Paraná

MEMÓRIA E VERDADE

A ditadura militar marcou e prejudicou a vida dessa família

Familiares de Ildeu Manso Vieira, dirigente do PCB no Paraná, não querem esconder a memória de um período de torturas

Curitiba (PR) |
Nair escreveu carta à Comissão Nacional da Verdade, em 2012, e até hoje aguarda compensação pelos crimes que sofreu da ditadura - Pedro Carrano

“Depuro/ elemento por elemento / estou quase cego dessa mineração/ Mas ainda posso saber, ainda posso alcançar”, Alípio Freire, poeta e preso político.

“Que a mano herida que suelta sus armamentos/ Hay que enamorarla con la mía o todas que los van a alzar”, Daniel Viglietti

 

 

Os 60 anos do golpe e do início da ditadura militar no Brasil representam um turbilhão de sentimentos, individuais e coletivos. Um verdadeiro trauma que pesa até hoje sobre a política nacional, e, ao mesmo tempo, sobre a vida das famílias que sofreram com a tortura, desaparecimento ou assassinato de pessoas da família.

Mãe e filho, Nair Fernandes Vieira, 88 anos, e Henrique Manso Vieira, 64 estão sempre juntos nas lutas sociais, com o filho caminhando lentamente na toada dos passos da mãe. Se os passos são lentos, o ânimo é uma marca da dupla mãe e filho. A vontade de narrar sua história e pautar o tema da memória e verdade são permanentes.

Ildeu Manso Vieira foi marido de Nair, com quem teve quatro filhos, todos jovens e crianças no episódio de sua prisão.

Do sul de Minas Gerais, em Alfenas, onde trabalhou em Furnas no início do período da repressão, Ildeu fugiu – numa charrete, afirma o filho -, para o Rio de Janeiro. Atuou no sindicalismo bancário e, mais tarde, partiu para Maringá, norte do Paraná, em meio à clandestinidade, para trabalhar na terra. No Paraná, foi secretário geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB) num período em que a perseguição recaiu fortemente sobre o “Partidão”.

“Meu pai veio para Maringá, a trabalhar com terras. Quase um ano depois, ele nos chamou do Rio e fomos para Maringá. Conseguimos um pedaço de terra, em 1968, na época mais perigosa, arriscando a família e tudo que a gente podia”, narra Henrique.

O filho recorda as advertências que o pai sempre trazia consigo, preparando a família para a chance de prisão. “Se o pai um dia sumir, vocês sabem que tem que cuidar de vocês. Ele falava bastante da colônia Cecília, explicava sobre como viemos parar aqui”, diz.

As memórias são abertas, como fraturas expostas, para esta família. “Tenho documentos que ainda não conseguimos mexer”, confessa Henrique. Para ele e mais três irmãos, o peso da prisão do pai, uma grande referência, ficou marcado até os dias de hoje.

“O cara que é teu grande ídolo, torturado, e meu irmão mais velho - Iudeu Manso Vieira Jr – foi pego junto com o pai, em frente à rodoviária. Com 17 anos, presenciou tortura dele”, afirma.

Ildeu Manso Viera, que faleceria nos anos 2000, deixou, segundo a família, um diário com mais de 1600 páginas e a publicação de um livro, “Memórias Torturadas (e Alegres) de um Preso Político (Editora governo do Paraná, 1991).

Prisão. Tortura

Vieira foi preso em 14 de setembro de 1975, no marco da Operação Marumbi no Paraná, que prendeu outras 100 pessoas sob o argumento de organizar o PCB no estado. A detenção aconteceu seis anos depois do assassinato de Carlos Marighella, da ALN, e quatro anos depois da emboscada contra Carlos Lamarca, VPR.

Com isso, as organizações político-militares de oposição à ditatdura já estavam fragmentadas e derrotadas. A resistência contra a ditadura renasceria apenas com as mobilizações dos metalúrgicos no ABC e com os movimentos da sociedade civil contra a carestia de vida, ao lado da forte ação social da Teologia da Libertação.

“Um mês depois da prisão do meu pai, Herzog é assassinado, no dia 25 de outubro. Já estávamos em Curitiba há uns quatro anos quando o pai foi pego, no marco da operação Marumbi, no Paraná, Bandeirantes em São Paulo, Barriga Verde em Santa Catarina”, resgata. Na análise de Henrique, o assassinato brutal do jornalista “Vlado” no cárcere gerou maior pressão internacional sobre o governo Geisel, que havia assumido em 1974.

O auge é o início do declínio. A prisão de Iudeu coincidiu com o começo das primeiras fissuras no poder da ditadura militar. Entre 1975 e 1978, a família o visitava no antigo presídio do Ahú, onde presos recebiam também o apoio de Irmã Araújo, fundadora mais tarde do Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo (Cefuria).

Nair recorda a violência com que a casa foi revistada quanto da prisão do marido. E dos primeiros quarenta dias de prisão, quando não faziam ideia de para onde pai e filho haviam sido levados. “Tive a minha máquina de costura destruída em casa”, relata.

Sem saber do pai

Passada a epopeia de 40 dias em quartel da polícia militar, com a família sem acesso a informações, e após os três anos de cárcere, a família recorda que a saída da prisão não mudou o compromisso político de Vieira, porém deixou marcas profundas em todos.

“Ele parecia que tinha envelhecido cem anos”, recorda Nair. “Ainda recordo quando nos chamaram para primeira visita na Polícia Militar, os filhos viram o impacto emocional, físico e psicológico, voltamos depois de um tempo a visitá-lo num espaço menor, onde os presos estavam numa grande sala, com colchonetes no chão”, recorda Nair.

Neste momento, mãe e filho cobram do governo Lula que a memória do período venha à tona, ainda mais em contexto quando o autoritarismo e os ataques contra a democracia, vistos no dia 8 de janeiro de 2023, ganham força. “Estamos vendo que não há interesse de abrir a Comissão da Verdade”, lamenta Henrique.

Expectativa e decepção com ausência de debate do governo federal

Mãe e filho acham que a data de primeiro de abril de 2024, que marca os 60 anos do golpe militar, deveria abrir espaço para reflexões, memória e educação política sobre um período que constantemente tenta ser repetido. E, a exemplo de países vizinhos como a Argentina, não deveria haver anistia para os criminosos.

“Me decepcionei um pouco (com Lula) por ter cancelado as atividades dos 60 anos. Mas te digo que é uma incógnita. Porém, não sabemos o que ele está estudando, afinal, não dá ponto sem nó”, comenta Nair, uma senhora que segue participando ativamente de espaços políticos e ainda acredita na memória e na verdade como algo possível.

“Há uma insatisfação grande – participamos do movimento ainda na época de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, que determinou o reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte de 136 "desaparecidos" políticos”, afirma Henrique.

Entre sonhos e pesadelos, Nair e Henrique seguem caminhando, a passos lentos, como o sonho daquela música de Aldir Blanc e João Bosco, equilibrando a esperança. Henrique conta que as artes marciais o ajudaram muito a lidar com aquele período. “Meus irmãos se envolveram muito em política, mesmo com o trauma, e se inseriram em grêmios estudantis”. Nair seguir firme acompanhando espaços de militância social.

Contam ainda que nos dias finais de vida, enfermeiras relatavam que o pai murmurava ainda algumas frases, que elas não entendiam. Porém, a família sim. Afinal, ele diza: “Eu só queria uma sociedade mais justa”.


Para Henrique, a prisão do pai ocorreu no mesmo contexto do assassinato de Vlado, o que gerou pressão sobre o governo militar / Pedro Carrano

Edição: Mayala Fernandes