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CINEMA POPULAR

Cinema. Notas sobre a produção dos filmes “Desapropriado” (1983) e “Quarup Sete Quedas” (1983)

O conflito originara-se com a desapropriação de suas terras férteis, condenadas à submersão pelo futuro lago da represa

Curitiba (PR) |
No âmbito da resistência à hidrelétrica de Itaipu, além do notável grupo de pequenos agricultores proprietários de terras, havia expressivo número de posseiros - Divulgação

A projeção dos filmes “Desapropriado” (1983) e “Quarup Sete Quedas” (1983), às 19h do próximo dia 30 de abril de 2024, na Cinemateca de Curitiba, se inscreve em uma série de eventos – universitários, escolares, públicos – de Memória dos 60 anos da Ditadura civil/militar de 1964.

Histórico da produção

Em 1983, recém-retornado ao Brasil após 12 anos residente na Alemanha – onde havia cursado a Faculdade de Comunicação Social da Universidade Livre de Berlim (FUB), concluído o mestrado e, preparando-me para o doutorado – a emissora WDR TV, a maior da rede nacional de rádio e TV de direito público (ARD) - encomendou-me uma reportagem sobre o papel das igrejas no conflito entre a hidrelétrica de Itaipu e os pequenos agricultores do extremo oeste do Paraná.

O conflito originara-se com a desapropriação de suas terras férteis, condenadas à submersão pelo futuro lago da represa. Números da dimensão do drama: o lago alteraria o arranjo espacial de extensa área dos lados paraguaio e brasileiro. No lado brasileiro, foram afetados os municípios paranaenses de Foz do Iguaçu, Guaíra, Santa Helena, Terra Roxa, Marechal Cândido Rondon e São Miguel do Iguaçu, com um contingente de 42.444 pessoas desapropriadas, 38.445 do meio rural e 3.999 do meio urbano.

Para essa reportagem entrevistei o então pastor da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IECLB) Werner Fuchs, bispos católicos da região afetada, e também a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Mas a reportagem seria e foi vista apenas pelos telespectadores da Alemanha, enquanto fazia falta na região afetada um filme que documentasse seu histórico de resistência, como também de advertência à construção de hidrelétricas, com disputa de Direitos com armas desiguais.

Ocorreu-me então a ideia de produzir um documentário com essa pauta, ideia imediatamente endossada pelo Pastor Fuchs. Assim, poucos meses após a produção de um roteiro e submissão de um orçamento, a Igreja Luterana da Alemanha aprovou o financiamento do filme.

No entanto, ao espectador atento não escapará que o filme tem um quê de crônica, porque foi filmado em etapas ao longo de 1 ano e meio; justamente para documentar a desolação dos afetados pela demora das duras negociações e os impactos que o avanço das obras ia causando nas comunidades.

A tragédia dos sem-terra no Acre: “Desapropriado” é a primeira produção da história cinematográfica do Paraná, com locações na Amazônia

Pertence ao meu método de trabalho no gênero Documentário, apostar no improvável e correr riscos.

O contexto: No âmbito da resistência à hidrelétrica de Itaipu, além do notável grupo de pequenos agricultores proprietários de terras, havia expressivo número de posseiros, sem título de propriedade. E este grupo tornou-se alvo de uma campanha da então direção da Itaipu, do general José Costa Cavalcanti, em cooperação com o Incra. Mediante cartões postais com informações e promessas fantasiosas, muitas famílias de posseiros da área a ser inundada pela hidrelétrica foram atraídos para as profundezas amazônicas do Acre.

Lá chegando, foram assentados no olho da floresta – sem qualquer infraestrutura, sem assistência, proteção e assessoria - após ano e meio de mera sobrevivência, passo a passo morreriam de malária e outras doenças tropicais. Quando essas notícias alcançaram meus ouvidos, não hesitei em reunir minha equipe técnica – integrada pelo diretor de fotografia Florian Pfeiffer, de São Paulo, e o técnico de som, Mauro Lando, do Rio de Janeiro – e embarcar em um voo a Rio Branco, capital do Acre.

Lá, com o apoio logístico do Conselho Missionário Indígena (CIMI) e da CPT, a uns 50 quilômetros da capital, com um jipe logo atolado no lamaçal de um igarapé, por isso abandonado e caminhando uns 15 quilômetros pela mata com o equipamento técnico nas costas, conseguimos alcançar pelo menos um dos acampamentos de posseiros do Paraná, e com seus depoimentos contundentes e as imagens desoladoras do ambiente onde sobreviviam, documentar um dos impactos mais dramáticos, humana e ambientalmente indefensáveis, tratados como “efeito colateral” da construção de Itaipu.

“Desapropriado”: filme impediu a construção de hidrelétricas no sul do Brasil que violariam Direitos dos pequenos agricultores

O pastor Werner Fuchs – incentivador da produção de “Desapropriado”, que, emprestando sua liderança espiritual à causa dos pequenos agricultores, desempenhou incansável papel de incentivador de sua resistência - é autor da frase estimativa, de que “foi o filme mais visto no Paraná nas décadas de 1980 e 1990”, referindo-se a sem número de eventos de resistência de pequenos agricultores com a projeção de “Desapropriado”; que, filmado em película 16mm, exigia a disponibilidade do respectivo projetor, nem sempre ao alcance das mãos.

Quem liderou as projeções do filme, foi Gilberto Carvalho - então diretor da Pastoral Operária do Paraná e futuro chefe da Casa Civil do primeiro governo Lula (2003-2006) – que estimou sua assistência Brasil afora em 250 mil pequenos agricultores e trabalhadores sem terra, impedindo, sobretudo na Região Sul, a construção de novas barragens previstas pelos sucessivos governos.


Ditadura militar impactou organizações urbanas, mas também os setores rurais / Divulgação

“Desapropriado” documenta a gestação do MST

Para minha própria surpresa (porque ignorava esse detalhe até há poucos anos), em uma sequência, a partir do minuto 36´0, o filme documenta uma assembleia do então Movimento dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paraná (Mastro), com a participação de centenas de pequenos agricultores com e sem terra. Segundo testemunhas e militantes das causas da Terra da época, trata-se da documentação de uma assembleia considerada histórica, que, junto, com outras ocorridas Brasil afora, culminaria na fundação do MST, em 1984.

Reações da Ditadura Civil/Militar à produção de “Desapropriado” e “Quarup Sete Quedas”

O bloco principal das filmagens no oeste do Paraná ocorreu entre o primeiro e o segundo semestre de 1982. Mas, documentam as imagens de “Desapropriado”, até mesmo após o fechamento das comportas da hidrelétrica, em outubro de 1982, minha equipe incursionou em trechos da área afetada para documentar a subida das águas.

Sim, por vezes cruzamos pontes abandonadas, prestes a se desabar sob o peso do nosso carro, ou termos que retornar ao ponto de partida de uma locação, porque uma e outra estradas já estavam bloqueadas, sem saída. A direção da Itaipu irritou-se com nossa presença teimosa, alegando falta de segurança, mas a razão principal de sua irritação deveu-se ao fato de documentarmos “o outro lado” de sua própria narrativa.

O mesmo ficou evidenciado com a irritação da Funai-PR – à época dirigida por funcionários da ditadura – diante de minhas filmagens na aldeia do grupo Avá-guaraní nas proximidades da margem do Rio Paraná e do município de Santa Helena. Com seu território ancestral ameaçado pelo dilúvio da barragem, nossa câmera documentou, semanas antes de seu despejo pela hidrelétrica, seu ritual Jeroky, de invocação do equilíbrio cósmico.

Após aquelas filmagens, eu trouxe o cacique e um acompanhante para Curitiba, hospedei-os em minha casa e - para maior irritação ainda da Funai e da Itaipu Binacional - convoquei uma coletiva de imprensa para que os Guaraní dessem vazão a seu protesto; protesto, cuja justeza voltou a expressar-se quase 40 anos mais tarde – com um surto de suicídio coletivo - diante do desespero dos Guaraní alojados em território desmatado e sem perspectiva de reconstrução de sua identidade e economia.

É importante enfatizar que, diante das pressões políticas da Itaipu, dos então governos do Paraná e Federal e da falta de coragem da Fundação Cultural de Curitiba, a realização do “Quarup Sete Quedas” não teve um centavo sequer de financiamento público. A produção, as filmagens (inclusive com cenas aéreas) e a montagem em São Paulo (pelas talentosas mãos do saudoso montador curitibano Mauro Alice, que à época trabalhava para a produtora Vera Cruz) foi integralmente financiada por mim.

Frederico Füllgraf é cineasta.

Edição: Pedro Carrano