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Coluna

A reconfiguração dos golpes de Estado na América Latina e a necessidade de alargamento da democracia formal

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Investidas contra a democracia na América Latina adotam múltiplas facetas e protagonismo militar - JORGE BERNAL / AFP
A intentona golpista na Bolívia recoloca um conjunto de questões para as forças progressistas.

As novas investidas contra a democracia formal na América Latina vêm se revestindo, desde o final dos anos 1990 até nosso dias, de muitas facetas, conciliando ora o protagonismo das forças militares com coadjuvantes no parlamento, no judiciário e na mídia, ora com o protagonismo destes últimos, porém sempre com a tutela dos primeiros. Independentemente da situação, recorrem à mobilização das classes médias e têm os EUA como o principal coautor. Além disso, não se pode esquecer do papel desempenhado pelo fundamentalismo cristão.

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Diferentemente do que ocorria na segunda metade do século passado, quando as forças armadas assumiam o protagonismo não só do ato golpista, mas da própria condução de seus respectivos países, hoje, as forças golpistas têm se utilizado de mecanismos previstos nas constituições como forma de enquadrar o governante em algum crime. Partem, nestes casos, de uma interpretação casuística da lei e percorrem os caminhos previstos na carta magna, transmitindo, assim, aos espectadores, um ar de aparente legalidade.

O suposto respeito aos ritos institucionais tem sido a forma de legitimação dos golpes. Assim, as instâncias da ordem têm atuado para legitimar a arbitrariedade. Os golpes são, também, a legitimação de uma nova ordem que precisaria ser estabelecida, regida por uma moral conservadora e liberal, em contraposição às supostas corrupção generalizada e imoralidade reinante, sobretudo em relação ao controle dos corpos e aos currículos escolares. A militarização de escolas públicas no Brasil e a instituição de currículos nacionais unificados são expressões desse processo. Da mesma forma, em relação a uma suposta presença excessiva do Estado na economia e em favor dos subalternizados.

Os golpistas têm se articulado a partir do questionamento do resultado eleitoral, mobilizando forças políticas que haviam governado estes países desde o fim de suas respectivas ditaduras. São setores que haviam sido apeados do comando da máquina estatal no período mais recente, justamente pelos setores progressistas ligados ao passado de luta contra aqueles regimes autoritários dos anos 1950-1990. Representam as oligarquias herdeiras das ditaduras civis-empresariais e militares da região, bem como os políticos de longa data, do centro à extrema-direita, representantes diretos ou indiretos dos interesses dos mais diversos setores produtivos, que se perpetuam nos cargos eletivos e, não raras vezes, transmitem-nos para seus filhos. Compõem os extratos golpistas, fundamentalmente, empresários dos mais diversos ramos dos serviços e da indústria: agronegócio, latifundiários, os grandes grupos das comunicações, articulados ao fundamentalismo religioso de matriz cristã e aos interesses internacionais.

As forças golpistas, apesar de múltiplas e variadas em cada país, insurgem-se, sempre, contra o estabelecimento ou ampliação de programas sociais e de distribuição de renda, bem como medidas que apontam para um postura mais autônoma da economia nacional e regional, mesmo que não representem qualquer possibilidade de ruptura em relação às determinações postas pelos interesses imperialistas. Mobilizam-se, também, por pautas morais em torno das questões de gênero, da família e da educação, por exemplo. Assim, logo após reassumirem o comando direto da máquina estatal, aceleram e aprofundam as políticas contra o povo pobre e trabalhador, bem como “batem continência” para o capital internacional. Quando assumem uma feição institucional, tais golpes mascaram as intenções dos setores economicamente dominantes na sociedade, que não toleram nenhuma medida que contrarie seus objetivos, independentemente da filiação ideológica do governante.

Tais forças buscam se apresentar como o esteio da ordem, no entanto, sempre que seus negócios são contrariados, não hesitam em romper com a oficialidade. Valem-se da institucionalidade quando lhes convém, mas a subvertem quando seus objetivos exigem o contrário. Contam, para isso, com as forças armadas, expressão máxima da contradição entre o sofisma da manutenção da democracia formal e o recurso à violência, evidenciada historicamente na perpetração de golpes e na direção de regimes autoritários.

O caso da Bolívia

Apesar de muito recente, é possível apontar alguns elementos sobre o motim fracassado na Bolívia. Primeiramente, a tentativa de usurpação do poder tem sido apontada como reflexo imediato da destituição do comandante geral do Exército, Juan José Zúñiga, após este declarar que as forças militares “prenderiam Evo Morales”, o qual havia, recentemente, anunciado o seu interesse em retornar à presidência do país. Segundo, a Bolívia possui a maior reserva de lítio do mundo, minério fundamental para a produção de baterias de alto rendimento para alimentar os carros elétricos. Estas jazidas, estimadas em 23 milhões de toneladas, estão sob controle estatal e o governo estabeleceu parceria com a China e com uma empresa russa para a sua industrialização. Terceiro, lembremos que em 2020, Elon Musk, dono de uma das empresas que está na corrida dos carros elétricos e, portanto, tem interesse no lítio boliviano, anunciou: "Vamos dar golpe em quem quisermos". Por fim, além das tensões políticas, a Bolívia vem atravessando uma crise econômica em razão da queda nas exportações do gás natural e pela pandemia de COVID-19, acarretando escassez de dólares e um parco crescimento econômico.

Uma situação significativa sobre os eventos do dia 26 de junho, em La Paz, tem sido o posicionamento do ex-presidente, Evo Morales, questionando se de fato estaríamos diante de um golpe de Estado ou de um autogolpe em favor do atual presidente, Luis Arce. Futuras investigações poderão desvendar tais questões, principalmente, em se tratando de um golpe de fato, ao desmascarar qual era a força dirigente e quais setores civis, militares, do parlamento e da burocracia estatal, atuaram em favor da ruptura institucional. Sem estas e outras respostas, ganha força a tese do autogolpe, contra a qual pesa a imediata prisão dos militares.

A doutora em Ciências Históricas da Universidad de La Habana, Cuba, Loreta Telleria Escobar, esclarece que durante o governo de Evo Morales as forças armadas do país tiveram sua imagem positivada frente a sociedade por intermédio de políticas sociais e de desenvolvimento para a quais, numa perspectiva pragmática, foram chamadas à protagonizar. Além disso, teria havido incremento no orçamento e nos recursos militares. Outro ponto importante destacado por Escobar, diz respeito ao fato de que na ausência de reformas estruturais profundas, as FFAA continuam sendo uma instituição suscetível à instrumentalização por interesses externos e das elites locais, perpetuando o mito de defesa da democracia.

Lições Bolivarianas

Para além da necessária elucidação destes fatos, é fundamental considerar que a reconfiguração dos golpes na América Latina vêm ocorrendo justamente em um período marcado por posturas antineoliberais e reformas sociais significativas adotadas durantes os governos Chávez, Morales e Correa, e, de forma muito mais tímida, por governos alinhados com as forças progressistas e com os movimentos sociais, populares e sindical, como as gestões do PT no Brasil. Outro fato importante é que esta nova onda golpista, com exceção de Hugo Chávez (2002), intensificou-se após a crise econômica de 2008.

Cabe destacar, no entanto, o papel desempenhado pelos movimentos sociais na contenção dos golpes, à exemplo da Venezuela, em 2002, e, agora, na Bolívia. A forte reação popular contra a deposição de Chávez garantiu a sua recondução à presidência. No país Andino, vídeos mostram o povo colocando para correr os militares que sitiaram o palácio Quemado. Entretanto, a imagem de um carro de combate sendo atirado contra as portas do palácio presidencial em La Paz, no último dia 26, precisa soar como um alerta. As mesmas FFAA beneficiadas por Morales, numa espécie de “União e Reconstrução” altiplânica, protagonizaram a sua renúncia em 2019. A sua política pragmática não conteve o ímpeto de fiel da balança da democracia que os militares miticamente representam. Agora, em 2024, eles voltam à cena recitando a mesma ladainha da defesa da democracia. A resposta imediata do povo e dos movimentos sociais em defesa da institucionalidade foi providencial para derrotar o golpe. O mesmo pode se dizer do governo, que imediatamente prendeu alguns dos principais envolvidos, principalmente Zúñiga.

Na Venezuela, em 2002, além da prisão, expulsão, aposentadoria forçada e exílio de militares golpistas, Chávez iniciou uma verdadeira reestruturação nas FFAA. Promoveu mais de mil oficiais leais, instituiu uma estrutura de comando que lhe garantisse maior controle e, ainda, inaugurou uma nova doutrina militar a qual enfatizava a lealdade ideológica ao governo bolivariano e à revolução socialista, com formação política anti-imperialista alinhada à defesa da soberania.

Questões a refletir

A intentona golpista na Bolívia recoloca um conjunto de questões para as forças progressistas, populares e de esquerda da América Latina refletirem. Primeiramente, cabe pensar como as organizações populares e sindicais podem atuar para, por um lado, garantir a institucionalidade  contra tentativas de golpes de Estado, em um contexto de forte tensionamento externo e interno e, ao mesmo, construir possibilidades de alargamento da democracia formal. Dessa reflexão, desdobra-se outra mais complexa: como mediar o apoio a governos de base popular e progressistas, em um contexto de crescimento das forças de extrema-direita, com a ação autônoma e reivindicativa das entidades e organizações da classe trabalhadora? 

A greve dos servidores públicos federais da educação, no Brasil, recentemente encerrada, foi fortemente marcada pela tergiversação de lideranças governistas que atuaram muito mais em defesa do governo do que em favor dos interesses das respectivas categorias. Exemplo sintomático disso foi o Proifes. Dentre os argumentos contrários à deflagração e à manutenção da greve estava a blindagem do governo Lula, mesmo este tendo atendido diversas pautas dos setores golpistas, como reajuste salarial, ampliação de concessões de rádio e TV, o código das PMs, por exemplo. Situação que nos leva a um segundo problema: a relação entre os interesses do capital internacional e as disputas políticas internas protagonizadas pelos setores dominantes e o papel dos movimentos populares e sindical na construção da contra-hegemonia.

Por fim, se há um elemento primordial na reconfiguração dos golpes na América Latina, ele está diretamente vinculado, por uma lado, ao fracasso dos governos progressistas em promover reformas políticas e econômicas estruturais e, por outro, à falta de uma perspectiva de superação das contradições da sociedade capitalista por parte dos setores que se autoproclamam de esquerda. Agitar as bandeiras vermelhas e desfilar camisetas com frases críticas e revolucionárias pode até manifestar descontentamento com a situação social e política e expressar o desejo de mudança, mas em nada contribuem se desvinculadas de ações concretas. Da mesma forma, assumir uma postura correta sobre a política internacional, tal qual Lula tem feito, mas omitir-se das disputas em território nacional, beira ao oportunismo e pode, inclusive, representar fraqueza do governo, que até aqui tem sido pautado pelas forças golpistas e da extrema-direita. Se o movimento sindical hegemônico continuar atuando como para-choque da luta de classes, o único efeito prático parece ser o fortalecimento das forças de direita e da extrema-direita, justamente o contrário do que pretendem.

Para saber mais:

La crisis de la democracia en América Latina. https://libreria.clacso.org/publicacion.php?p=3134

Edição: Lucas Botelho