Paraná

FASCISMO EM CENA

Opinião. O bolsonarismo e o desprezo pela vida, dos outros

O ato desse domingo, com um tom mais moderado, deve ser encarado como um realinhamento da tática golpista

Curitiba (PR) |
"Em mais um ato de desprezo à vida, incitou seu séquito a invadir hospitais, em que foi prontamente atendido, inclusive por deputados e vereadores" - Reprodução Correio Braziliense

No dia 25 de fevereiro, manifestantes de verde e amarelo, com bandeiras do Brasil e do Estado genocida de Israel, ocuparam a avenida Paulista em defesa de Jair Bolsonaro.

Na última vez em que isso aconteceu, 8 de janeiro de 2023, esses “manifestantes” tentaram um golpe de Estado. Agora, acuado diante de novas provas da trama golpista, Bolsonaro foi para o ato negar o golpe, pedir anistia para os terroristas de 8/1 e, no maior cinismo, falar em pacificação.

O ato do domingo não foi convocado em torno de reivindicações de ordem econômica, social ou política. Ao contrário, foi em defesa de um sujeito que, na condição de presidente, buscou submeter as instituições da República aos seus desmandos, sobretudo, o Superior Tribunal Federal (STF), duramente atacado no seu governo. Entretanto, se fosse necessário escolher um único elemento para caracterizar sua gestão, o desprezo à vida das pessoas seria a sua marca indelével. Não de qualquer pessoa, obviamente.

Quando ainda era deputado federal, protagonizou diversas manifestações de machismo, xenofobia, racismo, homofobia, apologia ao estupro, misoginia, etc. Em 2011, afirmou que seus filhos não corriam o risco de se casarem com pessoas negras, pois haviam sido “muito bem educados”.
Na mesma ocasião, afirmou que não entraria em “um avião pilotado por cotista e nem aceitaria ser operado por um médico cotista”. Essa fala foi reverberada em 2020 por um pastor, aliado de Bolsonaro.

Em 2015, Bolsonaro classificou imigrantes como “ameaça” e “escória do mundo”. Em 2017, referiu-se aos quilombolas pela unidade de medida da arroba, utilizada frequentemente no setor agropecuário, ou seja, Bolsonaro comparou os quilombolas por ele visitados ao gado, e acrescentou que tal comunidade não serviria “nem para procriar”.

Ainda na campanha de 2018, numa verdadeira ameaça à vida dos opositores, sugeriu em comício no Acre, “metralhar a petralhada”, em evidente referência ao Partido dos Trabalhadores (PT) e seus simpatizantes. Mesmo se afirmando cristão e contando com o apoio incondicional de líderes religiosos cristãos, Bolsonaro defendeu a tortura e os torturadores.

Na presidência não foi diferente. Durante todo o seu mandato, não só atacou negros, indígenas, mulheres e judeus, como incentivou e compactuou com a violência praticada contra estes grupos. A situação mais grave, talvez, seja a dos povos indígenas que, desde os primeiros dias do governo Bolsonaro, viram-se sob a mira de grileiros, madeireiras, mineradoras e do agronegócio. A violência contra os povos originários cresceu, entre 2018 e 2019, primeiro ano do seu mandato, 150%. Foram 256 invasões de terras indígenas e 113 assassinatos em 2019, contra 109 invasões e 135 assassinatos do ano anterior.

A situação mais grave foi a dos povos yanomami, assolados pela fome, desnutrição infantil e outras doenças. Somente em 2022, último ano de Bolsonaro, morreram 99 crianças, de 1 a 4 anos, de desnutrição, pneumonia e diarreia. Todas situações facilmente reversíveis não fosse a política deliberada de extermínio desses povos. Bolsonaro sempre se colocou contra a demarcação das reservas indígenas, contra as instituições e pessoas que os defendem e, principalmente, a favor de armar o agronegócio escravagista e o latifúndio em sua “guerra santa” contra os povos nativos. Em 1998, como deputado federal, expressou total desprezo pelos povos autóctones, lamentando o fato de a “cavalaria brasileira não ter sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios”.

Durante seu governo, testemunhamos o crescimento da letalidade policial contra os negros, o aumento da violência contra pessoas LGBTQIAP+ e do feminicídio. Interessante observar que o aumento da violência contra esses grupos, deu-se, justamente, em um momento de intensificação dos discursos de ódio ao diferente, de ódio ao opositor, de ódio a todo aquele ou aquela que representasse uma suposta afronta à “moral e aos bons costumes” do dito “cidadão de bem”.

Da mesma forma, é fundamental ressaltar que o agravamento da violência ocorreu em um contexto de maior apologia ao nazismo, principalmente nas redes sociais e no parlamento. Outro fato importantíssimo, é o aumento exorbitante de simpatizantes do nazismo durante o governo Bolsonaro. Somente entre outubro de 2021 e novembro de 2022 foram criadas 587 células nazistas. Em 2022, o Brasil contava com 1117 dessas organizações, sendo a grande maioria localizada nas regiões Sul e Sudeste.

Cabe destacar que 60% dos atentados terroristas às escolas no Brasil ocorreram após a eleição de Bolsonaro e a crescente hostilidade à educação e aos professores. Bolsonaro acusou os docentes de promoverem “doutrinação ideológica”, incentivou os alunos a gravarem as aulas e atacou as organizações sindicais do magistério, etc.

Na pandemia, afirmou que os professores não queriam trabalhar e que, um suposto excesso de professores, “atrapalha”. Criticou, ainda, os livros didáticos: “tem muita coisa escrita”. Em julho de 2023, o filho do ex-presidente atentou novamente contra o magistério, afirmando que os professores seriam “piores que traficantes”.

Outro dado significativo em relação aos ataques às escolas, tendo em vista a política pró-armas de Bolsonaro, é o fato de que, dos 36 casos registrados no Brasil, até agora, 17 ocorreram com armas de fogo, sendo, a maioria delas, pertencentes aos familiares dos extremistas.

A maior demonstração de desapreço pela vida, entretanto, foi a forma como Bolsonaro agiu durante a pandemia de Covid-19. Enquanto o número de mortes crescia avassaladoramente, o inepto desdenhava de seus impactos: “gripezinha”; “neurose”; “todos vamos morrer um dia”. Ainda no seu início, com pouco mais de mil mortes, chegou a afirmar que o vírus estava “indo embora”. Logo em seguida, quando questionado sobre o avanço das mortes, respondeu, com total desprezo: “Eu não sou coveiro, tá”. Ultrapassávamos, então, mais de duas mil mortes. Quando o Brasil chegou aos cinco mil óbitos, achou por bem dizer: “E daí? Quer que eu faça o quê?”

O escárnio foi tanto que o supositício presidente se valeu do deboche para mais uma vez desdenhar as mortes por Covid-19: “Sou Messias, mas não faço milagre”. Com a pandemia totalmente sem controle, ridicularizada por motociatas à lá Mussolini e pelo desincentivo presidencial ao cumprimento das medidas sanitárias, fomos instados, quando cruzamos a linha dos 150 mil mortos, a “deixar de ser um país de maricas”. E, ao registrar quase 300 mil vidas perdidas, estaria, já, na hora de parar “de frescura e de mimimi”. Ficaríamos “chorando até quanto”, indagou o obtuso.

Além do manifesto desapreço pela vida, fomos assombrados pelos fervores presidenciais antivacina e anticiência, insuflados pela histeria coletiva de seus sectários seguidores. Houve indícios de propina na compra da vacina. Com mais de 150 mil mortes, Bolsonaro afirmou que a vacinação não seria obrigatória. Diante da suspensão dos estudos de uma das vacinas, comemorou escrevendo em rede social: “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. Ao ser cobrado sobre a urgência na compra de vacinas, retrucou: “Só se for na casa da tua mãe”. Adentrávamos o segundo ano da pandemia, com mais de 400 mil mortes.

Enquanto a questão sanitária se agravava, Bolsonaro parecia não se incomodar em deixar o ministério da Saúde sem o chefe da pasta por três meses, ou trocar de ministro, por quatro vezes, de acordo com sua própria ideologia: quanto mais negacionista, melhor. Enquanto os casos e as mortes cresciam, o presidente fazia propaganda de remédio de verme para combater um vírus. Nisso ele não ficou sozinho. Por todo o país, inumeráveis “doutores”, apesar do veto da Organização Mundial da Saúde (OMS), receitavam Ivermectina, inclusive com outdoors em defesa de um suposto “tratamento precoce”, como em Curitiba, Paraná.

Em mais um ato de desprezo à vida, incitou seu séquito a invadir hospitais, em que foi prontamente atendido, inclusive por deputados e vereadores. Enquanto o chefe da nação brincava de jet ski ou passeava de moto, atentado contra as medidas sanitárias, vítimas do vírus morriam por falta de cilindros de oxigênio no Amazonas. Fechada por Bolsonaro, em março de 2020, a Fafen Fertilizantes poderia estar produzindo esses cilindros que tanto fizeram falta.

Perante todos os fatos aqui relembrados, o que explica, então, que a avenida Paulista estivesse completamente lotada em apoio a Bolsonaro? Uma pista, seria seguir a trilha deixada por Umberto Eco no seu livro “O Fascismo Eterno”. As reflexões do autor nos instrumentalizam a refletir que, assim como Hitler teve seus cúmplices e algozes responsáveis pelo extermínio de judeus, homossexuais, testemunhas de Jeová, portadores de deficiências, etc., Bolsonaro também não esteve sozinho.

Na prática do desprezo à vida experienciada na sua gestão, Bolsonaro contou com a condescendência e a cumplicidade de muitos, desde parlamentares que sugeriram “queimar vivos” estudantes universitários ou que defenderam o agro escravagista, até as instituições da República, que tergiversaram ante as constantes investidas. Mas, fundamentalmente, teve apoio irrestrito de seres desprezíveis, vis, capazes de levar a cabo as suas manifestações de ódio ao outro, ao diferente, tudo em nome da expropriação e exploração do povo. São os soldados rasos, cumpridores de ordens, prontos para “transformar um banho de piscina numa batalha naval” e, como atestamos nesse domingo, estão de prontidão.

Bolsonaro não se reelegeu. Mas tentou, de todas as formas, subverter o resultado eleitoral apelando para o seu séquito, esse “monstro sem cabeça”, que bloqueou estradas, agrediu opositores, fez lista de estabelecimentos comerciais a serem boicotados, produziu e propagou incontáveis mentiras, promoveu todo tipo de discriminação racial e xenofóbica contra opositores, sobretudo nordestinos, para, enfim, enquanto o pretenso usurpador correu para as barbas do Tio Sam, tentar um golpe de Estado.

O ato desse domingo, com um tom mais moderado, deve ser encarado como um realinhamento da tática golpista que não se dissipou, ao contrário, está aguardando a próxima oportunidade, que pode vir somente em 2026, na forma eleitoral. “É preciso estar atento e forte”, organizarmo-nos e, fundamentalmente, ocupar as ruas.

Lembremos daquele usual ditado alemão: “Se um nazista se senta à mesa com 10 pessoas e ninguém se levanta, então há 11 nazistas”. Neste último domingo, 25 de fevereiro de 2024, milhões de pessoas se sentaram à mesa. E nós, quando é que iremos quebrá-la?

Para saber mais:


ECO, Umberto. O Fascismo Eterno. 13ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2018.
LEHER, Roberto. Educação no governo Bolsonaro: inventário da devastação. São Paulo: Expressão Popular, 2023.
MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro. Neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.

 

*Graduado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (2006). Possui Especialização em História, Arte e Cultura pela Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG (2018). Mestre em Ensino de História - ProfHistória/UFPR (2020). Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. Atua como professor de História de Ensino Fundamental e Médio.

**As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato Paraná

Edição: Pedro Carrano