As mudanças climáticas representam uma das maiores ameaças globais do século, com impactos profundos para toda vida do planeta e, em especial, para a humanidade. Entre os muitos desafios impostos por esse fenômeno, a proliferação de doenças em áreas urbanas destaca-se como uma preocupação crítica para a saúde pública, principalmente ao se considerar, no caso do Brasil, que mais de 85% da população vive nessas áreas.
Nas cidades, em especial, tem-se evidenciado um fenômeno antrópico relevante: a produção do clima urbano, resultado das intensas relações entre a sociedade e natureza sobre o espaço citadino. Uma das consequências mais diretas do impacto das mudanças climáticas nas cidades é o fortalecimento das chamadas “ilhas de calor”, fenômeno produzido pela alta concentração de concreto, asfalto e outras superfícies artificiais que absorvem e retêm calor, resultando em temperaturas significativamente mais altas do que as áreas rurais circundantes.
A rápida urbanização sem planejamento adequado resulta em áreas densamente povoadas com infraestrutura deficiente. Bairros de periferia e favelas muitas vezes carecem de serviços básicos, como água potável, esgoto e coleta de lixo, criando ambientes propícios para a propagação de doenças infecciosas. Ademais, devido a maior frequência de eventos climáticos extremos, do aumento da temperatura e da mudança nos padrões de precipitação, que ocorrerão por conta das mudanças climáticas, são criadas ou fortalecidas situações favoráveis para a disseminação de doenças, colocando em risco a saúde de milhões de pessoas que vivem em cidades ao redor do mundo. E embora as doenças tenham uma gênese multicausal, o clima funciona como um importante condicionante ambiental.
Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, 2023), a maior ocorrência de chuvas intensas, além de produzir mais eventos de inundação e alagamentos, favorecem o aumento de casos de leptospirose. Da mesma forma, o aumento das temperaturas cria um ambiente ideal para a reprodução de vetores de doenças como o mosquito Aedes aegypti, responsável pela transmissão da dengue, zika e chikungunya. Estudos indicam que a elevação das temperaturas pode acelerar o ciclo de vida desses mosquitos, aumentando sua capacidade de reprodução e disseminação. Temperaturas mais altas podem expandir a área geográfica habitável para esses vetores, permitindo que doenças anteriormente restritas a regiões tropicais e subtropicais se espalhem para áreas mais frias.
As mudanças climáticas estão associadas a uma maior frequência e intensidade de eventos climáticos extremos, como enchentes e secas. Esses eventos têm um impacto direto na infraestrutura urbana e na saúde pública. Enchentes, por exemplo, podem contaminar fontes de água potável com resíduos, produtos químicos e agentes patogênicos, facilitando a propagação de doenças transmitidas pela água, como a leptospirose e a hepatite A, pois a falta de acesso à água limpa e de instalações sanitárias adequadas aumenta o risco de surtos de doenças infecciosas.
Diante desse cenário alarmante, é imperativo que governos, organizações de saúde e a sociedade civil adotem medidas de adaptação e mitigação para proteger a saúde pública nas áreas urbanas. Uma abordagem integrada e multidisciplinar é essencial para enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas. Nesse contexto, proposta que vem ganhando força nos últimos anos e que vem sendo incentivada pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2024) é a que adota o conceito de Saúde Única. Segundo o Ministério da Saúde, a ideia, incorporada ao plano de ação “Uma só saúde”, baseia-se em uma abordagem multisetorial integrada, unificada e sustentável, envolvendo a saúde humana, animal e ambiental, o que difere da forma segregada em que esse tema é tratado atualmente nos municípios.
Analisando o problema a partir da própria estrutura urbana, é fundamental que sejam realizados investimentos em infraestruturas mais resilientes, visando mitigar também os impactos das mudanças climáticas na saúde urbana. Sistemas de drenagem eficientes podem reduzir o risco de enchentes, enquanto a melhoria dos serviços de saneamento básico pode prevenir a contaminação da água e a propagação de doenças de veiculação hídrica. Além disso, planos de contingência e a construção de abrigos seguros e adequados para populações deslocadas por desastres é crucial para garantir condições de vida dignas.
Não se pode deixar de considerar a implementação de políticas públicas voltadas para a redução das emissões de gases de efeito estufa, essenciais para conter a escalada das mudanças climáticas, mas também para reduzir os impactos locais dos poluentes que deixam as populações urbanas imersas em inúmeros problemas respiratórios.
As mudanças climáticas e a proliferação de doenças em áreas urbanas representam um desafio complexo e urgente para a saúde pública. As cidades, com suas altas densidades populacionais e infraestrutura vulnerável, estão na linha de frente dos impactos climáticos. A adoção de medidas de adaptação e mitigação, aliada a uma abordagem integrada que envolva governos, organizações de saúde e a sociedade civil, é crucial para proteger a saúde das populações urbanas.
Nossas cidades estão enfermas e a luta contra as doenças em um cenário de clima em transformação é uma corrida contra o tempo. É necessário agir agora, implementando soluções sustentáveis e resilientes, como em inúmeros casos bem-sucedidos que já vêm ocorrendo no mundo, aplicando soluções baseadas na natureza, para garantir que as gerações presentes e futuras possam viver em ambientes urbanos saudáveis e seguros. Somente com esforços conjuntos e contínuos será possível enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, preservar a saúde e o bem-estar das populações urbanas.
Por fim, mas não menos importante, emerge hodiernamente a necessidade de uma mudança de paradigma: é preciso repensar a forma como estamos nos apropriando dos recursos do planeta, além de deixar de ser uma sociedade que apenas remedia os problemas depois que eles ocorrem, passando a ser uma sociedade preventiva, quiçá regenerativa, que se antevê a esses infortúnios ao restaurar o ambiente em que vivemos e que deixaremos para as futuras gerações.
Referências
IPCC. Intergovernmental Panel on Climate Change. Reports. 15: Human Health: Impacts, Adaptation, and Co-Benefits. IPCC, Sixth Assessment Report, March 2023.
OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Comunicação sobre mudanças climáticas e saúde. OMS, março, 2024.
Edição: Mayala Fernandes