A política brasileira, especialmente nas eleições municipais, tem nos oferecido um cenário que vai além de ideologias ou cores partidárias. Em Curitiba, dois candidatos da direita chegaram ao segundo turno. No palco nacional, o que assistimos é uma peça trágica em que a briga entre partidos esconde o verdadeiro drama: quem perde de fato é o povo (sobretudo as pessoas que mais precisam da política). Somos nós, os moradores da periferia, os negros, indígenas, pessoas LGBTQIA+, os trabalhadores sem descanso que continuam à mercê de promessas vazias.
O senso comum nas análises recentes declara o triunfo da direita e a derrota da esquerda. Mas será?
Como vereadora negra, lésbica, periférica e de axé, vivo um enfrentamento diário. E desse lugar, vejo o quanto essas análises são descoladas da realidade da nossa gente. Porque a questão essencial não é sobre quem venceu nas urnas, mas sim, sobre quem está sendo deixado para trás nesse processo, quem continua sendo silenciado no jogo de poder e de likes que tomou conta do país.
A esquerda, que sempre se vangloriou de ser a voz dos oprimidos, foi quem também permitiu a situação que estamos vivendo. A conivência de setores que deveriam ser nossos aliados e a falta de comprometimento com as próprias decisões, agora segue fortalecendo o atentado contra nossos direitos.
Um segundo turno sem candidatura progressista não significa que a população "virou de direita". Isso é resultado de uma articulação política que se preocupou com tudo, menos com suas bases. Enquanto os partidos se esforçavam para consolidar coligações e estratégias para ampliar espaços, deixavam a população à mercê do conservadorismo. Um golpe nas vidas de quem precisa de uma prefeitura comprometida com a justiça social.
E a pergunta que não cala é: o que deixamos de fazer?
Eu, que trabalho diariamente com as periferias, posso dizer que, na linha de frente, as pessoas não podem se dar ao luxo de esperar por mais quatro anos. A fome não espera, assim como a falta de moradia, a violência ou a ausência de direitos básicos.
Tudo isso segue acontecendo até agora, pois enquanto a esquerda se permite discutir sua derrota nas urnas, quem está perdendo e pagando realmente o preço é o morador da favela, o ambulante, o trabalhador informal, a mulher negra que vive a violência todos os dias.
Me pergunto o que aconteceu para termos chegado a esse ponto. Como permitimos que a disputa em Curitiba deixasse de ser sobre as pessoas e virou uma batalha por cargos e egos em todos os campos políticos. E agora, se a direita avança, é porque nos desconectamos da nossa própria origem. E sim: temos muita autocrítica a fazer.
Quando trocamos a coragem por acomodação e por omissão e a ideologia por conchavos e ganhos pessoais, algo muito grave acontece. Não é só uma falha na avaliação eleitoral, é um golpe na própria essência, um abandono ao que deveria ser nosso verdadeiro compromisso.
Então, quem afinal perde? Não é a esquerda. É o meio ambiente, devastado pela ganância da bancada ruralista. É a juventude, cujo horizonte é de precariedade e exclusão. São os servidores públicos, vilanizados por quem quer "enxugar a máquina" para que ela caiba no próprio bolso. É a população negra, que segue abandonada e só é lembrada para seu próprio extermínio. São as periferias, que ficam à mercê da especulação imobiliária. As mulheres que continuam sem creches para seus filhos ou políticas de proteção. São os povos indígenas, que têm suas terras invadidas e seus direitos históricos reduzidos. Os professores, os médicos e profissionais do SUS, os catadores de materiais recicláveis, quem se espreme nos ônibus lotados, pagando uma tarifa extremamente cara, quem espera nos postos e unidades de saúde.
É uma guerra sem tanques nas ruas, mas com prefeituras que empurram políticas neoliberais vestidas de modernização, onde cidades de todo o país estão sendo entregues nas mãos de quem sempre dominou os recursos públicos sem se constranger em oferecer migalhas.
Como chegamos a esse ponto? As ruas de Curitiba, que carregam a história de cada luta por moradia, transporte, saúde, educação, segurança, são as mesmas por onde agora ecoa o silêncio perturbador deste segundo turno, o silêncio da ausência de uma candidatura progressista.
Não há outra alternativa senão o embate. E eu, reeleita como vereadora, sendo a única negra, lésbica, periférica e do axé que ocupará a Câmara de Curitiba em 2025, já sei o que me espera junto a blogueiros e influenciadores que não entendem a profundidade da palavra compromisso, que não sentem na pele o que é ser marginalizado. Para eles, a política é um jogo de redes sociais, onde uma hashtag vale mais do que uma lei que protege vidas. Lutar, portanto, não será uma opção.
Essa revolução certamente não será postada. Ela será vivida nas ruas, no corpo de cada mulher, de cada negro e negra, de cada jovem periférico, de cada pessoa LGBTQIA+, de cada trabalhador e trabalhadora.
A resposta para esse momento está no cotidiano. Na base, nas periferias, a luta continua. O nosso voto vale muito para ser anulado e a neutralidade não é uma opção quando nossos corpos são o alvo porque todo silêncio alimenta a opressão.
Talvez o mais importante agora seja entender quem aceita o diálogo, porque nem todos estão dispostos a enxergar as nossas lutas.
A verdadeira derrota - assim como a vitória - não está nas urnas, mas na vida das pessoas. E é por elas que vou continuar lutando.
Edição: Ana Carolina Caldas