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Crônica | Ajuda ao Podre

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Podre não era bom surfista. Estaria indo então pra uma espécie de suicídio? - Leandro Taques
"Havia um certo medo no ar justamente porque aquele ponto ficava muito perto das pedras"

Eu estava sentado nas pedras na frente do mar. Mirava o horizonte de Guaratuba, bem aos pés do chamado Morro do Cristo. Passava horas sem pensar em grandes coisas, olho fixo nas embarcações pontuadas de gaivotas, na barbatana de um golfinho que surgisse, no acaso do canto de uma ave marinha, enquanto alguns surfistas passavam a meu lado.

Eles entravam solitários na água que eu me recusava a encarar. Antes disso, respiravam por uns três segundos, esperavam o baque da onda e se lançavam antes que a próxima se desenhasse rapidamente e abocanhasse as pedras e o que estivesse por ali. Já entravam na água com remadas ansiosas pra passar a rebentação.

Desde a noite anterior, o mar estava de ressaca. Ondas de uns dois metros rufavam naquele trecho pouco acostumado a grandes vagas. Isso fez com que todos os surfistas da região, ao menos os melhores, tivessem se lançado ao mar.

No entanto, é fato que se trata de uma atividade de capinar solitário. O mar ficava pontuado de pessoas sentadas em suas pranchas, esperando a próxima série de ondas.

Havia um certo medo no ar justamente porque aquele ponto ficava muito perto das pedras. E, enquanto alguns se arriscavam, outros contemplavam do morro, vibravam ou criticavam as manobras dos amigos.

Percebi que veio chegando o Podre, esse era o apelido dele, conhecido em toda a Guaratuba. Figura controversa, veio com passo arrastado, talvez estivesse até um pouco bêbado. Sem a necessária roupa de borracha pra aguentar a temperatura insuportável das águas de julho, passo confiante, barriga protuberante, eu sabia que o Podre levava pra água algumas dívidas com os outros surfistas e moradores da vila, problemas e rivalidades que havia contraído na área de ocupação que ficava atrás da cidade dos turistas. Ele despertava apenas ódio entre os conhecidos. Todos sabiam disso. Sua chegada era impossível de não ser notada.

Podre não era bom surfista. Estaria indo então pra uma espécie de tentativa de suicídio? Eu chegava a me perguntar, seria pra ele uma saída honrosa dessas que encontramos em filmes de final da tarde? E também nas realidades mais cruas. A vida, em certos momentos, quanto mais real, mas se assemelha a um clichê.

Podre estava queimado com várias comunidades, cometera muitos erros em benefício próprio, e a sua presença, de alguma forma, incomodava. Porém, na segunda onda que tentou descer, cavalo que acelera o pinote, búfalo que ganha corpo, o Podre tomou um caldo gigantesco, foi arrastado e ficou flutuando muito próximo às pedras, onde inclusive abriu um dos pés.

Notei, impressionado, a velocidade com que todos que estavam no Morro se colocaram como mães preocupadas, desceram as pedras como cabritos da montanha, pulando com agilidade até chegar à beira do mar. O Podre num minuto foi resgatado, todos falavam seu nome e se aproximaram, fiquei de cara quando vi um arquirrival dele, de outra vila comunidade, abraçando o Podre e até oferecendo um ombro amigo. Outros o conduziram, mesmo molhado e sangrando, no banco do carro, até o hospital.

Se eu me movi ou fiz algo para tentar ajudar o Podre?

Bem, na prática isso nunca esteve em questão, na medida em que eu não sei nadar, menos ainda surfar, tenho medo daquelas águas selvagens de Guaratuba e não chego perto, do mesmo jeito que desprezo e fico distante de cães agitados no portão das casas.

Mas, quem de nós não ajudaria o Podre naquela circunstância? Mesmo tendo ele como pior inimigo. O que sempre me tirou as noites de sono não foi pensar sobre a capacidade de organizarmos a guerra e a destruição de alguém. Vendo dois marmanjos da vila, que já haviam trocado tiros com ele, carregando o Podre pro carro, me reforça o espanto com esses momentos quando todos se colocam pra ajudar pessoas como o Podre. Mesmo sabendo que a guerra não precisaria retornar, mas é assim que vai ser logo no dia seguinte, quando o Podre deixar o hospital.

Porém, por breves minutos tivemos a paz. Naquela noite, eu mesmo estava agendado, mas não poderei, não, não poderei. Não poderei executar o Podre.

 

Edição: Lucas Botelho