Cleonice Gonçalves trabalhou desde jovem como empregada doméstica e teve sua vida abreviada pela covid-19, sendo a primeira vítima fatal da doença no Brasil. Ela dormia no emprego, no Leblon, bairro de classe alta do Rio de Janeiro, e foi contaminada pela patroa que voltou de uma viagem para a Itália e, mesmo com sintomas, não fez isolamento nem dispensou a funcionária, que veio a morrer em 16 de março de 2020.
Naquele momento, o Ministério da Saúde ainda não contabilizava casos e mortes por indicadores de raça e cor. Isso só aconteceu em abril, após pressão do GT Racismo e Saúde, da Coalizão Negra e da Sociedade Brasileira de Médicos de Família e Comunidade.
Com a divulgação dos dados dos infectados e mortos incluindo raça/cor, foi possível acompanhar o vírus se alastrando rapidamente pelas periferias e ficou evidente que a pandemia foi muito mais letal para a população negra. Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, mostrou que mulheres, pessoas negras e pobres foram as mais afetadas. A cada dez pessoas que relataram mais de um sintoma da covid-19, sete eram pretas ou pardas.
Outro estudo realizado pelo Raça e Saúde Pública mostrou que, em 2020, o excesso de mortalidade foi de 28% entre pretos e pardos em comparação a 18% entre pessoas de cor branca. São 36 mil óbitos a mais entre pessoas de cor preta e parda em relação às brancas. Em todas as faixas etárias, pessoas pretas e pardas morreram mais. A pandemia escancarou o que já era sabido: a desigualdade do acesso à saúde, tanto privada como pública.
Mas não são só números, mulheres e homens negros sentiram na pele o preconceito e a dificuldade do atendimento na saúde. A diarista Marilde Camargo, moradora de Fazenda Rio Grande, relata que só foi saber que havia contraído o vírus quando passou para seu filho. “Fui ao hospital e me mandaram de volta dizendo que eu estava com gripe. Eu sentia falta de ar, falei para eles, mas a impressão sempre é que a gente não é levada a sério”, conta. “Aí meu filho ficou ruim, conseguiu fazer o teste porque o patrão dele pediu e estava com covid”, diz.
Volta para casa sem atendimento
Caso semelhante foi da fotojornalista Giorgia Prates, que contraiu duas vezes o vírus e disse que teve medo de morrer devido à falta de atendimento e ao preconceito. “Comecei a não conseguir falar, ter suadouro e fui para o hospital. Fiz a triagem e, quando entro para ter a avaliação com a médica, ela perguntou o que eu tinha, eu disse que achava que estava com covid. Na hora, começou a gritar para que eu parasse de falar e saísse da sua sala. Ela chegou também a brigar com a enfermeira e pediu que me isolasse. A enfermeira disse que eu não tinha nada e que não me isolaria”, relata.
Giorgia voltou para casa, mas na mesma noite se sentiu ainda pior e buscou atendimento numa unidade de pronto atendimento. Lá, ela e sua companheira esperaram seis horas e não foram atendidas. “Eu achei que ia morrer ali. Toda hora a gente ia perguntar quando seria atendida, via pessoas com menor gravidade sendo atendidas. Depois de mais de seis horas, outra moça negra foi questionar sobre quando seria atendida. Ali me dei conta de que as duas pessoas pretas que ali estavam não eram prioridade. Entendi que cor eles estavam priorizando.” Mais uma vez, Giorgia voltou sem ser atendida e acabou sendo orientada a distância pela irmã, profissional de saúde, e se tratou em casa.
Falta execução de políticas públicas
No momento mais crítico da pandemia, em 2020, o secretário de Saúde do Paraná, Beto Preto, foi questionado, em audiência na Assembleia Legislativa, sobre atenção à população negra após surto de covid-19 em uma das comunidades quilombolas do estado. Ele se limitou a dizer que estariam incluindo a população negra, via decreto, como de risco para o vírus e continuariam monitorando.
Para Teresa Mendes, do movimento negro do Paraná e integrante do Conselho Municipal de Igualdade Racial de Londrina, a pandemia só escancarou mais o quanto a população negra não é priorizada nas políticas púbicas. “Sem estruturar o SUS pensando nesta população, não vai ter mudança”, diz.
Teresa destaca que existe um Plano Nacional de Saúde Integral da População Negra, aprovado em 2009, que precisa ser executado. “A população negra tem especificidades. E esse plano precisa ser implementado. São poucos os municípios que estão empenhados em tirar do papel. Por exemplo, está incluída lá a capacitação dos profissionais da saúde para atender esta população, que inclusive tem doenças específicas", explica.
Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) apontam que a população negra apresenta prevalências maiores de hipertensão (44,2%) e diabetes (12,7%) comparada à população branca (22,1% e 6,2%). O mesmo acontece em relação a doenças cardíacas (7,0%) e asma (8%).
A reportagem do Brasil de Fato Paraná entrou em contato com a Secretaria Estadual de Saúde questionando se há orientação aos municípios sobre a execução da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Até o fechamento da matéria, não houve resposta.
Edição: Frédi Vasconcelos e Lia Bianchini