim deliberou no CMAS a criação de um grupo o qual a gestão da assistência deveria tocar. Portanto, sabe-se há muito que seu papel é fazer parte de uma agenda intersetorial, ratifica esta necessidade e mesmo assim não consegue dar conta de um planejamento eficiente que responda a sua obrigação de executar medidas para garantir segurança socio-assistencial às famílias. Os atores que representam a sociedade civil no CMAS se pronunciaram imediatamente sobre a ação de despejo diante da gestão da FAS. Porém, apenas em reunião extraordinária tivemos retorno da qualidade das ações e permanecemos cuidando do assunto para que seja resguardado os direitos das famílias, bem como, planejamento para que não haja no futuro, a participação da assistência social da forma como atuou no passado.

Ainda sobre o despejo da Povo Sem Medo, sabe-se que cerca de 240 pessoas ao final da noite ficaram sem destino, muitas recusaram-se a ir para abrigos oferecidos pelo município. O que poderia ter sido feito de maneira diferente?

A competência do GT mencionado é justamente avaliar ações para a segurança das famílias. O que não foi realizado. Embora se tenha conhecimento de que algumas famílias já eram conhecidas pelo CRAS, sabemos que no dia da ação é que foram identificadas para posterior oferta de acolhimento institucional. Famílias ficaram sem atendimento, seja pela recusa da oferta, ou pela ausência da mesma. Ambos efeitos expressam a ineficácia da assistência social e COHAB em garantia à segurança de abrigo/moradia. A rede de acolhimento institucional da FAS não é destinada para atender situações de calamidade como esta, além de não ter estrutura para garantir acolhimento à famílias inteiras. E foram núcleos como este que acabaram sendo atendidos por seus familiares e/ ou entidades parcerias dos movimentos sociais. A negativa das famílias também decorreu de não sentir identificação com a dinâmica dos acolhimentos da FAS. Penso que se houvesse tido uma avaliação responsável, não somente pela FAS, mas sim intersetorial, teriam identificado o perfil de cada família e feito um plano de despejo humanizado, usando de alternativas como locação não onerosa, aluguel social e auxílio moradias; recursos que devem ser afiançados pela COHAB. E no âmbito da FAS afiançar a responsabilidade de acompanhamento socio-assistencial, com inclusão no CADU e acesso aos benefícios eventuais para aliviar a provável insegurança alimentar e outras identificadas numa avaliação anterior, cuidadosa e preventiva. E não da forma como foi realizada, no momento da ação de despejo, sendo a assistência social confundida com os atores que executaram a ação.

 

Edição: Lucas Botelho