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Palestina livre

Artigo | Por que o assassinato de quase oito mil crianças palestinas causa menos comoção que um “incidente diplomático”?

Como sociedade, deveríamos estar manifestando horror com o que está acontecendo em Gaza

Curitiba (PR) |
Estado de Exceção e ausência da garantia mínima do aproveitamento de qualquer Direito Humano é o que ocorre em Gaza - Foto: GETTY IMAGES

Bastou uma declaração pública do presidente Lula comparando o massacre do povo palestino em Gaza com o genocídio cometido contra o povo judeu pelo regime nazista, na década de 1920, para brotar em telas e mídias – em seus escritórios acarpetados e repletos de livros ao fundo – “especialistas” em História, Oriente Médio, política e judaísmo acusando o presidente de antissemitismo, que é o preconceito, a hostilidade e a discriminação contra o povo judeu.

Não seria possível, disseram eles, comparar o Holocausto – que ceifou a vida de mais de seis milhões de pessoas (entre judeus, mas também ciganos, homossexuais, pessoas negras e pessoas com deficiência, por exemplo) – com o massacre indiscriminado na Faixa de Gaza, na costa oeste de Israel, que ocorre, sem cessar, desde o dia 10 de outubro de 2023 e já matou quase 30 mil pessoas, fora as que continuam desaparecidas, soterradas nos escombros. Muitas podem nem ser encontradas. 70% desse total de mortes é de mulheres e crianças. Sim. Crianças. Já são quase oito mil crianças mortas, o que representa mais de 45% das mortes totais desde que a chacina começou.

A maior parte das crianças de Gaza tem menos de 14 anos e a média de idade na região é de apenas 17 anos, uma das mais baixas do planeta. Também vale lembrar que, enquanto para os israelenses a maioridade penal é de 18 anos, como no Brasil, para os palestinos é de 12, o que significa que, legalmente, a partir dos 12 anos de idade essas crianças já não são mais vistas como crianças, mas sim como jovens sujeitos a serem presos e julgados por tribunais militares israelenses. Depois dos 14 anos, podem enfrentar de 20 anos de prisão até penas perpétuas. Geralmente, essas crianças são presas em casa, com soldados arrombando a porta à noite, entrando em suas casas e acordando-as com rifles para levá-las embora.

Nem campos de refugiados, hospitais, jornalistas, ou instalações da ONU, a Organização Mundial das Nações Unidas, foram poupados dos ataques de Israel desde que a ofensiva iniciou, no fim do ano passado. Mas a justificativa seria inquestionável: a caça aos membros do Hamas, o grupo extremista de resistência islâmica que opera com violência desde 1987 contra a ocupação israelense nos territórios palestinos e atacou Israel em 07 de outubro. Já é de conhecimento, no entanto, que muitos dos mais poderosos líderes e financiadores do Hamas vivem no luxo do Catar, ou na Turquia, longe de Gaza, como mostraram investigações conduzidas por Israel. De acordo com a emissora CNN, o Hamas também seria financiado por fundos angariados em países do Golfo Pérsico, localizado entre a Península da Arábia e o Irã.

Em 2006, o Hamas venceu as eleições legislativas palestinas, obtendo maioria no Conselho Legislativo Palestino e, após uma guerra civil com o Fatah em 2007, assumiu o controle da Faixa de Gaza. Desde então, governa Gaza como um estado autocrático e de partido único. Como resposta, Israel reforçou os bloqueios à Gaza, passando a controlar fortemente o espaço aéreo e marítimo do território. A população, desde então, ficou à margem, sem conseguir entrar ou sair do território sem autorização de Israel. Pessoas são mortas quando tentam fazer isso.

Israel diz que o bloqueio em Gaza é necessário para garantir a segurança dos israelenses e será suspenso quando o Hamas renunciar o domínio sobre Gaza e cumprir os acordos definidos por eles. O Hamas sempre rejeitou a exigência e, agora, o conflito entre as partes atingiu o auge.

Entretanto, mesmo as condições desumanas a que essa comunidade é submetida há décadas na região, e as brutais mortes diárias de tantas crianças desde outubro do ano passado, parecem não terem sido capazes de causar tamanho rebuliço e movimentação no Brasil, e também entre a comunidade internacional, comparado ao tal “incidente diplomático” cometido por Lula nos últimos dias.

Ficaram mais preocupados em fazer alarde sobre a problemática teórica/histórica/conceitual da declaração, em defender que um sofrimento é maior que outro, e em se preocupar com as consequências políticas e econômicas da fala ao Brasil, do que em perceber que foi essa declaração que fez a comunidade global voltar a falar e olhar com a mínima atenção para as atrocidades que continuam ocorrendo por lá, diariamente. É urgente compreender a diferença entre o povo judeu, que merece toda solidariedade e respeito sempre pelo que já foi submetido historicamente, e sionistas de extrema-direita, um movimento que combina pensamento religioso com objetivos políticos claros para beneficiar economicamente Israel a todo custo, mesmo que ao custo de um extermínio palestino como o que se vê.

A fala de Lula foi o terceiro assunto político mais comentado desde 2023, segundo a empresa de consultoria e pesquisa Quaest. Até o meio-dia de segunda-feira (19), o assunto já havia recebido 700 mil menções em Facebook, X (ex-Twitter), Instagram e Tik Tok, de acordo com o levantamento da empresa. Depois da declaração, 26 dos 27 países da União Europeia pediram pausa humanitária na guerra. Os líderes mundiais pediram a Israel que não realize uma ofensiva militar contra Rafah, a região onde mais de um milhão de palestinos estão se refugiando no momento. Os Estados Unidos, por outro lado, aliado histórico de Israel, vetaram na última terça-feira (20), pela terceira vez, a resolução do Conselho de Segurança da ONU que pedia cessar-fogo humanitário imediato aos ataques de Israel na Faixa de Gaza.

Há décadas, a população de Gaza sofre com o desemprego de mais de 80% da população, que depende de ajuda alimentar para sobreviver, com a subnutrição de mulheres grávidas e bebês, com a elevada taxa de mortalidade de crianças e jovens, com falta de estudo, de saúde pública, segurança, presença de Estado e até de água, que é ofertada – e cortada – por Israel. Registros em vídeos de soldados israelenses despejando concreto em uma fonte de água usada por palestinos para dar subsistência a 25 famílias por meio da irrigação de plantações locais também já chegaram a viralizar. Mas nada disso, nem as imagens de crianças em filas em Gaza, com panelas nas mãos, à espera de água e comida, gerou tamanho incômodo quanto à fala de Lula relacionando o massacre de Gaza com o genocídio contra os judeus. E explico por quê. Ou melhor: Achille Mbembe explica.

O filósofo camaronês é o criador do termo “Necropolítica”, que defende que o sistema neoliberal se baseia na distribuição desigual da oportunidade de viver e morrer. “Podemos chamar de ‘necroliberalismo’ esse sistema que opera com a ideia de que algumas vidas valem mais do que outras e, as que não têm tanto valor para essa lógica de mercado, podem ser descartadas”, diz ele.

Necropolítica, portando, é a teoria que explica por que, se fosse uma comunidade política ou economicamente poderosa, um cessar fogo teria ocorrido já nos primeiros momentos depois de iniciado, amplamente estimulado por diversos países e figuras influentes do mundo. Ou melhor: nem teria começado. Da mesma forma como a sociedade estaria amplamente horrorizada se o massacre estivesse ocorrendo entre crianças brancas, loiras e de olhos claros em algum país nórdico ou germânico. E vamos ser honestos em reconhecer que isso aconteceria, sim. Da mesma forma, como as vidas periféricas no Brasil valem menos para o sistema neoliberal, os filhos de Gaza também são invisíveis a essa lógica perversa.

Giorgio Agamben, filósofo italiano, defende o conceito de “vida nua”, que complementa a ideia da Necropolítica. As chamadas “vidas nuas” existem em espaços artificiais que as estruturas de poder criam ao excluir da proteção jurídica dessas formas de existência. O conceito refere-se à experiência de desproteção e ao estado de ilegalidade que experimentam indivíduos que estejam submetidos a viver em “estado de exceção”. Estado de Exceção e ausência da garantia mínima do aproveitamento de qualquer Direito Humano é o que ocorre em Gaza desde a formação do território, entre 1948 e 1949, quando a Palestina foi dividida em três partes: Estado de Israel, Cisjordânia e Faixa de Gaza. Com a criação do Estado de Israel, muitos palestinos se refugiaram na Faixa de Gaza.

Para Agamben, os campos de concentração do regime Nazista simbolizam o momento em que o conceito de “estado de exceção” deixa de ser uma situação externa e provisória para se confundir à norma, tornando-se regra. Hitler decidiu que exterminaria a maior quantidade de judeus possível após anos de ausência de reações da comunidade internacional e da sociedade alemã. Até mesmo Heinrich Himmler, um dos principais líderes do Partido Nazista, ficou “horrorizado quando recebeu a incumbência da ‘solução final’ da questão judaica”, diz Hannah Arendt no livro Origens do Totalitarismo. Ela recorda que a sociedade alemã, e a comunidade internacional, relutaram em abandonar as vidas a que estavam acostumadas, seus hábitos e rotinas diários, para perceber a velocidade com que seus direitos eram sumariamente retirados. Aquele rompante de loucura de Hitler, acreditavam, não vingaria em pleno século XX. Consegue perceber agora como estabelecer uma relação entre os terríveis fenômenos históricos não fica tão difícil?

A definição do filósofo também se assemelha bastante ao conceito de “homo sacer”, uma expressão latina que significa “homem sagrado”, isto é, “homem a ser julgado pelos deuses”. É uma figura abstrata do direito romano arcaico que fazia referência a um indivíduo julgado e condenado por um delito e que, por conta dessa condenação, acabava banido da sociedade. Uma vez banido da lei humana, ele poderia ser morto por qualquer um sem que isso fosse considerado crime. Por isso, essa vida passava a existir fora de qualquer jurisdição humana e não era mais reconhecida pela comunidade. A vida humana, portanto, no contexto do “estado de exceção”, reveste-se de fragilidade e se torna objeto de controle, suscetível à suspensão de direitos humanos e à aplicação de medidas opressoras e violadoras de direitos.

O que ocorre em Gaza é isso. E esse crime contra a humanidade acaba sendo duplamente cometido, quando alguém afirma que o sofrimento de um povo, de uma comunidade, ou de uma época, é maior, ou mais valioso, significativo e importante, que o de outro. O sofrimento é sempre de quem sente. E não de quem julga. E a comparação entre eles não deslegitima nem reduz nenhum.

Como sociedade, deveríamos estar manifestando horror com o que está acontecendo, e cobrando posicionamentos fortes e claros de todos os líderes de Estado do mundo. E não somente para este cenário, vale destacar. Mas para todo tipo de violação de Direitos Humanos. Em qualquer território, país, localidade. Da macro à micro. Se vivo, Nelson Mandela faria isso, assim como Gandhi, Martin Luther King, Malcolm X, Jesus e outras figuras que atuaram social e politicamente e passaram por este mundo na tentativa de deixar ensinamentos em favor do bem comum, que até hoje não incorporamos.

Precisamos de bom senso na análise e na crítica precipitada dos cenários, que, cada vez mais acredito, só com o refinamento da nossa noção de humanidade e empatia, e com a busca por informações verdadeiras, conseguiremos adquirir.

Mesmo se achando tão superior, intelectual e esperta, boa parte dos integrantes da nossa espécie ainda engatinha moralmente. E está longe de ter a mínima habilidade de sentir, ou ao menos compreender, a dor do outro sem julgar, ou questionar. “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar”, um dia disse Luther King. Mas parece que ainda não compreendemos a gravidade desta verdade.

*Claudia Guadagnin é jornalista, pós-graduada em Antropologia Cultural e mestra em Direitos Humanos e Políticas Públicas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Lia Bianchini