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Foz do Iguaçu

Jovem executado pela PM teria gritado antes de morrer que “não era bandido”

Testemunha muda versão e não compromete autores do assassinato; especialistas defendem câmeras em policiais

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Manifestação cobra punição por morte de Ismael, jovem assassinado pela PM em Foz do Iguaçu - Bruno Soares

Mensagem de áudio enviada por uma testemunha do assassinato por policiais do jovem Ismael Moray Flores, de 19 anos, indica que a vítima teria suplicado por sua vida instantes antes de ser morta na noite de 27 de abril passado, em Foz do Iguaçu, no Oeste do Paraná. “G*, deu um monte de tiro. A gente ouviu o barulho dos carros correndo e tals. Eu ouvi alguém gritando que não era bandido. E, agora, a gente foi ver, era o Ismael. Mataram ele na frente de casa”, disse aos prantos a testemunha que, por motivo de segurança, não terá sua identidade revelada.
Conforme apurado pela reportagem, a mensagem de áudio foi encaminhada pela testemunha de dentro do seu quarto, momentos após ouvir parte da movimentação que se dava nas redondezas da residência em torno da ação policial finalizada com duas pessoas mortas, após perseguição a uma dupla de assaltantes no bairro Porto Meira, região periférica situada no extremo sul da cidade.
A análise preliminar de imagens de câmeras de segurança instaladas próximas ao local da morte de Ismael mostram os minutos finais da vítima. Caminhando sozinho, por volta das 23h, rumo à casa que dividia com seu companheiro, o jovem virou uma esquina e se deparou com a motocicleta ocupada por dois assaltantes em fuga da PM. Ao terem o veículo parado, o piloto se rendeu e o outro indivíduo fugiu em direção ao caminho seguido por Ismael, minutos antes.
As imagens não gravaram a abordagem que terminou com a morte de Ismael e do suspeito que tentou fugir. De acordo com informações do Instituto Médico-Legal (IML), Ismael foi morto por cinco disparos de arma de fogo. Um atingiu a cervical e saiu em seu rosto, outros quatro foram no tórax, atingindo um dos ombros e axilas. Sem haver troca de tiros com os assaltantes, o suspeito que tentou fugir, de 25 anos, também foi baleado e morto no local.
Segundo a PM, sete policiais envolvidos na ação passaram por uma avaliação psicológica, foram afastados e tiveram as armas apreendidas. O procedimento é padrão em situações de confronto. Eles devem permanecer afastados até a conclusão do inquérito militar instaurado. A expectativa é de que a Delegacia de Homicídios conclua o inquérito nos próximos dias.

Mudança de versão
Ao ser chamada para prestar depoimento perante a Delegacia de Homicídios de Foz do Iguaçu, a testemunha que enviou o áudio sobre os minutos finais de Ismael mudou sua versão inicial e não confirmou ter ouvido a vítima suplicar clemência antes de ser assassinada sem motivo. “O que eu tinha para dizer eu já disse. Não quero mais falar sobre isso”, resumiu a testemunha ao Brasil de Fato Paraná na tarde da sexta-feira (26), sem detalhar o que teria motivado sua mudança de versão entre o momento que enviou o áudio e o depoimento prestado na delegacia.

Câmeras nas fardas
O episódio de violência policial em Foz do Iguaçu foi denunciado pelo deputado estadual Renato Freitas (PT) após visitar a família da vítima em 3 de maio. Na oportunidade, defendeu o uso de câmeras na farda da PM e divulgou um vídeo ao lado da mãe de Ismael, Clair Flores, na rua ainda manchada com o sangue da vítima.
“Estou aqui na região do Porto Meira, em Foz do Iguaçu, neste local manchado de sangue, do sangue dos inocentes, neste caso do sangue do Ismael Flores, covardemente assassinado pela Polícia Militar a metros de sua casa. Estamos revoltados, clamando por justiça e para que a população de todo o Paraná se sensibilize, se comova, e exija a política das câmeras corporais. Porque se o policial que cometeu esta covardia estivesse com uma câmera, registrando o que de fato aconteceu, ele pensaria duas vezes ao matar um inocente como se não fosse nada", enfatizou o deputado, ao destacar a falta de assistência do Estado aos familiares da vítima.

Perdão, sim. Justiça, também
Passado exatamente um mês da morte de Ismael, familiares afirmam que até o momento nenhum representante do poder público, seja de Foz do Iguaçu ou do Estado do Paraná, entrou em contato para prestar qualquer tipo de solidariedade ou assistência. “Meu filho foi assassinado por quem deveria protegê-lo, e o único apoio que tivemos foi do deputado Renato. Com certeza, se tivesse uma câmera gravando a ação, o policial que matou meu filho iria pensar melhor antes de fazer isso. Eu quero dizer que em nome de Deus eu perdoo quem fez isso, mas a Justiça dos homens existe e precisa ser feita. Esses policiais devem ser punidos para que mais inocentes não morram”, defendeu Clair, a mãe.
Para o antropólogo Lenin Pires, professor do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), o áudio compartilhado pela testemunha que teria ouvido os instantes finais de Ismael corrobora a importância do uso de câmeras de vídeo nas fardas da Polícia Militar. 
“Veja bem, temos o áudio de uma pessoa visivelmente desesperada após ouvir uma execução em frente à sua casa. Ao ser chamada para depor, por alguma razão, ela muda de ideia e não sustenta a versão que compartilhou inicialmente. Não cabe problematizar essa mudança, mas, sim, destacarmos a importância que câmeras de vídeo acopladas aos uniformes policiais têm para maior controle dessas ações”, defende o especialista em Segurança Pública no Rio de Janeiro (RJ).
Responsável pelo Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da UFF, Lenin afirma que a câmera no uniforme da PM tem o potencial de ser um elemento de inibição para violência policial. “Não que seja a resolução de todos os problemas de violência policial, mas, de fato, contribui significativamente para inibir esse tipo de ação, ou, se o policial for descuidado, pode oferecer elementos para apuração a posteriori do crime cometido. A rigor, o papel de uma câmera como essa é de dissuasão, ou seja, fazer com que o policial pense muito bem antes de agir, pois saberá que toda sua ação está sendo monitorada”, detalha.
No mesmo sentido, Guilherme Sines, mestre em Justiça e Segurança pela UFF e especialista em estudos sobre câmeras corporais e videomonitoramento, reforça a necessidade do uso da tecnologia para a promoção da segurança pública e o combate à violência policial. “Talvez a execução do Ismael não seria evitada, afinal, a câmera não muda o policial, mas, ao menos, teríamos a exata imagem do ocorrido. A testemunha que enviou o áudio dizendo que Ismael teria gritado que não seria bandido seria preservada da responsabilidade e também do risco de sustentar sua versão caso tivéssemos câmeras nas fardas dos policiais envolvidos nesta ação. Esse fato reforça a importância da PM do Paraná adotar esse mecanismo”, pontua.
Sines sustenta que, com base em suas pesquisas, restou comprovada a eficácia do equipamento. “Vemos em grande parte das pesquisas realizadas e em andamento que existe uma relação direta entre o uso das câmeras corporais com a alteração de indicadores, principalmente indicadores de letalidade policial, bem como também do abuso de autoridade e uso excessivo de força”, afirma. Como parâmetro, o estudioso destaca pesquisas realizadas nos estados de São Paulo e Santa Catarina. “A Polícia Militar de São Paulo, que adotou o uso de câmeras, reduziu em mais de 76% a letalidade dos policiais entre 2019 e 2022. Já em Santa Catarina, houve queda de 61% do uso progressivo da força. Tudo isso ainda reflete o aumento da qualidade dos dados transmitidos às delegacias”, completa.
Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia do Paraná, o deputado estadual professor Lemos (PT) defende a aprovação do projeto de lei que trata sobre a implantação do uso de câmeras no Paraná. “Podemos e devemos evitar que mais vítimas como Ismael sejam assassinadas por policiais do nosso estado”, enfatizou. Atualmente, o projeto está parado na Assembleia.
Procurada, a PM, por meio de sua assessoria de comunicação em Foz do Iguaçu, não retornou ao contato feito pela reportagem para saber sobre a conclusão do inquérito militar que apura a responsabilidade dos policiais sobre as duas mortes.

Edição: Frédi Vasconcelos