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Coluna

Há 30 anos, nos despedíamos de Lélia Gonzalez

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Lélia Gonzales em Dacar, Senegal, 1979. - Imagem: Acervo Lélia Gonzales - IMELG
Racismo, patriarcalismo e capitalismo se interconectam na perpetuação das desigualdades no Brasil

Há 30 anos, uma grande intérprete do Brasil falecia. Referimo-nos à Lélia Gonzalez, destacada pensadora feminista, que morreu a 11 de julho de 1994. Neste artigo, fazemos um convite às leitoras e aos leitores, para conhecê-la e especialmente para aprender com algumas de suas proposições teóricas, tão importantes inclusive nos dias atuais.

Nascida Lélia de Almeida a 1º de fevereiro de 1935, em Belo Horizonte, foi a penúltima de uma família de 18 filhos. Seu pai, Joaquim de Almeida, faleceu muito cedo, deixando a família em dificuldades financeiras. O seu sustento era provido por sua mãe, Urcinda Seraphina de Almeida, que tinha raízes indígenas. Diante das graves dificuldades em que vivia, desde cedo trabalhou. Sua origem popular certamente contribuiu para com sua dedicação aos movimentos sociais e às lutas feministas.

A sorte da família melhorou quando um dos irmãos de Lélia se tornou jogador do Flamengo, levando-os a se mudar para o Rio de Janeiro. Diferente de seus irmãos que só lograram concluir o ensino primário, Lélia pôde se aprimorar mais academicamente, graças ao patrocínio da família que empregava sua mãe como doméstica, quem, em um primeiro momento, a auxiliou financeiramente nos estudos.

Formando-se em História, Geografia e Filosofia, Gonzalez atuou como professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Gama Filho. Fundou o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro e o Movimento Negro Unificado. Além disso, participou do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, nos anos de 1985 a 1989, e da Assembleia Constituinte de 1987, como membra da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, emprestando todo seu valoroso conhecimento acadêmico e sua vivência militante ao processo que culminou na atual Constituição da República.

Em seus trabalhos, Lélia Gonzalez abordou a condição social da população negra no Brasil e, em especial, das mulheres negras, apontando para a exploração econômica e a discriminação racial e de gênero como fatores que as mantinham na base da pirâmide social, numa situação de vulnerabilidade difícil de superar. Com base na psicanálise freudo-lacaniana, Lélia propôs uma descolonização epistemológica, com seu conceito de “pretuguês”, por exemplo, a fim de denunciar que as ideologias eurocêntricas dominantes minimizavam a contribuição cultural dos negros. Ela também desafiou a ideia de democracia racial no Brasil, que, segundo ela, escondia o racismo estrutural da sociedade brasileira e afetava particularmente as mulheres negras.

A nosso ver uma das grandes contribuições que a autora nos deixa diz respeito à discussão sobre racismo. Ela inovou ao demonstrar que essa questão não se resume ao binômio “preto-branco”, o que pode ser entendido a partir dos alertas que Gonzalez fez em seus trabalhos acerca da diversidade e pluralidade cultural da América Latina e por sua opção de muitas vezes se referir à “etnia” em vez de “raça”. Certamente por seus laços familiares, ela diversas vezes lembrou a importância de se considerar também a questão indígena no Brasil, por exemplo. Vemos em Lélia Gonzalez, portanto, as sementes de um desejo profundo de se consolidar e ampliar os horizontes da discussão racial no Brasil.

De qualquer modo, no Brasil e no mundo, Lélia Gonzalez foi inovadora no campo do feminismo crítico, ao propor uma análise que integraria gênero, raça e classe, antes mesmo da teoria da interseccionalidade de Kimberlé Crenshaw, nos anos de 1990 nos Estados Unidos. A autora construtivamente criticou os movimentos feministas de sua época, por considerar que negligenciavam as questões das mulheres negras e indígenas, argumentando por um feminismo afro-latino-americano que extraísse sua força justamente daquilo que lhe era único: seu caráter plural e multirracial.

Gonzalez defendeu a necessidade de analisar a opressão sofrida pelas mulheres latino-americanas através de uma lente que integrasse questões de raça, classe e gênero, destacando como as mulheres e, sobretudo, as negras eram as mais exploradas econômica e sexualmente. Para analisar especificamente a situação das mulheres negras no Brasil, Lélia propôs problematizar as noções de “mulata”, “mãe preta” e “doméstica”, cujo uso, ainda que não intencional, podemos perceber em valiosas obras literárias brasileiras escritas por autoras negras e autores negros, tais como o comovente “Quarto de Despejo”, de Carolina de Jesus (o meu favorito desta pequena lista), “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, ou “Solitária”, de Eliana Alves.

Gonzalez também cunhou o importante conceito de divisão sexual e racial do trabalho, para, ao fim, denunciar que as mulheres negras sofriam tríplice discriminação: por seu gênero, sua raça e sua classe social. Sua contribuição, portanto, é fundamental para os estudos de gênero, raça e classe no Brasil, destacando-se como uma sólida teoria crítica para a compreensão das desigualdades sociais.

Sobre a realidade brasileira, inserida no contexto da Ditadura Militar, ela estudou o capitalismo dependente brasileiro, utilizando-se de categorias marxistas, tais quais “classe”, “ideologia” e “consciência”, a fim de tentar explicar as razões pelas quais a população negra sempre se mantinha em uma situação social desigual, mesmo após a abolição da escravidão. A crítica aos privilégios de classe, portanto, era central em seu pensamento. Analisando dados de sua época, Gonzalez denunciou que as pessoas negras eram as que tinham menos escolarização, as menores remunerações e as piores condições de trabalho, sendo que as mulheres negras estavam ainda mais vulnerabilizadas.

Atualmente, esse infeliz quadro pouco se alterou, o que demonstra o quanto o pensamento de Lélia Gonzalez permanece relevante para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, uma vez que aborda como racismo, patriarcalismo e capitalismo se interconectam na perpetuação das desigualdades no Brasil.

Há 30 anos, uma grande intérprete do Brasil falecia. Referimo-nos à Lélia Gonzalez, destacada pensadora feminista, que morreu a 11 de julho de 1994. Neste artigo, fazemos um convite às leitoras e aos leitores, para conhecê-la e especialmente para aprender com algumas de suas proposições teóricas, tão importantes inclusive nos dias atuais.

Nascida Lélia de Almeida a 1º de fevereiro de 1935, em Belo Horizonte, foi a penúltima de uma família de 18 filhos. Seu pai, Joaquim de Almeida, faleceu muito cedo, deixando a família em dificuldades financeiras. O seu sustento era provido por sua mãe, Urcinda Seraphina de Almeida, que tinha raízes indígenas. Diante das graves dificuldades em que vivia, desde cedo trabalhou. Sua origem popular certamente contribuiu para com sua dedicação aos movimentos sociais e às lutas feministas.

A sorte da família melhorou quando um dos irmãos de Lélia se tornou jogador do Flamengo, levando-os a se mudar para o Rio de Janeiro. Diferente de seus irmãos que só lograram concluir o ensino primário, Lélia pôde se aprimorar mais academicamente, graças ao patrocínio da família que empregava sua mãe como doméstica, quem, em um primeiro momento, a auxiliou financeiramente nos estudos.

Formando-se em História, Geografia e Filosofia, Gonzalez atuou como professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Gama Filho. Fundou o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro e o Movimento Negro Unificado. Além disso, participou do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, nos anos de 1985 a 1989, e da Assembleia Constituinte de 1987, como membra da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, emprestando todo seu valoroso conhecimento acadêmico e sua vivência militante ao processo que culminou na atual Constituição da República.

Em seus trabalhos, Lélia Gonzalez abordou a condição social da população negra no Brasil e, em especial, das mulheres negras, apontando para a exploração econômica e a discriminação racial e de gênero como fatores que as mantinham na base da pirâmide social, numa situação de vulnerabilidade difícil de superar. Com base na psicanálise freudo-lacaniana, Lélia propôs uma descolonização epistemológica, com seu conceito de “pretuguês”, por exemplo, a fim de denunciar que as ideologias eurocêntricas dominantes minimizavam a contribuição cultural dos negros. Ela também desafiou a ideia de democracia racial no Brasil, que, segundo ela, escondia o racismo estrutural da sociedade brasileira e afetava particularmente as mulheres negras.

A nosso ver uma das grandes contribuições que a autora nos deixa diz respeito à discussão sobre racismo. Ela inovou ao demonstrar que essa questão não se resume ao binômio “preto-branco”, o que pode ser entendido a partir dos alertas que Gonzalez fez em seus trabalhos acerca da diversidade e pluralidade cultural da América Latina e por sua opção de muitas vezes se referir à “etnia” em vez de “raça”. Certamente por seus laços familiares, ela diversas vezes lembrou a importância de se considerar também a questão indígena no Brasil, por exemplo. Vemos em Lélia Gonzalez, portanto, as sementes de um desejo profundo de se consolidar e ampliar os horizontes da discussão racial no Brasil.

De qualquer modo, no Brasil e no mundo, Lélia Gonzalez foi inovadora no campo do feminismo crítico, ao propor uma análise que integraria gênero, raça e classe, antes mesmo da teoria da interseccionalidade de Kimberlé Crenshaw, nos anos de 1990 nos Estados Unidos. A autora construtivamente criticou os movimentos feministas de sua época, por considerar que negligenciavam as questões das mulheres negras e indígenas, argumentando por um feminismo afro-latino-americano que extraísse sua força justamente daquilo que lhe era único: seu caráter plural e multirracial.

Gonzalez defendeu a necessidade de analisar a opressão sofrida pelas mulheres latino-americanas através de uma lente que integrasse questões de raça, classe e gênero, destacando como as mulheres e, sobretudo, as negras eram as mais exploradas econômica e sexualmente. Para analisar especificamente a situação das mulheres negras no Brasil, Lélia propôs problematizar as noções de “mulata”, “mãe preta” e “doméstica”, cujo uso, ainda que não intencional, podemos perceber em valiosas obras literárias brasileiras escritas por autoras negras e autores negros, tais como o comovente “Quarto de Despejo”, de Carolina de Jesus (o meu favorito desta pequena lista), “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, ou “Solitária”, de Eliana Alves.

Gonzalez também cunhou o importante conceito de divisão sexual e racial do trabalho, para, ao fim, denunciar que as mulheres negras sofriam tríplice discriminação: por seu gênero, sua raça e sua classe social. Sua contribuição, portanto, é fundamental para os estudos de gênero, raça e classe no Brasil, destacando-se como uma sólida teoria crítica para a compreensão das desigualdades sociais.

Sobre a realidade brasileira, inserida no contexto da Ditadura Militar, ela estudou o capitalismo dependente brasileiro, utilizando-se de categorias marxistas, tais quais “classe”, “ideologia” e “consciência”, a fim de tentar explicar as razões pelas quais a população negra sempre se mantinha em uma situação social desigual, mesmo após a abolição da escravidão. A crítica aos privilégios de classe, portanto, era central em seu pensamento. Analisando dados de sua época, Gonzalez denunciou que as pessoas negras eram as que tinham menos escolarização, as menores remunerações e as piores condições de trabalho, sendo que as mulheres negras estavam ainda mais vulnerabilizadas.

Atualmente, esse infeliz quadro pouco se alterou, o que demonstra o quanto o pensamento de Lélia Gonzalez permanece relevante para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, uma vez que aborda como racismo, patriarcalismo e capitalismo se interconectam na perpetuação das desigualdades no Brasil.

*Ketline Lu é advogada, mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Direito Constitucional e Direito Ambiental, graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Lucas Botelho