Paraná

FORMAS DE EXPLORAÇÃO

Opinião. Morte de trabalhador em Cajamar aponta a necessidade de regulamentação e fiscalização do trabalho em e-commerce

As grandes esteiras que locomovem as caixas e pacotes nesses centros de distribuição não param nunca

Curitiba (PR) |
Cidade de Cajamar, na região metropolitana de São Paulo, ganhou, recentemente, destaque na mídia como um importante hub logístico da região sudeste do país - Divulgação

Desde a semana passada têm circulado a notícia da morte de um jovem trabalhador, Luiz Felipe, num dos principais centros logísticos de e-commerce do país, localizado no município de Cajamar, na região metropolitana de São Paulo, na segunda-feira, 19 de fevereiro. 

A Guarda Civil foi acionada para comparecer ao local e, segundo o informe da polícia, ao chegarem, não havia ninguém — advogado da empresa, gerente ou funcionário do departamento de recursos humanos —, que pudesse melhor informar sobre o ocorrido. Nas redes sociais, os trabalhadores em atividade relataram que tiveram de continuar a jornada de trabalho normalmente durante o período, mesmo após a morte do trabalhador.

O centro logístico, também chamado por centro de distribuição, é o Galpão SP04. Conforme relato dos trabalhadores, nos últimos meses houve maior intensidade dos trabalhos, fruto das políticas promocionais em compras virtuais no final e início de ano. 

Na manhã em que ocorreu o caso, os funcionários em condição de contrato temporário haviam sido informados que, tendo finalizado o prazo contratual, seriam selecionados para efetivação. Dentre eles estava Luís Felipe, que, conforme o relato dos colegas de trabalho e segundo as próprias postagens feitas em suas redes sociais, aguardava ansiosamente pela promoção. “Funcionário exemplar”, o jovem se orgulhava pelas metas batidas e pelo cumprimento de horas adicionais. Luiz Felipe havia ingressado no SP04 no segundo semestre do ano passado, adiando o sonho de trabalhar como músico em troca da expectativa de ascensão de carreira na empresa.

Segundo relatos nas redes sociais de colegas e trabalhadores da unidade, Luís Felipe chegou ao trabalho animado com a provável efetivação. No entanto, no final da tarde, ao ser chamado pelo departamento de recursos humanos da empresa, soube que não seria efetivado e que teria o seu contrato encerrado. Pouco tempo após o anúncio, Luís tirou a sua própria vida no ambiente de trabalho.

O sonho de Luiz Felipe em “trabalhar em um lugar moderno”, “crescer na empresa” e ali “fazer história” não é um sonho compartilhado igualmente pelas contratantes, mas uma expectativa alimentada pelas trabalhadoras e trabalhadores em busca de uma vida melhor.

Os galpões logísticos, novos colossos imobiliários, cresceram exponencialmente em quantidade na última década, fruto, principalmente, do avanço dos comércios virtuais e das novas formas de consumo em geral. Eles aparecem nesse processo como o futuro do trabalho na circulação de mercadorias — uma lança cuja ponta, a aquisição e venda de produtos em lojas virtuais, avança, muitas das vezes de forma desregulamentada, sobre os mercados do mundo todo. As grandes esteiras que locomovem as caixas e pacotes nesses centros de distribuição não param nunca: 24 horas por dia, todos os dias na semana. No galpão SP04 da Mercado Livre, empresa que contrata a Randstad, uma consultoria de recursos humanos que contrata mão de obra temporária, na segunda-feira passada, não pararam nem mesmo quando um trabalhador estava morto dentro do prédio.

O modelo de organização da circulação de mercadorias dos comércios virtuais, e consequentemente da atividade das trabalhadoras e trabalhadores destes estabelecimentos, cada dia mais tem se espalhado como exemplo bem-sucedido de inovação. A Amazon, e o seu CEO bilionário, Jeff Bezos, são a propaganda deste novo modo de controle do consumo e do trabalho. Ocorre que por detrás da roupagem moderna, existem formas de exploração há muito tempo conhecidas pela classe trabalhadora e pelo movimento sindical: exaustivas jornadas e péssimas condições de trabalho, pressão psicológica para cumprimento de metas, vigilância constante e dificuldade de organização coletiva. 

Respostas sobre o caso em Cajamar

O sindicato dos trabalhadores de tecnologia e informação de São Paulo, o Sindpd-SP, ressalta, em nota, a gravidade do caso, e presta solidariedade aos familiares e amigos de Luiz Felipe, colocando sua equipe jurídica à disposição dos mesmos. 

O Mercado Livre publicou uma nota sobre o ocorrido dizendo lamentar o falecimento do funcionário e informando que mantém contato com a empresa terceirizada, que acompanha o caso dando suporte aos familiares. A Randstad, por sua vez, não realizou nenhuma menção sobre o falecimento do seu funcionário, divulgando, em suas redes sociais, uma postagem sobre “a importância do processo de demissão humanizado”. Ao livre mercado, não importam as vidas que sustentam seus lucros. 

Condições de trabalho nos galpões de e-commerce 

O Sindpd-SP ressalta a dificuldade que houve por parte das autoridades policiais para averiguar o caso no interior do galpão e informa que são comuns os relatos de pressão psicológica e péssimas condições de trabalho por parte de funcionários e ex-funcionários do galpão. 

Com o mote "Nenhum CNPJ vale a nossa vida!", o sindicato tem intensificado uma campanha que combate o discurso de que o funcionário somente é bom para a empresa quando abre mão de direitos sociais e trabalhistas e de sua saúde física e psicológica. 

Além dos índices econômicos: os impactos sociais e políticos dos galpões

Desde 2012, Cajamar se vê em constante transformação, com a construção da “Faria Lima dos Galpões”. Este projeto, que integra diferentes aspectos sociais, econômicos, políticos e, inclusive, ambientais, vincula os anseios e a ação direta do poder público local com os interesses dos comércios virtuais e do capital imobiliário e financeiro. 

Cajamar e a face oculta da modernidade digital 

Até meados dos anos 2000, Cajamar era marcada pela propriedade rural, concentrada nas mãos de poucos proprietários. Este elemento foi crucial para a escolha do poder público local como polo logístico, tendo em vista as grandes áreas disponíveis para os milhões de metros quadrados que hoje são ocupados por galpões. As principais transações entre agentes imobiliários e proprietários de terra local se deram entre a Prologis, empresa estadunidense especializada na construção de galpões, e a família Abdala, dona da maior parte das terras cajamarenses.

Os empreendimentos da Prologis em Cajamar, onde hoje funcionam os centros de distribuição dos principais e-commerces em atividade no Brasil — como Mercado Livre, Amazon, Magazine Luiza, Netshoes, dentre outros — foram marcados desde o início por conflitos em torno da terra. Em 2012, houve a remoção de mais de 180 famílias, no Bairro do Gato — onde, além de casas, também foram destruídas propriedades de patrimônio histórico local —, seguida da remoção de um assentamento rural na principal avenida do polo logístico, a avenida Antônio João Abdala. 

Juíza determina despejo de 105 famílias que vivem na Ocupação dos Queixadas em Cajamar (SP)

Conflitos deste tipo ainda se mantém no dia a dia da população de Cajamar: destacam-se mais recentemente a luta dos moradores do Bairro Polvilho, em 2018, do Bairro Panorama, em 2019, e do Bairro dos Queixadas, em 2023, acumulando centenas de famílias despejadas ou na possibilidade de serem retiradas à força de suas casas. A Prologis também acumula em seu histórico no Brasil denúncias de crimes ambientais, feitos pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), devido ao aterramento de nascentes e de corpo hídrico em seu empreendimento.

Os perigos de deixar o mercado livre

A trágica morte de Luiz Felipe alerta a sociedade sobre o processo, por muitas vezes invisibilizado, que ocorre entre o clique que finaliza a compra e a abertura do pacote recebido — o comentário feito em uma postagem em rede social é elucidativo: “No pacote que chega em sua casa tem muita lágrima (e ódio)”. 

O caso permite que olhemos o e-commerce como algo que, inserido no capitalismo neoliberal, envolve a terceirização, a exploração do trabalho e o avanço da precarização social. As instituições e o poder público precisam se atentar a esse fenômeno crescente, regulando e fiscalizando as condições de trabalho. 

Neste processo, o movimento sindical, a academia e a imprensa, cumprem um importante papel de compreender este fenômeno, alertar sobre seus riscos e se engajar por possíveis transformações no âmbito da qualidade de vida e trabalho. 

 

*Mateus Oliveira é professor de Sociologia, mestrando em Ciência Política pela Unicamp e membro do Projeto Conexão - Observatório do Trabalho por Plataformas Digitais no Brasil. 

** Eduardo Rezende é militante da Consulta Popular, doutorando em Ciência Política pela Unicamp e membro do Projeto Conexão - Observatório do Trabalho por Plataformas Digitais no Brasil. 

***As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato Paraná

Edição: Pedro Carrano