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É justa a greve dos servidores e servidoras federais na atual conjuntura?

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Greve acontece justamente por ambiente mais democrático no plano nacional - o que era inviável nos governos Temer e Bolsonaro - Site Sinditest
A construção das greves são medidas corretas a serem pautadas pelo reajuste dos salários e carreira

Um pouco do contexto histórico recente

No ano de 2023, após hiato de sete anos sem recomposição/reajuste salarial, o governo Lula decidiu pelo valor de 9% de reajuste salarial aos servidores e servidoras públicos federais, bem como aumento no benefício do auxílio-alimentação que passou de R$458,00 para R$658,00.

Naquela ocasião o aumento foi linear, ou seja, além dos servidores e servidoras da ativa também contemplou aposentados e pensionistas, muito embora auxílio-alimentação não contemple os últimos.

Além do reajuste, é importante mencionar que foi só com o governo Lula que os sindicatos dos trabalhadores e trabalhadoras do serviço público passaram a ter novamente uma efetiva mesa de negociação permanente.

Durante o período posterior ao golpe do impeachment (2016), e sobretudo com a eleição do neofascista Jair Bolsonaro, além de não haver qualquer mesa real de negociação, já que formalmente o governo anterior não revogou a mesa permanente criada no ano de 2003, agiu-se de duas formas:

1) simplesmente não convocando as entidades para o diálogo;

2) convocatórias sem diálogo efetivo e de forma autoritária. O resultado desse processo foi o congelamento salarial no serviço público, bem como iniciativas de sua destruição como a proposta da PEC da Reforma Administrativa. Quem não se lembra da declaração do ex-ministro Paulo Guedes dizendo que servidoras e servidores seriam parasitas?

Obviamente, com a eleição de Lula houve modificação na correlação de forças e na composição do seu governo que permitiram abrir canais de diálogo com as entidades representativas dos trabalhadores e trabalhadoras do serviço público, bem como a possibilidade de concessão de certa recomposição salarial. Sem dúvidas esses são aspectos relevantes na conjuntura que devem ser considerados e que diferenciam a relação que o governo Lula pretende ter com os servidores e servidoras públicos quando comparado aos governos anteriores.

Qual a situação salarial dos servidores federais?

Vivemos uma situação de perdas reais de salário em virtude da inflação e da ausência de recomposição salarial desde pelo menos julho de 2010. Deste modo, é perceptível que há perda do poder de compra por parte dos servidores e servidoras e, mesmo o aumento linear do ano de 2023, apenas corrigiu em partes as perdas acumuladas, algo que o próprio governo Lula percebeu ao anunciá-lo.

As perdas salariais são históricas e devem ser consideradas desde pelo menos julho de 2010, apesar de nas reivindicações atuais não comparecer esse período por completo. Inclusive, atualmente o que se pede ao governo federal é a abertura de negociação para reparar estas perdas salariais anteriores, o que significa estar na negociação atual cálculo do reajuste necessário para o período de setembro de 2016 a dezembro de 2023.

Para entender essa matemática do reajuste é preciso um pouco de atenção. O passo inicial é verificar qual foi a inflação acumulada do período e, se considerarmos o IPCA/IBGE, temos que no período (setembro 2016 a dezembro de 2023) houve inflação acumulada de 42,99%, segundo estudo do DIEESE1.

Além disso, é preciso calcular também a inflação prevista para os anos vindouros de 2024 e 2025. Nestes, a inflação prevista é de 3,87% e 3,50%. Portanto, o total geral do período equivale a 53,72%, é claro, utilizando cálculos financeiros e não aritméticos conforme o próprio DIEESE aponta.

Deste modo, é perceptível que as perdas salariais não estão contempladas na proposta apresentada pelo governo federal. Ainda que este tenha aberto canais de diálogo e oferecido propostas reais de reajuste salarial, muito diferente do período Temer-Bolsonaro, as negociações não tem prosperado no sentido de corrigir de maneira mais efetiva as perdas salariais do conjunto de servidoras e servidores públicos federais.

Por isso, várias categorias vinculadas ao serviço público federal têm feito paralisações e greves. Resultado desse processo e das próprias negociações com cada uma das categorias em separado foi a celebração de pelo menos nove acordos específicos: sete no ano de 2023 e dois no início de 2024.

Somente no presente ano o governo federal celebrou acordo com a polícia federal e, após greve de 81 dias, com os auditores-fiscais da receita. Isso mostra que há espaço para as reivindicações das demais categorias do serviço público federal e a construção das greves e paralisações são medidas corretas a serem pautadas pelo reajuste dos salários e reestruturação das carreiras.

O debate da greve dos servidores e servidoras na conjuntura política

A eleição do governo Lula foi encarada como uma vitória eleitoral importante por grande parcela dos servidores e servidoras públicos que o apoiaram. Dentre estes, no espaço onde atuo com minhas atividades profissionais, docentes e técnicos-administrativos dedicaram-se durante o pleito de 2022 para a eleição do atual governo por entender, dentre outros aspectos, que com o governo Lula as margens para os avanços em torno da carreira e mesmo de aspectos mais gerais como a retomada de um governo com traços democráticos e que superasse o neofascismo estariam garantidos.

Entretanto, a vitória de Lula deve ser entendida também com os limites que a frente ampla formada impõe ao governo, bem como com o cerco que o neofascismo faz nas ruas e no próprio parlamento.

Deste modo, a discussão em torno da construção das greves no serviço público federal deve considerar esses justos aspectos da correlação de forças na conjuntura atual e, por esse motivo, geram polêmicas entre os setores progressistas presentes no serviço público.

Há pelo menos duas posições sobre a greve entre os setores progressistas atuantes no serviço público e mais especificamente entre servidores dos Institutos Federais com os quais tenho contato direto por conta das minhas atividades profissionais.

Um primeiro grupo, aponta que qualquer manifestação e greve, apesar da justeza das reivindicações, na atual conjuntura favorecerá necessariamente a extrema-direita neofascista que continua forte e organizada. Suas críticas avançam para o movimento sindical do funcionalismo, pois este se mostraria em tese combativo no governo atual, mas foi complacente durante o governo de extrema-direita.

Há ainda outros argumentos em torno desse grupo que poderiam ser mencionados, porém este é o cerne das suas posições políticas. Por outro lado, há um segundo grupo que discorda da avaliação de que qualquer manifestação e greve favoreceria necessariamente a extrema-direita. Diverge também da posição apontada sobre a complacência do movimento sindical em relação ao período neofascista, apontando lutas e mobilizações construídas apesar da difícil conjuntura enfrentada.

Como se percebe a divergência entre os grupos progressistas não se dá em torno da justeza das reivindicações dos servidores e servidoras, mas das táticas adequadas de luta a serem adotadas. Para o primeiro grupo a greve geralmente é vista de forma crítica, apontando que outras formas de luta deveriam ser adotadas numa perspectiva de negociação. Já para o segundo grupo a greve é uma tática adequada que responde a uma forma de luta que não necessariamente contribui apenas para a desestabilização do governo federal.

Particularmente, defendo as posições deste segundo grupo de servidores e servidoras. Compreendo os limites impostos pela frente ampla e mesmo pelo cerco que o movimento neofascista tem feito ao governo Lula, mas a construção de uma greve na atual conjuntura é mais viável de forma concreta, pois a eleição de Lula permitiu abrir as margens da nossa limitadíssima democracia para as lutas políticas.

Avaliar que um governo progressista abre maiores possibilidades para as lutas políticas se trata de uma análise concreta da situação concreta e representa conjuntura mais favorável ao movimento sindical e popular. Portanto, o posicionamento de parte dos setores progressistas quando avaliam que durante o governo Bolsonaro os sindicatos estariam “quietos” ou “complacentes”, na minha avaliação, deixa de lado a análise concreta e parte para uma posição descolada da correlação de forças e da própria luta de classes. Fica parecendo que a luta política durante o governo neofascista se dava nas mesmas condições que a atual, faltando mera “vontade” do movimento sindical. Sabemos e estivemos envolvidos em inúmeras lutas durante os últimos anos que demonstram ser este um argumento inválido, já que convocatórias para as lutas não faltaram. Os próprios dados sobre o caráter das greves no Brasil publicados pelo Dieese também reforçam nosso argumento (Gráfico 1).

Fonte: DIEESE. Org. Fernando Mendonça Heck

Nota-se que comparativamente ao período dos governos neodesenvolvimentistas do PT, salvo o ano de 2013 e o período do segundo mandato de Dilma interrompido pelo golpe, a relação entre as greves propositivas (por novas conquistas ou avanços nas condições vigentes) e defensivas (em caso de descumprimento de lei ou recusa à renovação ou manutenção de condições vigentes) foi muito mais equivalente, sendo que em alguns anos as greves propositivas foram maiores do que as defensivas.

Ou seja, a partir do golpe de 2016 essa relação se inverte com as greves defensivas sendo a principal causa das lutas do movimento sindical. Ou seja, instala-se uma conjuntura desfavorável para as classes trabalhadoras no Brasil na qual, os governos oriundos do golpe de 2016, atuaram de inúmeras maneiras com vistas a enfraquecer o movimento sindical e suas conquistas. Isso indica que com governos progressistas, a exemplo do atual, a possibilidade de greves terem conteúdo propositivo, isto é, com conquistas e avanços podem ter maiores chances de êxito.

Numa crítica fraterna a esses companheiros e companheiras que defendem posições de que a greve não seria a melhor tática para o momento, diria que falta a interpretação mais profunda da conjuntura política dos governos oriundos do golpe do impeachment. Este não representou mera derrota eleitoral, parlamentar ou institucional dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores, mas uma derrota de caráter estratégico.

Por isso, as margens democráticas se tornaram ainda mais limitadas com Temer e posteriormente Bolsonaro e não bastava vontade ou convocatória para o movimento sindical e popular mobilizar suas bases. E é exatamente nesse ponto que a vitória eleitoral de Lula é significativa, não por resolver todos os nossos problemas, mas sobretudo por criar melhores condições de luta para as classes trabalhadoras. O movimento de greve atual só surge com mais força porque as condições políticas na conjuntura são melhores e isso se deve também a vitória eleitoral conquistada em 2022.

Sem dúvidas o movimento sindical enfrenta inúmeros desafios. Greve não se constrói por decreto ou decisão de assembleias esvaziadas. É preciso construir um verdadeiro movimento grevista com pautas bem definidas e concretas. Por isso, é hora do trabalho de base, do diálogo com os trabalhadores e trabalhadoras do serviço público. A construção da greve não pode desprezar que estamos em melhores condições para construí-la pelo fato de termos as margens democráticas pouco mais ampliadas pela existência do governo Lula.

Por isso, o movimento grevista não pode adotar a palavra de ordem diretamente contra o governo federal sem considerar os avanços que obtivemos desde a eleição de Lula. O que se quer é avançar ainda mais, em torno dos salários e da reestruturação das carreiras. E isso é mais provável com mobilização e disposição de luta numa conjuntura mais favorável.

Portanto a construção da greve é justa e o governo federal pode tomar a decisão correta de atender as reivindicações dos servidores e servidoras. No entanto, caso aja disposição do governo para um desfecho negociado, o conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras do serviço público aguardam ansiosamente uma proposta que não seja a de reajuste zero.

 

*Professor de Geografia do IFSP e militante da Consulta Popular

**As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato Paraná

 

1 O estudo pode ser acessado na íntegra em: <https://sinasefe.org.br/site/campanha-salarial-2024-plenaria-de-spfs-debate-resposta-ao-governo/>.

Edição: Pedro Carrano