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Observatório das Metrópoles | O município é onde se mora, mas é na metrópole que se vive

Moradia como articuladora das políticas metropolitanas e o desafio da sua gestão compartilhada

Curitiba (PR) |
Ignorar a moradia como elemento central no planejamento da metrópole de Curitiba resulta em exclusão social - Pedro Carrano e Lucas Botelho

Neste artigo abordamos a centralidade da questão da moradia para o planejamento metropolitano, tema que precisa ser urgentemente enfrentado pelas candidaturas e, principalmente, pelos próximos governos municipais eleitos.

Mas afinal, por que defendemos a incorporação da dimensão metropolitana da moradia no planejamento da Região Metropolitana de Curitiba (RMC) e na gestão dos seus municípios?

Conforme demonstrou o Censo IBGE, entre 2010 e 2022 os municípios limítrofes a Curitiba tiveram um crescimento populacional maior do que o observado no polo. Enquanto a capital cresceu a uma taxa de 0,1% ao ano, os demais municípios apresentaram uma taxa de 1,77% ao ano.

O Censo confirmou também o que diversas pesquisas têm apontado nos últimos anos: que a expansão metropolitana se realiza de forma cada vez mais dispersa, alcançando municípios menos urbanizados e mais distantes do polo, como Mandirituba, Contenda, Itaperuçu, Rio Branco do Sul e Campina Grande do Sul.

Essa expansão se expressa também pela intensificação da pobreza e o crescimento de espaços de moradia precários – formais e informais - nas periferias da metrópole. Segundo a Fundação João Pinheiro, entre 2000 e 2019 o déficit habitacional na RMC praticamente dobrou, passando de 42.784 para 85.132 unidades. Além disso, 1 em cada 4 domicílios em 2019 tinha alguma precariedade ligada à infraestrutura urbana ou à construção da casa. Contraditoriamente, o Censo 2022 também identificou um aumento significativo de domicílios vazios, que totalizaram 161.723 unidades. Ou seja, nossa realidade é marcada pela existência de muitas habitações vazias em áreas urbanizadas e um contingente expressivo de famílias pobres vivendo em áreas periféricas e precárias, ou sem casa.

Para além do aumento dos custos ao poder público provocados pela contínua expansão metropolitana e a ocupação de áreas destituídas de infraestrutura e equipamentos urbanos, esse crescimento tem efeitos importantes na realização da vida cotidiana dos que habitam a metrópole. Uma metrópole é uma cidade com extensa superfície territorial, que no caso brasileiro normalmente abarca mais de um município. As partes dessa cidade são ligadas por fluxos (de pessoas, veículos, mercadorias, informações etc), mais ou menos frequentes e intensos a depender dos espaços interconectados, dos motivos pelos quais essas conexões se estabelecem e do período do dia em que se realizam.

Os fluxos de pessoas, de grande intensidade e relevância, têm como pontos de partida e de chegada o lugar onde se mora, a habitação. Estes fluxos acontecem diariamente, para a realização das necessidades básicas da vida da população: trabalho, estudo, acesso a hospitais, comércios, serviços etc. Quanto mais precários e distantes os lugares onde as pessoas moram estiverem dessas atividades, piores as condições de vida da população.

Na metrópole de Curitiba é a população de baixa renda que mora nessas periferias, em habitações precárias, enfrentando longas jornadas diárias no transporte público, acesso limitado a equipamentos, serviços e infraestrutura urbana. Além disso, muitas estão localizadas em regiões inadequadas para se morar, sujeitas a riscos e violências. Sobrepondo-se a essa condição, a população pobre e periférica tem sido a parcela menos assistida pelas políticas habitacionais praticadas na RMC.

Essa situação é piorada quando as políticas públicas desconhecem que em uma metrópole a vida das pessoas não está restrita a um município. Ou seja, embora constitua uma única cidade na realização da vida da população, a divisão político-administrativa dos municípios e a falta de integração e cooperação na formulação das políticas públicas têm efeitos graves na qualidade de vida da população, principalmente as famílias mais pobres e vulneráveis.

Para o enfrentamento desse problema é preciso considerar ainda as diferentes capacidades institucionais dos municípios para executar as políticas de habitação, transporte, saneamento etc. Ou seja, para promover políticas cooperadas em escala metropolitana é preciso considerar as diferenças e enfrentar as capacidades institucionais assimétricas entre os municípios. A abordagem isolada de questões comuns, como a habitação, impede que as causas dos problemas sejam enfrentadas e agrava as condições de reprodução da vida.

Nesse contexto, o Estatuto da Metrópole (Lei Federal n° 13.089/2015) determinou que as regiões metropolitanas brasileiras elaborassem seus Planos de Desenvolvimento Urbano Integrados (PDUIs), para definir diretrizes e ações de planejamento metropolitano que atuem nos problemas impossíveis de serem tratados individualmente, e que devem ser incorporadas pelas políticas públicas dos municípios metropolitanos.

A omissão da moradia nos planos metropolitanos da RMC até 2023

Nos PDUIs, a gestão dos temas comuns – chamada pelo Estatuto da Metrópole de funções públicas de interesse comum (FPICs) – deve estar voltada para o desenvolvimento econômico-social da RM, a justa distribuição dos seus benefícios e a definição de políticas compensatórias dos efeitos da polarização exercida pelos principais municípios.

Conforme evidenciamos, a moradia é fundamental para a realização da vida e por isso suas demandas precisam ser tratadas de forma conjunta, cooperada e articulada, entre municípios metropolitanos e deles com o governo do estado. Entretanto, apenas em 2023, com o início dos trabalhos do PDUI, essa questão passou a ser institucionalmente considerada como uma FPIC.

Os Planos Diretores Integrados (PDI) da RMC elaborados entre 1978 e 2006, antepassados do PDUI, reconheceram a habitação como uma questão metropolitana, mas não definiram diretrizes específicas para o seu enfrentamento de forma conjunta entre os municípios. Apesar dessa compreensão e da elaboração de diagnóstico social identificando a complexidade da realidade e da dinâmica metropolitana, os PDIs limitaram-se a propor diretrizes viárias, macrozoneamento de uso do solo e a apresentação de recomendações para a implementação de instrumentos considerados necessários ao ordenamento da expansão e do crescimento urbanos.

A abordagem da questão habitacional naqueles planos foi tratá-la como uma falha de mercado que deveria ser corrigida pelo Estado, sem a consideração das implicações sociais, econômicas e territoriais para o planejamento urbano e de ferramentas para regulá-lo. Do ponto de vista institucional, o órgão responsável pela gestão da RMC na época, a Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba (COMEC), atuou mais no apoio às ações das companhias de habitação – COHABs e COHAPAR -, do que na formulação de políticas habitacionais de caráter metropolitano. A falta dessas políticas aprofundou a carência e a precariedade habitacional, refletida na exclusão da população de menor renda do acesso à direitos.

Ao não reconhecer a moradia como um elemento crucial, que influencia e é influenciado por outras demandas metropolitanas, a política urbana praticada na RMC resultou em um planejamento fragmentado e incompleto.

O PDUI da RMC tem o desafio de alterar radicalmente o planejamento e a gestão metropolitana, para reverter décadas de exclusão dos mais pobres e efetivar a cidadania metropolitana. Esse desafio é maior quando se observa o desmonte sofrido pela Comec nas últimas décadas, agora reorganizada na Agência de Assuntos Metropolitanos do Paraná (AMEP), responsável pelas oito regiões metropolitanas do estado.

O que é preciso para enfrentar o problema?

A moradia é imprescindível para o planejamento metropolitano. Os problemas a ela relacionados, não enfrentados de modo cooperado e articulado entre os municípios, têm impedido o acesso à moradia digna e à cidadania aos que mais dependem das políticas públicas.

Assim, é necessária e urgente a abordagem integrada da questão, pois como afirmado, embora o endereço de onde se mora leve o nome de um município, o dia a dia da população se realiza para além dele, na escala da metrópole.

Quando planejada por meio de uma visão integrada, cooperada e articulada, a moradia digna garante aspectos fundamentais para a realização da vida na metrópole. A proximidade da casa com o trabalho, o estudo e os equipamentos públicos; um transporte público próximo, acessível, de qualidade e que viabiliza o menor gasto de tempo nos deslocamentos; a habitação implantada em áreas com saneamento e todas as infraestruturas necessárias, em espaços que não estejam sujeitos a riscos e violências; e construída para atender com qualidade as necessidades das famílias, são elementos que fundamentam a moradia adequada.

Ignorar a moradia como elemento central no planejamento da metrópole de Curitiba resulta em exclusão social, perpetuando problemas que poderiam ser mitigados com políticas integradas e inclusivas. Nesse sentido, a elaboração do Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI) da RMC é uma oportunidade para a avaliação crítica e o enfrentamento compartilhado dos desafios que se apresentam para a promoção da moradia digna.

Por fim, é crucial que a cooperação dos municípios entre si e deles com governo do estado, se realize por meio do estabelecimento de uma governança metropolitana, apoiada por instituições públicas robustas e gestores capacitados para compreender, planejar e gerir a questão habitacional considerando sua dimensão metropolitana.

A moradia deve ser tomada como elemento integrador das demais questões de interesse comum em uma metrópole, o que significa tomá-la como o ponto de partida para se alcançar o direito à cidade e efetivar a cidadania.

Referências:

 

CONSÓRCIO PDUI SUSTENTÁVEL DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA (RMC). Memória da oficina: FPIC de Habitação De Interesse Social. Curitiba, PR. 2023. Disponível em: https://www.pduirmc.com.br/_files/ugd/85cce1_b4489f33406141a4b70a7ffd2075faa4.pdf. Acesso em: 18 jul. 2023.

COORDENAÇÃO DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA (COMEC). Plano de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Curitiba. Curitiba, PR. 2006. 303 p. Disponível em: https://www.amep.pr.gov.br/sites/comec/arquivos_restritos/files/documento/2019-11/pdi_2006.pdf. Acesso em: 18 jul. 2023.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO (FJP). Déficit habitacional no Brasil – 2016-2019. Fundação João Pinheiro. Belo Horizonte: FJP, 2021.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2022. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.

MARICATO, Ermínia. Brasil, Cidades: alternativas para a crise urbana. 5. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.

MOURA, Rosa. Para além do planejamento urbano: os desafios a serem enfrentados pela metrópole Curitiba. In: COELHO, L.X.P. (org). O mito do planejamento urbano democrático: reflexões a partir de Curitiba. Curitiba: Terra de Direitos, 2015. Cap.6, p. 152-157. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/wp-content/uploads/2015/11/site-O-mito-do-planejamento-urbano-democr%C3%A1tico.pdf. Acesso em: 11 jul. 2020.

MOURA, Rosa; BALISKI, Patrícia; NUNES DA SILVA, Madianita; GORSDORF, Leandro. Censo 2022: crescimento periférico, expansão da metrópole e diversidade na Região Metropolitana de Curitiba. Artigos semanais. Boletim do Observatório das Metrópoles, 28 set. 2023.

NUNES DA SILVA, Madianita. A dinâmica de produção dos espaços informais de moradia e o processo de metropolização em Curitiba. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Tecnologia, Curitiba, 2012. Disponível em https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/28377. Acesso em: 29 abr. 2024.

RANSOLIM, Eduardo de Souza. Desenvolvimento socioespacial em espaços em conversão rural-urbano: uma análise dos Setores Especiais de Núcleos Urbanizados do Município de Mandirituba – PR. Curitiba: Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2022.

VACCARI, Lorreine Santos. Moradia como função pública de interesse comum na metrópole de Curitiba. Dissertação (mestrado em Planejamento Urbano) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Tecnologia, Curitiba, 2018. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/57167. Acesso em: 15 abr. 2024.

Minibiografia da(o)s autora(e)s:

Eduardo de Souza Ransolim é Arquiteto e Urbanista, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da Universidade Federal do Paraná (PPU/UFPR). Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles.

Lorreine Santos Vaccari é Arquiteta e Urbanista formada pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduada em Gestão Técnica do Meio Urbano (GTU Internacional) pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Mestra em Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Paraná.

Marcelle Borges Lemes da Silva é Arquiteta e Urbanista, Mestra em Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Paraná e doutoranda em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles e o Laboratório de Estudos e Projetos Urbanos e Regionais (LEPUR) da UFABC.

Madianita Nunes da Silva é Arquiteta e Urbanista, Mestre e Doutora em Geografia pela UFPR, com Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território da UFABC, Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da UFPR. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles e o Laboratório de Habitação e Urbanismo (LAHURB) da UFPR.


 

Edição: Pedro Carrano