Muito se elogia a qualidade e o simbolismo do transporte público de Curitiba, em sua associação com o desenvolvimento do uso do solo. Mas o quanto ainda vale citar a capital paranaense como uma cidade modelo, pioneira e exemplo mundial? Os fatos mostram que cada vez mais Curitiba se distancia da imagem de vitrine que insiste em sustentar.
É verdade que a cidade é sempre mencionada como uma das precursoras do que foi chamado posteriormente de DOT - Desenvolvimento Orientado ao Transporte. Trata-se de uma ferramenta que une as vantagens das estações de transporte (metrô, trem ou BRT) com o adensamento, a mistura de usos e o desenho urbano voltado à máxima eficiência do transporte público, do pedestre e do ciclista.
Esse pioneirismo aconteceu lado a lado com outras grandes cidades do mundo, como Copenhague, Seul, Singapura e Hong Kong. Entretanto, na capital paranaense a premissa do setor estrutural de verticalizar e concentrar a população nos eixos dos biarticulados se viu frustrada com o passar das décadas. Não houve acompanhamento de uma política de regulação do valor da terra e de meios para que o solo em torno das estações fosse acessível à população de menor rendimento.
Isso resultou em uma realidade dicotômica: de um lado, há estações e terminais do BRT contornados por edifícios de classe média e média-alta ou então lotes com ocupações antigas que vêm sendo demolidas, dando lugar à especulação imobiliária e vazios urbanos, para um dia também se transformarem em arranha-céus próprios para o lucro do mercado imobiliário. Por outro lado, na periferia, há locais com alta densidade de moradores e longe dos biarticulados, dependendo de alimentadores e outras linhas para chegar à rede expressa.
Esse panorama curitibano destoa das suas cidades-irmãs do DOT. Em Singapura, por exemplo, os programas habitacionais para pessoas menos favorecidas preveem edifícios junto às estações de metrô. Já em Hong Kong o sistema de captura de valor da terra faz algo similar, vinculando os investimentos do transporte com os de novos empreendimentos do entorno.
Mas não é somente na relação transportes-uso do solo que Curitiba regrediu, mas na própria marcha dos avanços no sistema de ônibus. Inicialmente, os expressos eram instalados em questão de meses, como a primeira linha de biarticulados, a Boqueirão, implantada em seis meses. Nesse ritmo, a cidade que inventou o BRT viveu uma onda de inovações até o início dos anos 2000, com a sequência de linhas expressas, novos terminais, ligeirinhos, interbairros e gradual integração físico-tarifária com os municípios da região metropolitana.
Agora é o contrário. A Linha Verde, em obras há 14 anos, teve uma porção entregue em 2009 e a outra ainda pendente e, mesmo redividida em subfases, continua a passos lentos para seu término. Um outro exemplo, é o Terminal Tatuquara, inaugurado em 2021, após 22 anos sem um novo terminal na cidade, e também o primeiro dos 22 terminais da capital que iniciou a operação sem uma linha de ônibus de ligação rápida, como ligeirinho ou BRT. Apenas em 2024 uma linha de ligeirinho começou a funcionar, ligando o Tatuquara ao centro, porém sem outras ligações estratégicas, o que obriga a população a depender de outros terminais, acarretando subutilização da infraestrutura. Esse terminal nem mesmo conta com interbairros, que já foi uma novidade na ligação perimetral da cidade, ou seja, sem passar pelo Centro.
No cenário metropolitano, em 2015, com a dissolução da parceria entre a URBS, que coordenava o transporte da capital e de cidades vizinhas, e a Agência de Assuntos Metropolitanos do Paraná - AMEP (antiga COMEC), a integração se fragmentou. Isso interrompeu os avanços na integração metropolitana iniciados nos anos 1990, com a abrangência de linhas e posterior inclusão na RIT de diversos municípios da área conurbada, como Fazenda Rio Grande, Colombo, Pinhais, Almirante Tamandaré e Piraquara. Passou-se para um cenário de segmentação, com a URBS se restringindo às linhas essencialmente municipais (com algumas exceções) e a COMEC respondendo pela maior parte das metropolitanas, enquanto algumas cidades continuaram gerindo seus sistemas próprios, anteriormente vigentes.
E, pior, a nova licitação em trâmite da AMEP pressupõe que os municípios terão que gerir e arcar com suas linhas próprias, enquanto a agência irá coordenar apenas os itinerários que passem por mais de um município. Ou seja, é um cenário de tendência de individualização do transporte público, que torna a vida do cidadão mais complicada. Para um morador de uma cidade vizinha que trabalha em Curitiba, até três cartões-transporte poderiam ser necessários: um para as linhas internas da capital, um para as linhas da cidade vizinha e um para as linhas que interligam ambas. E essa já é a situação para os habitantes de São José dos Pinhais, Araucária e Campo Largo, cidades que sempre tiveram um sistema próprio.
Cabe lembrar que em uma metrópole as cidades não funcionam individualmente e isoladas. As pessoas moram em um município, trabalham em outro e, no caminho, podem ainda passar por um terceiro. É justamente essa relação socioespacial que o IBGE denomina de arranjo populacional e que as próprias entidades das regiões metropolitanas deveriam considerar na sua formação. Isso porque o Estatuto da Metrópole - Lei nº 13.089/2015 - dispõe que a tais entes cabem as chamadas funções públicas de interesse comum, como é o caso de abastecimento de água, resíduos, sistema viário e transporte público. São políticas que, em sua realização, causam impactos em mais de um município. O que vemos é Curitiba e sua RM indo na direção contrária, criando uma metrópole cada vez mais fragmentada.
Em suma, Curitiba vê-se atualmente com o sistema de transporte saturado, com uma das tarifas mais caras entre as capitais, queda constante do número de usuários e aumento dos congestionamentos de automóveis. Nenhum projeto está em previsão para reverter esse cenário, aperfeiçoar a rede e de fato tornar útil o espaço ao redor das estações de BRT. O novo projeto do novo Inter 2 chega com décadas de atraso e envolvido em polêmicas sobre derrubamento de árvores e impermeabilização de solo. E é apenas uma readequação de uma linha já existente, nada novo para as crescentes áreas ocupadas na cidade. E, na escala metropolitana, a agência responsável pela cooperação entre os municípios desmembra linhas convencionais em vez de priorizar a integração, que poderia ser incentivada com projetos voltados à extensão do BRT e outros modais de novas tecnologias.
Pode ainda Curitiba retornar ao status de modelo? Com certeza sempre há tempo. Mas a insistência nessa vitrine, já estilhaçada e sem uma reposição agendada, mostra como a capital do Paraná fica cada vez mais e mais longe disso.
Referências
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). REGIC – Região de Influência das Cidades 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.
NICHELE, H. E. Índice parametrizado de avaliação de espaços de Transit Oriented Development (TOD): estudos de caso em Singapura e Curitiba. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano) – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2022.
SUZUKI, H.; CERVERO, R.; IUCHI, K. Transforming cities with transit. Transit and Land-Use Integration for Sustainable Urban Development. Washington, D.C., EUA: The World Bank, 2013.
Edição: Mayala Fernandes