Paraná

LITERATURA COTIDIANA

CRÔNICA | Vamos conseguir pintar o futuro com novas tintas?

Sigo meditando sobre a frase que estou lendo no muro e da qual havia me esquecido

Curitiba (PR) |
Crônica. Vamos conseguir pintar o futuro com novas tintas? - Pedro Carrano

"A carne nova é comida com os velhos garfos", Brecht

 

Domingo de manhã. Vou com minha cachorra, Mikasa, até o campinho ao lado do Armazém da Família, na vila Maria e Uberlândia. O gramado esburacado geralmente é silencioso neste período. O terreno de grama rala é bom para a aventura da cachorra. Ela ensaia um disparo, como se um cavalo, com porte e força, logo atravessado pelo grito das crianças.

Um morador em situação de rua organiza as coisas naquele canto escondido entre lixo, muros e um parque pouco frequentado por moradores. Havia chovido forte na madrugada anterior, dando um tom às coisas de reconstrução e reorganização.

Distraído entre o arremesso de uma bola de plástico para o canídeo, de repente me deparo com uma imagem que explode dentro da minha memória. Um flash que conecta várias passagens. Um grafite, com o símbolo da nossa associação de moradores, liga a memória a uma atividade de dia das crianças que foi organizada ainda em 2020, no auge da pandemia.

No fundo do vale, num muro borrado e quase apagado, atrás de uma árvore frondosa, constava a conhecida frase de Raul Seixas: “Sonho que se sonha junto é realidade”, com o símbolo da associação de moradores local, já desbotado e apagado por chuvas e por sois também.

Alguns cães se aproximam e chamam a atenção de Mikasa, que corre atrás deles, nesses sempre estranhos rituais caninos. Sigo meditando sobre a frase que estou lendo no muro e da qual havia me esquecido. Pensando em como foram fugazes, nesses breves anos, as tentativas de fizemos que mobilizar a população e conseguir manter a chama acesa num projeto e fio de esperanças. Penso nas pessoas que se foram nesse meio tempo, enquanto o muro se desfazia, como um tecido de Penélope, costurado ao contrário, à espera de melhores dias. Penso em quantas atividades organizamos em tão pouco espaço de tempo.

Um carcará passa gritando num céu azul clichê de domingo. É cedo e a chuva se anuncia apenas para o final da tarde, depois do churrasco, enquanto a carne queima tímida em algumas casas da vila Leão e Canaã.

É uma manhã para sentir, pensar, planejar, meditar, esperançar, se perder na cerveja, abraçar os vizinhos no churrasco, recuperando a sempre viva palavra comunidade, apesar de tudo.

Conseguiremos reacender no próximo período a chama que deu vida para aquela arte do nosso grafite? Nossos sonhos, dizem, não envelhecem. Eu tentava não pensar nisso, enquanto arremessava uma bola de plástico contra aquele céu azul. Mas era inevitável pensar que o raio daquela esfera traçava algo de futuro.

Edição: Lucas Botelho