Se o desejo é que nasçam mais crianças, deveriam implementar mais medidas pela vida das mulheres
Recentemente ocorreu no Japão um episódio completamente execrável. Naoki Hyakuta, escritor e cofundador do Partido Conservador Japonês, defendeu que mulheres deveriam ser proibidas de frequentar universidades após completarem 18 anos e de se casar após os 25 anos. Mas o absurdo não parou nisso. Após os 30 anos, defendeu o nipo-escritor, todas as mulheres deveriam obrigatoriamente se submeter ao procedimento de histerectomia (remoção cirúrgica do útero). Com essa nada brilhante ideia, inferiu Hyakuta que o problema da baixa natalidade no Japão se resolveria. Obviamente o episódio viralizou, com o que o conservador teve que se retratar publicamente.
Algo aterrorizantemente semelhante tem acontecido aqui no Brasil, com o patrocínio desta vez do conservadorismo brasileiro. Refiro-me à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 164/2012, popularmente denominada “PEC antiaborto” ou ainda “PEC do estuprador”, apresentada por Eduardo Cunha (na época PMDB) e João Campos (Republicanos), em 02 de maio de 2012, e cuja admissibilidade foi aprovada na quarta-feira, 27 de novembro de 2024, durante sessão da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (CCJ), por 35 votos favoráveis contra 15 desfavoráveis. Falar disso é de extrema relevância, pois, uma vez aprovada, atingirá todas as mulheres no país, mas de forma muito mais impactante as não brancas e as pertencentes às camadas sociais mais vulneráveis, como mulheres trabalhadoras, agricultoras, desempregadas, donas de casa, adolescentes e crianças.
Diante desse cenário assombroso, li a PEC do Estuprador e percebi na sua tramitação que a questão se agrava por duas razões: a primeira é a atuação dos grupos religiosos e conservadores, hoje consubstanciados na antidemocrática extrema-direita; a segunda é a atuação inicial inadequada do segmento político progressista que mais deveria agir em prol das mulheres que compõem a maioria de seu eleitorado. A referida proposta de emenda à constituição tem como finalidade dar nova redação ao caput (a primeira parte do texto) do artigo 5º da Constituição da República, de forma que o direito à vida passe a ser protegido desde o momento da concepção (quando o espermatozoide fecunda o óvulo).
A primeira coisa que me chamou atenção nessa proposta é que, em sua pífia justificação de apenas 8 linhas muito mal escritas, comete uma série de equívocos que só demonstram a limitação sobre conhecimentos básicos de biologia e de língua portuguesa de quem a elaborou, propôs ou a defende agora. Primeiro, apresenta uma série de erros crassos de escrita, que representa o anti-intelectualismo e o desprezo à educação por quem formulou a proposta. Segundo, demonstra carecer de qualquer conhecimento acerca do desenvolvimento embrionário, haja vista que “feto” só é considerado como tal após uma série de processos que se desenvolvem dentro do corpo da mulher, a partir da 9ª semana. Só após esse período é que o embrião será considerado feto. Isso é conhecimento a ser adquirido no ensino fundamental e aprofundado no ensino médio e nos cursinhos pré-vestibulares – o que demonstra o déficit pedagógico formal dos proponentes, problema ao qual o Brasil deveria dedicar maior atenção. De todo modo, da forma como a que está escrita, ademais, a justificativa poderia dar a entender que se fetos devem ser protegidos, os embriões estariam fora dessa proteção, ainda que a alteração proposta à Constituição preveja a proteção da vida desde a “concepção”. Para além do bom senso, também falta lógica.
Essa confusão constante na redação da PEC evidencia a falta de zelo na elaboração da PEC, o que só demonstra o pouco valor – diria, aqui, inclusive total desprezo - que o tema de fato recebe por aqueles que defendem a PEC do estupro 2.0. A vida humana e sua proteção jurídica não são os verdadeiros protagonistas dessa trama. O que está em jogo na realidade é o que me referi acima sobre a atuação da extrema direita, cujo fundamento é a ideia conservadora de que o controle da sexualidade das mulheres é fundamental para um determinado projeto de sociedade, a tal ponto que se sente autorizada a interferir nas vidas, nas escolhas e no exercício dos direitos das mulheres e meninas.
Agora, um outro ponto que entendo bastante relevante para discutir diz respeito ao que referi sobre a atuação inadequada dos campos progressistas no tema do aborto no momento da propositura da PEC. Lendo a tramitação, é possível inferir que após sua proposição no plenário, redigiu-se o Relatório de Conferência de Assinaturas, o qual apresentou 209 assinaturas confirmadas para a aprovação da sua tramitação, das quais, ao lado de 180 parlamentares dos partidos PRB, PSD, PR, PMDB, PSC, PSDB, PTC, PP, DEM, PMN, PHS, 12 vieram do Partido dos Trabalhadores (PT), 11 do Partido Democrático Trabalhista, 4 do Partido Verde (PV), do 3 do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o que representou o imperdoável apoio da centro-esquerda progressista com 29 assinaturas à pauta contra mulheres. Passou na sequência por dois arquivamentos, em 31/01/2015 e 31/01/2019, sendo seu último desarquivamento em 20/02/2019, a pedido de um de seus autores, João Campos, do Republicanos, partido ligado à Igreja Universal. Em 15/05/2024, designou-se como relatora a deputada Chris Tonietto do Partido Liberal (PL) – que de liberal não tem nada.
Percebe-se, contudo, que em 2024 dentre os votos contrários na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) estão 9 da Federação Brasil da Esperança, formada pelo PT, PcdoB e PV (com exceção do deputado Flávio Nogueira do PT-PI) e 2 da Federação PSOL/ Rede, o que demonstra que a pauta ganhou maior relevância nos partidos de esquerda progressista desde a propositura da PEC em 2012 até o presente momento. Apesar dessa mudança positiva, entendo que ainda sim é necessário resgatar a memória da participação da esquerda progressista contra as mulheres e meninas, seja na votação no início da tramitação que presenteou 29 votos favoráveis aos conservadores, seja no voto mais recente do deputado Flávio Nogueira. É imperdoável, a meu ver, que parlamentares integrantes das forças progressistas tenham esse tipo de atitude e é mais imperdoável ainda que as mulheres não se posicionem a respeito disso. A defesa dos direitos reprodutivos e sexuais, dentre os quais se insere o direito ao aborto seguro, conforme já referi em outro texto, é essencial, pois tais direitos são pressupostos para o exercício pelas mulheres e meninas dos demais direitos consagrados em nossa Constituição.
Apesar da crítica que acima expus, gostaria também de destacar o sensato voto em separado do deputado Bacelar (PV), no qual, posicionando-se contra a PEC, esclarece que a proibição absoluta do aborto causará um impacto devastador na saúde pública do país, ressaltando que é cruel e desumano obrigar gestações em casos de estupro ou de inviabilidade fetal, além de incompatível com a dignidade da pessoa humana, a igualdade e os direitos fundamentais. Adiciono também que muitos casais ficarão sem a possibilidade de constituir família via reprodução assistida e que pesquisas científicas sobre células-tronco restarão inviabilizadas, o que, sem dúvida, provocará impactos severos na vida das pessoas acometidas por doenças que dependem do avanço desses estudos para melhora e até cura. Por último também registro minha admiração à atuação da deputada Sâmia Bonfim (PSOL), que além de participar ativamente da tramitação, tem realizado forte campanha contrária à PEC 164/2012 nas redes sociais, junto a outras lideranças políticas, na busca de conscientizar a população acerca das consequências gravíssimas de uma eventual aprovação.
É completamente incompatível com o atual regime constitucional atacar direitos desta forma e cabe às mulheres união e luta contra esse tipo de retrocesso, especialmente considerando que o mundo no imaginário conservador pode ser completamente irrazoável, vide o episódio japonês citado no início deste artigo ou a própria existência da PEC do estuprador. Não é mais viável continuar aceitando que esse tipo de pensamento oriente a vida das mulheres. Se o desejo é de que nasçam mais crianças, entendo que seria muito mais compatível com a dignidade, com os direitos humanos e com a valorização da vida se a sociedade implementasse mais medidas que tornassem a vida das mulheres melhor.
Alguns exemplos seriam garantir a elas a mesma remuneração que a dos homens; combater o preconceito no trabalho que as impede de ter melhor remuneração e de ocupar também posições de chefia e gestão; garantir vagas suficientes em creches e escolas, a fim de permitir que mulheres possam trabalhar sem se preocupar ou que tenham que abandonar a vida profissional para cuidar da prole; serviços médicos de qualidade para que antes, durante e após suas gestações as mulheres estejam saudáveis, reduzir a jornada de trabalho para que ambos – mãe e pai – possam conviver e educar suas crianças, dentre tantas outras medidas mais eficazes, adequadas e humanas que criariam condições mais favoráveis para geração de filhos.
Há várias maneiras de se proteger a vida e impossibilitar que mulheres e meninas recorram ao aborto seguro nos casos permitidos por lei não é uma delas. A sociedade e o estado não devem se posicionar contra mais da metade da população brasileira, mas sim assegurar às meninas e mulheres o mais elevado cuidado possível, pois é o que uma sociedade civilizada faz. Às mulheres cabe a cobrança de políticas públicas e o monitoramento da extrema-direita conservadora, mas também dos parlamentares que se dizem progressistas nas eleições, mas que na hora de apreciar propostas como essa se posicionam contrários aos direitos das mulheres. Assim, todos da sociedade se beneficiam.
*Ketline Lu é advogada, gestora de escola, mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Direito Constitucional e Direito Ambiental e graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Lucas Botelho