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Artigo | Dia da Agricultura Familiar celebra a produção de alimentos saudáveis

Que no mundo pós-pandemia possamos alimentar e nutrir territórios, corpos, mentes, lutas e resistência

Curitiba (PR) |
"A relação sociedade-natureza, bem como o atual modelo desenvolvimentista estão postos em xeque" - Igor de Nadai

Este ano de 2020 está sendo marcado por desafios das mais distintas proporções e nas diferentes dimensões da vida. A pandemia global causada pela Covid-19 tem desencadeado, no mundo inteiro, consequências sociais, ambientais, econômicas e alimentares que, certamente, influenciarão as práticas cotidianas de ser, estar e fazer. Entre essas práticas, pode-se destacar a produção e o consumo de alimentos que, em que pese a sua complexidade (para produzir e comer), esta relação já demonstra sinais (positivos e negativos) de mudanças.

Em 19 de março deste ano, o Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CFS) fez uma constatação que vem sendo reafirmada ao longo dos últimos meses e fez a seguinte declaração: “Como resultado dessas mudanças, tanto em termos de abordagem da doença quanto da consequência econômica mais ampla da disseminação da doença, a disponibilidade de alimentos está sendo afetada no curto e no longo prazo. O acesso aos alimentos também é comprometido, especialmente para aquelas pessoas que trabalham em setores que provavelmente reduzirão empregos devido à recessão e também para os pobres que provavelmente ficarão em pior situação. É provável que a nutrição seja afetada à medida que as pessoas mudem suas dietas para incluir alimentos mais baratos, pré-embalados e disponíveis nas prateleiras (que podem ser menos nutritivos) na medida em que frutas frescas e os vegetais ficam menos disponíveis devido à demanda exacerbada em decorrência de pânico e a interrupções nos sistemas alimentares”.

É nesse cenário pandêmico que celebraremos o Dia Internacional da Agricultura Familiar. Comemorado no dia 25 de julho, neste ano de 2020, a crise sanitária global – que muito se relaciona com o atual sistema alimentar de produção industrial, cujos valores com a vida são os que menos “valem” -  impõe ao mundo reflexões acerca das suas práticas e, assim, quem sabe poderá convergir em algumas mudanças. As realidade dos (e nos) territórios estão sendo rapidamente alteradas. A relação sociedade-natureza, bem como o atual modelo desenvolvimentista estão postos "em xeque".

No campo e nas cidades, as pessoas estão lidando com situações extremas de adaptação. Diferentes autores e autoras afirmam que em um contexto de crise, também recrudescem e se intensificam os processos de expropriação, se aprofundam e se intensificam as desigualdades e as iniquidades. Mas, também – nesta, como em outras crises – foram/são potencializados processos que unificam e transformam positivamente realidades antes quase que “imutáveis”.

Ao celebrar o Dia Internacional da Agricultura Familiar visibilizamos, nos mais distintos territórios, mulheres e homens que produzem comida (de verdade), que alimentam e nutrem não apenas o corpo com seus macro e micronutrientes, mas que alimentam e nutrem, sobremaneira, processos de lutas e enfrentamentos que fortalecem as resistências cotidianas e culminam nas resiliências para seguir existindo.

A produção de alimentos que se originam destes coletivos – afinal, são várias cooperativas e associações da agricultura familiar, ou ainda de grupos formais e/ou informais das mais diversas identidades sociais – e aqui, menciono a definição ampliada do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional/CONSEA (extinto pelo atual governo em janeiro de 2019) que define povos e comunidades tradicionais como sendo “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos por tradição” – são esses grupos/povos que neste contexto austero vêm promovendo um enfrentamento combativo e eficiente às mais distintas formas de violações, sendo a mais grave, a fome.

A partir de ações solidárias, novas dinâmicas sociais vêm sendo criadas. Redes de solidariedade, protagonizadas por esses grupos/povos – especialmente àqueles que se caracterizam como sendo movimento do campo, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) – vem estabelecendo - nos diferentes territórios do campo e das cidades – verdadeiras teias conectadas por um digno valor: dar/doar comida a quem tem fome. Essa (e outras ações) vem assumindo um caráter social pedagógico: a oportunidade de nós, seres humanos, olharmos em nosso entorno, nos importarmos com o coletivo, e assim, valorizarmos as lutas e os enfrentamentos diários em prol do acesso à terra e, por consequência, do acesso à comida.

Celebrar o Dia Internacional da Agricultura Familiar é celebrar a produção de alimentos saudáveis!

Celebrar a produção de alimentos saudáveis é celebrar a Vida!

Celebrar a Vida é celebrar a saúde (das pessoas e do ambiente)!

Celebrar a saúde é prover e promover o acesso à comida! Mas para isso é preciso garantir o acesso à Terra!

É da Terra, regada com água, lágrimas e suor de mulheres e homens, que brota o alimento que nutre vidas.

Que possamos refletir sobre os valores que movem este mundo. Como diz Érico Andrade (2020), “... não existe o mundo pós-pandemias. Existem mundos”.

Que no mundo pós-pandemia possamos alimentar e nutrir territórios, corpos, mentes, lutas e resistência e, assim, construir novos mundos.

Islandia Bezerra é professora Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Paraná (Dnut/UFPR), presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia)

Edição: Lia Bianchini