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Opinião. A operação Lesa Pátria e o caráter de classe do 8 de janeiro

Somente o estado de São Paulo concentrou cerca de 44% dos financiadores e a região Sudoeste, 57%

Curitiba (PR) |
Dado importante para a análise da relação de forças para os próximos embates é que a maioria dos contratantes é da região Sul e Sudeste, justamente onde Bolsonaro obteve uma grande votação - Evaristo Sá/AFP

A operação Lesa Pátria foi deflagrada pela Polícia Federal (PF) logo após os violentos ataques contra a sede dos três poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023.

O objetivo da operação tem sido investigar financiadores, participantes e organizadores dos atos de vandalismo perpetrados por simpatizantes do candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2022 contra o patrimônio público, envolvendo, inclusive, os financiadores dos acampamentos em frente aos quarteis das forças armadas.

Quando a Lesa Pátria completou um ano de operações, a PF divulgou um balanço: 97 Mandados de prisão preventiva; 313 Mandados de busca e apreensão; R$ 11.692.820,29 em valores de bens apreendidos; R$ 5.032.147,00 em valores de veículos apreendidos; R$ 8.400.00,00 em valores de ônibus apreendidos. A operação atingiu políticos, empresários, militares das forças armadas e de Polícias Militares, fazendeiros, pessoas com registro de armas (colecionadores, atiradores e caçadores - CAC’s), proprietários da imprensa radiofônica e armadores das mídias virtuais (ou, como se autodenominam, “influenciadores digitais”), dentre outros.

Em sua 25ª fase atualmente, deflagrada em fevereiro de 2024, as ações da Lesa Pátria se voltam, agora, mais especificamente, para os financiadores tanto dos acampamentos em frente aos quarteis, quanto ao deslocamento e permanência de manifestantes em Brasília.

Desde o início da operação, no entanto, diversos empresários de diferentes ramos já haviam sido identificados. Em relatório apresentado em julho de 2023 à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos atentados do dia 8/1, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) reportou a identificação de 83 pessoas e 13 organizações que contrataram 103 ônibus fretados com objetivo de transportar para Brasília 3.875 pessoas. Dado importante para a análise da relação de forças para os próximos embates é que a maioria dos contratantes é da região Sul e Sudeste, justamente onde Bolsonaro obteve uma grande votação, sobretudo em cidades do interior. Somente o estado de São Paulo concentrou cerca de 44% dos financiadores e a região Sudoeste, 57%.

É possível sugerir que o 8/1 foi financiado, sobremaneira, por micros e pequenos empresários, cujo maior capital social identificado até o momento não ultrapassa 1,5 milhão de reais. Vários investigados são donos de empresas de transporte. As investigações apontam, porém, que muitos dos ônibus fretados rumo à Brasília foram contratados em nome de supostos “laranjas” que, agora, negam envolvimento nos eventos daquele dia 8. Há, ainda, empresários de médio e grande porte, cujos patrimônios ultrapassam os R$300 milhões.

Dentre os empresários implicados há donos de lojas de celulares, empreendimentos imobiliários, prestação de serviços, telecomunicações (provedor de internet e similares), transportes terrestres, empresas de engenharia e serviços automotivos. O envolvimento mais elucidativo da trama golpista, entretanto, parece ser o subsídio advindo de empresários e fazendeiros do Pará, a partir dos quais é possível desvendar uma rede de atuação e organização política com objetivos para além da própria intentona do 8J, e que revela os interesses de parte, ao menos, do empresariado brasileiro de diversos ramos, como agropecuário, construção civil, mineração, dentre outros. É o caso de Enric Lauriano e Roberto Katsuda, cuja investigação revelou a ligação com o garimpo ilegal, depredação de áreas de proteção ambiental e desmatamento na floresta amazônica.

Lauriano integra a “Direita Xinguara”, organização coordenada por seu irmão, Franklin Lauriano. Enric não só financiou as ações golpistas como participou ativamente, tanto dos acampamentos em frente aos quarteis, como dos ataques do 8/1. Foi candidato a prefeito de Xinguara pelo Partido Social Liberal (PSL) em 2020, e candidato a suplente de senador em 2022 na chapa liderada por Flexa Ribeiro do Progressistas, ocasião na qual teria declarado um patrimônio de 3,3 milhões de reais. Enric é dono de uma construtora voltada para o agronegócio. No entanto, mais recentemente, tem atuado no garimpo, inclusive, com invasão das terras indígenas Kayapó e Trincheira-Bacajá, no sudeste do Pará. A família de Lauriano já foi multada em mais de 3 milhões por desmatar uma área equivalente a 800 campos de futebol.

Por ocasião dos eventos golpistas de 8/1, Enric compartilhou, por aplicativos de mensagens, uma campanha de arrecadação financeira para arcar com os gastos dos acampamentos em frente aos quarteis no Pará e em Brasília. O destino das contribuições era uma chave PIX de um estabelecimento comercial pertencente a Ricardo Pereira da Cunha, igualmente membro da Direita Xinguara, cujo nome foi associado a George Washington de Oliveira Sousa, preso e condenado pelo atentado à bomba do dia 24 de dezembro de 2022, na capital brasileira. Sousa, também do Pará, foi preso em um apartamento alugado em Brasília com um arsenal composto por fuzil, espingardas, revólveres, munições, explosivos, avaliado em mais de R$160 mil.

Segundo dados divulgados pelo jornalista Alceu Castilho, Sousa seria empresário, sócio de uma rede de postos de combustíveis no estado do Pará e em outros estados da região Norte. Além disso, é sócio de uma transportadora com unidades em ao menos cinco cidades do Norte e Nordeste. Os inúmeros postos de gasolina, de acordo com Castilho, estão espalhados por cinco dos nove estados da Amazônia legal e no chamado “arco do desmatamento” (região onde a fronteira agrícola avança em direção à floresta e também onde se encontram os maiores índices de desmatamento da Amazônia).

Entre março e dezembro de 2022, Sousa movimentou R$749 mil, período que antecedeu o atentado terrorista no aeroporto de Brasília e o 8/1. Segundo informações divulgadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) o patrimônio da família de Sousa e sua a rede de sociedades forma um conglomerado que unifica agropecuária, transportadoras e combustíveis. Não custa nada perguntar se toda essa estrutura não estaria a serviço do desmatamento e escoamento de madeiras ilegalmente extraídas da floresta amazônica!

Roberto Katsuda é listado no relatório supracitado da Abin como um dos principais defensores do garimpo em áreas protegidas. É ele quem financia a estrutura dos grupos de pressão, ou lobby, garimpeiro, constituindo, inclusive, uma “comissão pró-garimpo” que atua para a aprovação do Projeto de Lei 191/2020, cujo objetivo é a regulamentação do garimpo em terras indígenas, demanda presente há décadas no parlamento. Essa comissão vinha se reunindo com parlamentares e ministros desde 2018 e ganhou bastante força com o governo Bolsonaro. No mês de março de 2024, a comissão de Minas e Energia na Câmara federal passou a ser dirigida por defensores da extração petroleira na foz do rio Amazonas e da legalização do garimpo em terras indígenas.

Outro setor que também contribuiu fartamente para os eventos de 8/1 foi o das transportadoras, que já haviam protagonizado episódios de tensão política no governo Dilma, Temer e em 2022. Ainda de acordo com o relatório da Abin, foram identificados 272 caminhões, oriundos principalmente do Mato Grosso, Goiás, Bahia e Paraná, os quais deram sustentação ao acampamento em frente ao Quartel General do exército em Brasília a partir do dia 4 de novembro de 2022.

Duas situações importantes destacadas no documento referem-se ao fato de que 132 caminhões pertenciam a empresas de transportes e os outros 140, apesar de registrados em nomes de pessoas físicas, pertenciam a sócios de empresas de médio porte do setor agropecuário.

O histórico antidemocrático e golpista do empresariado dos transportes já havia se manifestado no segundo mandato de Dilma. Contudo, sua ação mais criminosa foi o fechamento de rodovias por todo o Brasil na noite do dia 30 de outubro de 2022 e intensificadas logo após a proclamação da vitória de Lula no dia seguinte. Ao todo, foram identificadas 33 empresas de transportes, cujos caminhões obstruíram as rodovias e lá permaneceram, com grande força, até 3 de novembro. Mesmo com a complacência e prevaricação da PF e das polícias rodoviárias estaduais, o atentado começou a perder força. Ao longo daqueles dias, foram inúmeros os relatos de caminhoneiros denunciando que o fechamento das estradas havia sido ordenado por seus patrões.

Não se pode esquecer, também, do assédio praticado por empresários de vários setores sobre seus empregados para que não votassem em Lula. Um caso notório foi o setor de supermercados e das redes atacadistas que, igualmente, sustentaram os acampamentos e, agora, são alvos da 25ª fase da Lesa Pátria.

Na relação de forças da atual conjuntura, tem-se um campo golpista vinculado ao setor agropecuário latifundiário-exportador, flagrado em crimes de desmatamento e transporte ilegal de madeira; da mineração, inclusive com invasão de terras indígenas e áreas de proteção para a prática do garimpo predatório; de empresas de transporte, que se aproveitam da fragilidade do sistema viário, mas principalmente, ferroviário, do país para pressionar em favor de seus interesses, inclusive em situações de forte tensão política, sobremaneira no contexto pós 2015. Todo esse conjunto de agentes constitui um campo com interconexões evidentes e que forma uma rede de pressão de fora, mas também dentro do Congresso Nacional, a partir, fundamentalmente, da bancada ruralista, que conta, em média, com 200 parlamentares. Ou seja, mais de 60% dos deputados federais atuam, hoje, em favor das pautas relacionadas aos interesses agropecuaristas, e, obviamente, a todos os outros ramos que a ela recorrem em socorro.

Os eventos relacionados a disputas por terras, garimpo ilegal e consequente invasão das reservas indígenas, o lockout das transportadoras, o financiamento dos acampamentos golpistas em frente aos quarteis, ressaltam uma caracterstica fundamental dessa pequena e média burguesia. Não apenas agem para submeter a terra aos interesses privados de uma pequena parcela da população brasileira, bem como de seus privilégios de classe, mas, também, em favor da desregulamentação das relações de trabalho. Lembremos que é justamente em propriedades do agronegócio que um número crescente de trabalhadores vem sendo resgatado de condições análogas à escravidão.

Essa súcia de empresários não se sujeita à lei. Ao contrário, cria suas próprias regras moldadas pelo recurso constante à violência contra os setores que representam um entrave ao seu progresso como classe. Assumem, cada vez mais, a sua violência privada como mecanismo de propagação do caos, expulsando e exterminando os indesejados. Circunstância exemplar desse modo de agir pode ser identificada na ação de latifundiários, integrantes do Movimento Invasão Zero, que, no dia 21/1/24, em flagrante desrespeito à lei, cercaram uma fazenda que havia sido ocupada por indígenas, ocasião na qual Maria Fátima Muniz de Andrade, da etnia pataxó, foi assassinada a tiros.

Outro exemplo é a situação amargurada pelos povos yanomami no governo Bolsonaro. Pode-se citar, igualmente, o caso dos 32 quilombolas assassinados entre 2018 e 2022, em 11 estados da federação. Até mesmo o caso Marielle, no qual constatou-se que seu assassinato está relacionado à grilagem de terras posteriormente destinadas a especulação imobiliária. Da mesma forma, o caso do indigenista Bruno e do jornalista Dom, constantemente ameaçados por grileiros, garimpeiros e madeireiros, até que foram executados em 5/6/2022.

O recurso à violência, não apenas dos atentados aos três poderes em Brasília, mas, principalmente, a cotidiana, contra camponeses, indígenas, quilombolas e favelados, expressa a forma e o conteúdo da atuação política desses setores que buscam, agora, se contrapor ao contrato social estabelecido em 1988, mas que resgata as práticas do passado colonial-escravista, do Brasil Imperial e da República, voltadas para o silenciamento dos indesejados. Revivemos cotidianamente Palmares, Canudos, Contestado, Chibata, etc.

Recorrem a violência como forma de conter o avanço de direitos sociais e as próprias contradições do sistema capitalista, o qual defendem não com unhas e dentes, porém muito bem armados. Representam os setores mais reacionários e atrasados do passado, buscando por todos os meios impedir qualquer possibilidade de protagonismo social e político das classes subalternas, mesmo que dentro dos estreitos espaços da democracia burguesa. Retratam os setores suscetíveis ao discurso falacioso da defesa da liberdade e da propriedade e do fantasma do comunismo.

 

Em síntese, expressam a sobreposição dos interesses econômicos em relação às questões sociais, sentenciado pela ideologia da meritocracia. Propagam a cultura do ódio e do belicismo contra os adversários. Tudo isso muito bem temperado com o fundamentalismo religioso e moralista, que busca, a todo custo, subordinar a ciência aos preceitos da sua fé, do qual uma face mais bem definida se manifesta no “movimento” Escola Sem Partido. Esse setor, no entanto, não está isolado das determinações postas pelo imperialismo. Agem para suprir as necessidades de matérias primas de grandes conglomerados industriais de diversas partes do Globo.

 

 

Edição: Pedro Carrano