Em plena capital de nosso país vizinho, que escolheu para sua atuação em políticas públicas e direitos humanos, a advogada curitibana Andressa Caldas traz as memórias recentes de resistências feitas - mesmo de longe. E mesmo tão perto.
Da organização da comunidade brasileira no período Bolsonaro à memória do crime do assassinato contra a vereadora Marielle Franco. A militância e o pensamento crítico sempre marcaram a atuação desta advogada e defensora de direitos humanos. Caldas relembra que, na data do 14 de março, ao lado dos trabalhadores do metrô de Buenos Aires e do coletivo de brasileiros atuantes no país (Coletivo Passarinho), uma das estações passou a se chamar simbolicamente, naquela data, Marielle Franco.
Caldas foi indicada recentemente para a diretoria executiva do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul. A equipe ela já integrava, desde 2015, antes na condição de Diretora do Departamento de Relações Institucionais.
A sede do instituto fica em Buenos Aires, onde a defensora de direitos humanos escolheu como local de moradia, trabalho e militância, há oito anos. O atual mandato finaliza em 2024 e é do argentino Remo Carlotto. O Instituto tem o objetivo de ajudar a traçar políticas públicas, dialogar com as entidades da sociedade civil e de direitos humanos, pensar políticas a partir de experiências positivas dos países integrados. Mas, durante a conversa online, o olhar da advogada não perde de vista o tema que a constituiu ao longo dos anos: “Sigo sendo uma defensora de direitos humanos”, afirma.
“O Instituto ainda é pouco conhecido, estou entusiasmada para ampliar, ampliar o conhecimento, ser uma ponte entre Estado e sociedade, desde uma construção do Sul, Sul Global, região mais desigual do planeta”, aponta Caldas.
Olho do furacão
A repercussão da indicação de Caldas para o novo posto se deu em duas frentes.
Primeiro, pela escolha de uma mulher para o cargo, algo que o governo Lula vem enfrentando: exigência de movimentos sociais por representatividade nas diferentes instâncias das instituições. E, a principal repercussão se dá, sobretudo, pelo fato de a Argentina viver uma encruzilhada histórica com a eleição do presidente neofascista Javier Milei, colocando uma nuvem de incertezas sobre as políticas do país. Não será, então, tarefa fácil: Caldas está no olho do furacão, frente a frente talvez com o processo mais incerto neste novo ciclo de governos na América Latina.
Com mestrado em Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Londres (2006), as leituras dos autores do continente estão sempre nas viagens e na mesa de cabeceira. Atualmente, cita "Geopolítica del Vivir Bien", do atual vice-presidente boliviano David Choquehuanca, ressaltando também a importância da incorporação definitiva e recente desse país ao Mercosul, com o aporte da organização popular, cultura e políticas públicas voltadas ao povo.
Referências iniciais
Porém, antes de tudo isso, no início, Andressa recorda que sua formação se deu numa conjuntura “a quente”, no final dos anos 90, ainda na extensão do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), com o professor José Antônio Peres Gediel, quando teve contato com a Comissão Pastoral da Terra (CPT-PR) e com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em pleno período de ofensiva do governo Jaime Lerner para acabar com o movimento no estado – com direito a assassinatos de camponeses e propaganda escandalosamente anticomunistas na TV. Caldas acredita que sua formação em direitos humanos se fortalecem neste momento.
O pai de Andressa, falecido há poucos anos, também foi uma referência forte de politização para ela e para as duas irmãs, a jornalista Ana Carolina Caldas, e a militante e educadora Andrea Caldas, todas elas com destaque pelo forte ativismo nas suas áreas.
“A trajetória da defesa dos direitos humanos, latino-americanista, vem de casa, da informação familiar, meu pai ouvindo Mercedes Sosa, na vitrola, conectado com os temas da América Latina, muito crítico à subjugação do nosso continente ao imperialismo. Nossa referência de militante, estudioso, leitor de livros e notícias, de esquerda – sempre muito atento ao que estava acontecendo”, recorda.
Instabilidade mundial, necessidade de articulações regionais
Caldas defende que, neste momento de instabilidade e crise mundial, que impacta o nosso subcontinente, o tema do fortalecimento de blocos regionais, como é o caso do Mercosul, ganha relevância.
A avaliação da especialista em direitos humanos é que o bloco completa 32 anos. Porém, a construção de uma integração no tema das políticas públicas é mais recente. E necessária. Um Mercosul não apenas econômico, como aponta.
“No caso do Mercosul, assume maior relevância, a partir do mercado comum, ações do ponto de vista comercial e econômico, mas também a partir de uma construção de vinte anos de um Mercosul político e social, com patamares de políticas sociais”, pensa.
Ao lado da construção de políticas públicas, Caldas recorda que também foi construído, com sua participação, o Foro de Participación Social, um espaço de diálogo com organizações da sociedade civil. “A experiência do Brasil é referência no mundo em espaços de participação social. Foi nesse sentido que criamos, mas com a compreensão também de que, em nossos cursos de capacitação de construção de políticas públicas com Estados, há um princípio transversal na aplicação de políticas públicas, com enfoque em direitos humanos. De forma que a gente construa no Mercosul políticas públicas com esses fundamentos de participação social”, aponta.
Diante da esfinge: o fator Milei
Poucos dias antes da notícia da nomeação para o cargo, a Argentina vivia um impasse histórico, que certamente seguirá se arrastando. A balotage (segundo turno) opôs o peronista moderado Sergio Massa, ministro da economia de Fernández, que não conseguiu superar a crise deixada pelo neoliberal Mauricio Macri, contra o neofascista, intitulado libertário, Javier Milei, lançando mão de discursos na contramão da atual realidade do país.
Milei esbravejava contra a China, o Brasil, o Brics. Já nos seus primeiros toques na bola do novo governo, sinalizou endurecimento contra protestos, em um país de forte organização sindical. Ou seja, Caldas assume em um momento difícil, mas defende que há um patamar de políticas que não se derruba tão facilmente.
“É cedo para avaliar como será a interlocução com o governo da Argentina, mas há uma dissonância entre o que se propaga e o que acaba sendo realizado, quando uma força política assume esses governos, é importante resgatar e reforçar compromissos comerciais e contratuais assinados”, avalia.
Referência nas políticas públicas, memória e justiça
Andressa ressalta que a Argentina é referência nas políticas de memória e justiça, bem como em políticas públicas direcionadas à população idosa e também na séria questão migratória. “Mundialmente, por exemplo, o país foi construtor de instâncias, com grupo de trabalho da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre desaparecimentos forçados, fruto da mobilização na Argentina”, afirma.
“Anti-Operação Condor”
No fundo, no resumo da defensora de direitos humanos, o Instituto cumpre papel de contraposição ao que os povos de Nuestra America conhecem e já não querem: operações de inteligência como Condor, na qual o governo dos EUA coordenou e articulou as ditaduras em Nuestra America nos anos 60 e 70, é experiência que recebe crítica e aponta a necessidade de construção da integração entre os povos. “O Instituto foi criado com uma ideia forte de ‘anti-condor’, as máximas autoridades usaram essa ideia símbolo”, sintetiza.
A visão sobre nosso continente é no marco da integração dos povos, que vai dos sonhos de Eduardo Galeano, passando por Domitila Chungara, e tantos outros escritores, lutadores e lutadoras do povo. “Cada vez mais o continente não pode ser considerado de exportação de bens primários e recursos, neste sentido, também olhar o que tem construído do ponto de vista de políticas públicas, sociais, migratórias, de mobilidade humana, das pessoas idosas. A Colômbia é referência nas experiências interessantes de combate à discriminação de áreas quilombolas. Envolve uma correlação de forças, mas devemos olhar para o Mercosul de forma que não somos uma região formada por republiquetas", defende.
Por enquanto, Andressa Caldas finaliza a conversa com um objetivo que segue sendo central - e oxalá fortalecida no próximo ano: "Que a região seja de livre circulação de pessoas, não só das mercadorias".
O que é? Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul
O IPPDH, criado em 2009, tem como missão apoiar os países do bloco no desenho e na implementação de suas políticas de direitos humanos. O Instituto também apoia as reuniões de autoridades do Mercosul sobre direitos humanos, afrodescendentes, povos indígenas e gênero.
Edição: Lia Bianchini