Após pouco mais de seis horas de discussão, vereadores acataram, em primeiro turno, proposta para reservar 20% das vagas em concursos públicos da prefeitura de Curitiba para a população negra e indígena. O projeto, de iniciativa da vereadora Carol Dartora (PT), tramita na Câmara Municipal de Curitiba (CMC) desde janeiro deste ano.
“É importante dizer que cota não é esmola, não é favor. Cota é reparação e vai ao encontro de promover a igualdade no sentido amplo”, disse Carol Dartora. Para a autora do projeto, a aprovação representa "um momento histórico, para que a gente possa reparar e minimizar esse sistema de opressão que é o racismo estrutural."
O texto submetido a plenário, acatado com 30 votos favoráveis e 6 contrários, foi um substitutivo, assinado por mais 19 vereadores, protocolado na última sexta-feira (26). A principal mudança é que a implementação das cotas será gradual. Ou seja, deve começar com a reserva de 10% das vagas, a partir da data da publicação da lei, e ter o acréscimo, a cada dois anos, de 2%, até o Município chegar ao percentual de 20%.
A matéria indica a autodeclaração, conforme critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como requisito inicial para a inscrição às vagas reservadas.
Em negociação com o Executivo, foi estabelecido que a homologação decorrerá de “heteroidentificação pautada na fenotipia”, conforme critérios e procedimentos definidos em decreto e no edital do concurso ou do processo seletivo.
Emenda do vereador Tito Zeglin (PDT), para incluir povos ciganos, não foi acatada pelo plenário. Agora o projeto será votado em segundo turno nesta terça-feira (30). Sendo aprovado novamente, segue para sanção ou veto do prefeito Rafael Greca (DEM). Em caso de veto, total ou parcial, a matéria retorna para a Câmara, que pode acatar ou não a manifestação do chefe do Executivo.
Racismo estrutural
Os argumentos favoráveis às cotas étnico-raciais, em geral, defenderam uma política de reparação e que o racismo vai além da questão econômica. Na outra ponta, vereadores que defendem as cotas sociais em substituição ao critério étnico criticaram o chamado “tribunal racial” e a subjetividade da outra proposta.
“As cotas raciais são subjetivas, questionáveis, humilhantes, degradantes”, opinou Amália Tortato. A análise fenotípica do candidato, declarou a parlamentar, representa um “tribunal racial” e uma “verdadeira caça às bruxas”. “Esse sim [cotas sociais] é um critério objetivo. São números. É renda. É a escola onde o candidato estudou”, continuou.
“Sou uma pessoa que foi diretamente atingida pelo racismo a vida toda. Pela cor da minha pele, pelo formato do meu nariz, pela textura do meu cabelo. O racismo me impactou de todas as formas, de forma simbólica e de formas objetivas”, citou Carol Dartora.
Mestre em Educação e especialista em relações étnico-raciais, ela lembrou que o projeto de cotas foi sua primeira proposta na CMC, construída junto ao Executivo e aos movimentos populares, chegando à pauta no Mês da Consciência Negra por meio do diálogo “muito sensível” articulado pelo presidente da Casa, Tico Kuzma (Pros).
“Isso que está sendo chamado de tribunal racial é muito cruel. […] Desde que esse país nos trouxe sequestrados de África, nos explorou, nos violentou de todas as formas, quem vive em um tribunal racial somos nós. Somos nós que somos mortos por sermos negros. Que temos as portas fechadas por sermos negros”, rebateu Dartora. “No nosso país, o racismo se dá pelo fenótipo. Por como a pessoa parece ser. Quanto mais escura a pele, maior o racismo que ela sofre. Por isso as bancas preveem a heteroidentificação.”
“Eu também sou produto das cotas raciais e me orgulho disso”, afirmou Renato Freitas (PT). Citando experiências de racismo, o parlamentar apontou que “você pode ter o dinheiro para pagar, mas você nunca vai ser visto como uma pessoa branca”. “A questão social, econômica, não é igual à questão racial. Sempre alguém julgando você pelos olhos, diminuindo você”, comparou.
O vereador ainda destacou que a implementação das cotas na cidade tem "caráter emergencial." "Elas não são para daqui 30 ou 50 anos. Elas são para agora. Se você olhar à sua volta, vai perceber que o mundo é branco naquilo que diz respeito ao poder”, defendeu.
Apoio e mobilização
Do protocolo até a aprovação, a proposta foi tema de audiência pública, abaixo-assinado e manifestação de instituições acerca da necessidade de Curitiba implantar a medida como política afirmativa de reparação histórica e de combate ao racismo.
Durante a tramitação nas comissões permanentes da CMC,foram anexadas ao projeto uma nota conjunta da Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público do Paraná (MPPR) e Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE), defendendo a aprovação das cotas raciais.
Também foram enviadas notas da da Universidade Federal do Paraná, através da Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade (SIPAD) e do Núcleo de Estudos Afro Brasileiros (NEAB), da Associação Cultural de Negritude e Ação Popular (ACNAP), do Instituto de Pesquisa da Afrodescendência (IPAD Brasil), da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e da Confederação Sindical de Trabalhadoras de Trabalhadores das Américas (CSA).
O processo recebeu ainda uma manifestação da Promotoria de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos de Curitiba recomendando “a reserva de vagas para afrodescendentes” pautada em critérios étnico-raciais.
Articulado pela Movimenta Feminista Negra, um abaixo-assinado virtual contou com o apoio de dezenas de insituições e movimentos, como APP-Sindicato, Bloco Afro Pretinhosidade, Coalizão Negra, Coletivo Enedida – UTFPR, CUT, Enegrecer, IPAD, Julho das Pretas, Kizomba, Marcha do Orgulho Crespo, MNU, MST, NEAB, Pastoral Afro, Rede de Mulheres Negras, Sindjus, SindSaúde, Sipad, Sismmac, Sismmuc, Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do Partido dos Trabalhadores e Coletivo Um Baile Bom (UBB).
No mês de agosto, a Câmara de Curitiba realizou uma audiência pública sobre o projeto. Especialistas ouvidos pelo Legislativo foram unânimes em destacar a importância de aprovação do projeto para a cidade de Curitiba.
*Com informações da Câmara Municipal de Curitiba e da assessoria parlamentar.
Edição: Lia Bianchini