Paraná

ENTREVISTA EXCLUSIVA

Entrevista. Por uma atuação cotidiana nas áreas de ocupação

Para advogada popular da campanha Despejo Zero, não é a pauta jurídica, mas a insurgência popular que garante direitos

Curitiba (PR) |
"O pensamento convergente que se tem é a ideia de um povo forte" - Mandata Preta

Advogada popular, integrante da campanha Despejo Zero e da Frente de Organização dos Trabalhadores (FORT), Bárbara Esteche acompanha, ao menos, cinco áreas de ocupação em luta contra despejos e por regularização fundiária, compartilhando uma atenção especial às lutas cotidianas desses comunidades.
A advogada é taxativa no sentido de que o direito pode ser de uso tático para os movimentos populares, mas, em última instância, o determinante é a organização popular para a conquista: “É sim a vontade política e a correlação de forças entre os envolvidos nesses conflitos que faz com que a realidade se movimente”, afirma na entrevista.
Mesmo na condição de advogada, Esteche reconhece que o central é, uma vez mais, a definição política. E aqui, a preocupação das comunidades com o seu oposto: para a militante popular, os principais desafios do momento para a regularização fundiária é a superação da ausência de vontade política em cada região. Neste sentido, o acúmulo da campanha Despejo Zero, no Paraná e no Brasil, é inegável.

Brasil de Fato Paraná – Nesses três anos de Campanha Despejo Zero, passada a pandemia, com a política de solidariedade, e agora no período de novo governo, quais os desafios você enxerga na luta urbana?
Bárbara Górski Esteche - Primeiro de tudo, a principal dificuldade nas áreas de ocupação que são mais recentes é com a prefeitura. É o principal problema tanto numa negociação para uma regularização fundiária, quanto para implementar melhorias de infraestrutura nas áreas. Porque a prefeitura considera que qualquer melhoria que seja realizada está legitimando aquela ocupação, então deixa de realizar. E, por outro lado, não está aberta a conversar, não está aberta a participar das reuniões para as quais é chamada, muitas vezes não vai nem às audiências de mediação que acontecem nos processos judiciais. E isso inviabiliza a regularização fundiária. Há também um problema de regularização fundiária relacionado às comunidades mais antigas, que é o decreto municipal sobre a Reurb – regularização fundiária. Então, existe uma lei nacional que estabelece os procedimentos. Há um decreto nacional, mas também há em Curitiba um decreto municipal que estabelece exigências muito rígidas quanto à documentação para que seja realizada a Reurb, que é cabível nas áreas mais antigas. Então, é muito difícil ultrapassar essa barreira, porque quando se vai fazer o pedido da instauração do procedimento administrativo para a Reurb, no site da prefeitura, é obrigatório que sejam juntados vários documentos. Entre esses documentos, têm mapas, outros documentos que exigem profissionais especializados na área e equipamentos técnicos que são também muito caros - então, principalmente, quando se trata da Reurb S, que é a Reurb de interesse social externo à comunidade de baixa renda. E, além de tudo, existe impossibilidade econômica das pessoas conseguirem fazer o pagamento desses profissionais para conseguir essa documentação. Além de ser contrário ao que está previsto na lei federal, porque a lei federal, além de tudo, considera que a documentação mais difícil de ser obtida e mais especializada deve ser do encargo do município. Então, são obstáculos técnicos, mas que são colocados pela prefeitura e já esbarram no próprio pedido que precisa ser feito para instauração do procedimento para a regularização fundiária.

Uma série de desafios no que se refere a essa política da regularização.

Ou seja, dá para sintetizar em três problemas. Um deles é relacionado às áreas mais novas. Que é a ausência da realização da infraestrutura para não legitimar as áreas. Em segundo lugar, acontecendo com as áreas mais novas e as mais antigas, a ausência do município em alguns espaços de diálogo e, terceiro, relacionado às ocupações mais antigas, as normas, as exigências que são impostas para ser instaurado o procedimento administrativo de pedido da Reurb. E, veja, nesse último caso, a própria lei federal garantiria a regularização fundiária. A lei nacional dá garantias e existe um decreto estabelecendo normas mais específicas para execução da regularização fundiária. Então, existiria no âmbito federal uma certa facilitação nesse sentido. Você teria uma certeza do que fazer. Agora vem o município e, mediante decreto, coloca empecilhos para a realização desse procedimento.

Há uma contradição, então, entre um cenário político atual mais favorável, algumas leis federais, mas nos municípios encontra-se uma indisposição para uma política para uma política habitacional.

rimeiro, existe uma contradição federal. Contradição entre o que está estabelecido em lei, e as práticas para a execução do que está estabelecido em lei. Isso também é visto no próprio âmbito federal. Não são implementadas as condições necessariamente para que sejam executadas as leis, mesmo que leis federais. Então, é uma crítica também à própria legislação, não sobre a legislação especificamente, mas sobre a  normatividade. A normatividade, ela não garante mesmo a nível federal que hajam ações para que sejam implementadas. Então é um poder que a norma não tem. É um poder fictício, de que a norma estabeleceria situações, mas a norma simplesmente determina que sejam estabelecidas situações, mas se essas situações precisam de vontade política, não basta que tenha a norma. E aí sim, no âmbito municipal existem as características da prefeitura local, que fazem com que tenha mais empecilhos para execução. Então, sim, há falta de vontade política no âmbito municipal. E no âmbito federal em alguns casos. Vê-se menos vontade política nesse sentido, embora existem algumas áreas. Então, a gente sabe que tem procedimentos acontecendo em determinados locais de regularização fundiária, que há vontade e a gente percebe que em outros locais não há mais. O que  com certeza não é a lei federal, nem o decreto municipal, que estão regendo essas vontades. Elas estão sendo usadas para isso e, é claro, cabe à classe trabalhadora usar essas previsões normativas também a seu favor. Mas normas não estabelecem a realidade, elas podem ser usadas para isto. Eu falei do decreto da legislação federal, do decreto federal e do decreto municipal que são usados dessa maneira, eles também não são determináveis para a realidade. É sim a vontade política e a correlação de forças entre os envolvidos nesses conflitos que faz com que a realidade se movimente.

Há uma dificuldade nítida de um avanço dos movimentos populares organizados das áreas para conseguir, depois de anos de ocupação, uma regularização, uma série de políticas. No entanto, uma questão que no último período pareceu efetiva foi a pauta contra despejos, que daí se sintetizou na Campanha Despejo Zero. Houve recuos, perdas, mas houve muita resistência e houve muita garantia também nisso, repercutindo numa maior abertura do poder Judiciário. Você participa da Campanha de Despejo Zero no Paraná. Enquanto enquanto militante no corpo jurídico, também, que dimensionamento, assim que reflexões você faz a partir da experiência da campanha?

Politicamente, a campanha Despejo Zero tem atuado e tem servido muito bem como um espaço para a unidade entre diferentes movimentos e comunidades. Nesse aspecto, o MST assume um papel muito importante de unificação. Envolve também profissionais do direito, do jornalismo, e outros profissionais que executam tarefas que são fundamentais para que vários eixos sejam abrangidos em apenas uma luta. Então, eu percebo, na prática, que os movimentos urbanos, as ocupações urbanas têm especificidades umas em relação às outras. E que uma unificação mais forte, do que apenas na luta, poderia ser muito difícil e fragmentaria toda essa luta que, com espaço, com unidade, mas com autonomia também, nos locais, nas territorialidades, permite que esses atores estejam juntos. Há um protagonismo hoje judicial que, a meu ver, vem do período da pandemia que levou ao ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 828), que teve decisões pela suspensão dos despejos durante o período da pandemia e levou a esse protagonismo judicial e ao uso dessas decisões em favor das ocupações. Me parece também que o Despejo Zero tem agido de maneira muito adequada, por meio do uso dessas decisões. O uso do sistema de justiça a favor da classe trabalhadora, mas sem deixar, em absoluto, de lado, a esfera política. Nesses casos, fica mais nítido que ela está dentro do próprio processo judicial, porque, a depender de como se dá a correlação de forças entre os envolvidos no conflito, o resultado será distinto, isso fica muito mais nítido num processo coletivo de reintegração de posse. São os pedidos de despejo das pessoas da área que levam esses temas ao Judiciário, deixando mais nítido o papel da política nos processos judiciais.


Assembleia de moradores na comunidade Pontarola, no Tatuquara, em disputa com a Cohab / Pedro Carrano

Estamos falando de um cenário bastante complexo para as forças populares. Desde a ascensão do neofascismo, a vitória do Bolsonaro em 2018 externalizou um desvínculo das organizações e dos partidos de esquerda com as massas populares. Essas comunidades não participaram da resistência contra o golpe contra Dilma Rousseff (2016) e há todo um debate na esquerda de voltar a fazer trabalho de base, acho que a solidariedade da pandemia puxa isso. E nisso surgem experiências diferentes de organização popular. Seja de solidariedade, seja comunitária, seja de luta popular, de pauta popular. E nisso tudo eu dimensiono um pouco a experiência da Despejo Zero e nisso diferentes experiências que estão surgindo na luta por moradia também e a Frente de Organização dos Trabalhadores (FORT) é uma delas. Que lições e que aprendizados podemos levantar sobre todo este período?

Primeiro, você começa falando de um período dos últimos anos. Dos governos progressistas, que foi representado no Brasil pelos governos do PT. E de um afastamento que se teve da base, o que é muito falado, até parece senso comum falar disso, mas de fato existiu naquele momento econômico mundial uma opção pelo consumo e se deixou de lado muitas outras maneiras de se ter contato com a população de renda mais baixa. Então, a opção ali foi por incentivar essas pessoas a terem mais acesso a bens de consumo, que não significa que a população também tenha tido um desenvolvimento socioeconômico. E essa foi a política, entre outras, ao lado de políticas sociais, como Bolsa Família, que não se pode deixar de lado. Mas, veja, são também voltadas à economia. O próprio Minha Casa, Minha Vida na época. São todas políticas muito voltadas ao acesso à renda. Minha Casa, Minha Vida teve importância no acesso à moradia, mas teve também muitos problemas relacionados ali às faixas de 0 e 1, da população que ficou subprotegida nesse sentido. Então a gente percebe mesmo que é real esse afastamento do cotidiano das comunidades periféricas. Nesta nessa retomada, em pleno bolsonarismo e governo de extrema direita, que acontece na realidade da pandemia? Propiciou um ambiente de maior solidariedade.

Sobre a Comissão de Mediação de Conflitos Fundiários, quais foram os fatores positivos e quais foram os limites? Quer dizer, quais foram os fatores positivos desse processo, dessa mediação do Tribunal de Justiça sobre os conflitos fundiários? Da mesa de negociação que a gente do Despejo Zero montou e quais são os limites?

Então você começa dizendo, em algum momento, você diz a ‘mesa de negociação que a gente montou’. A gente, enquanto Despejo Zero, isso já deixa evidente que o papel não é exatamente apenas da Comissão de Mediação de Conflitos Fundiários, mas que existe uma construção coletiva na qual o Despejo Zero tem papel fundamental e vem se desenvolvendo de maneira contingente, de acordo também com os momentos que a própria realidade histórica mais imediata propicia. A Comissão vem a partir de uma necessidade também, porque os conflitos, se fossem um processo judicial, esses conflitos fundiários corressem de maneira tradicional, por exemplo, sem uma mediação, imagina o resultado disso? Então, geralmente as decisões judiciais são, é fato isso, se pegar a maioria das decisões judiciais, as decisões que determinam a população atingida e que determinam normas como função social da propriedade, que consideram a hipossuficiência socioeconômica da população. Então, a maioria das decisões são, sim, de reintegração de posse. Como que se começa, geralmente, a atuação dos advogados nessas ações? Mediante o chamado agravo de instrumento que as ocupações, a população das ocupações, já têm na ponta da língua, porque vem uma decisão liminar determinando o despejo, que foi pedido pelo proprietário da área, seja município, estado ou pessoa física, ou uma empresa privada. E essa decisão já vem pelo despejo imediato, sem possibilidade de manifestação e sem a intimação prévia das pessoas. Citação, que é o termo correto juridicamente das pessoas envolvidas no processo. Então, já se começa com, geralmente, um recurso, com um ataque já a uma decisão que foi dada contra os moradores. Então, em regra, o que se teria seria um caos social maior ainda de despejos. Então a Comissão de Mediação de Conflitos Fundiários é uma necessidade principalmente do poder público, que seria o maior responsabilizado e de fato responsável pelos despejos. Eu digo que é o responsável porque caberia ao poder público no atual sistema em que se vive fornecer o acesso à moradia. Então, as ocupações, como consequência de falta de acesso à moradia, elas são já de início responsabilidade do poder público. Então, vejo a comissão de conflitos fundiários como uma necessidade para que não exista um caos social e isso importante também para os moradores, mas também para o poder público e então aí também fica em evidência a luta de classes, nessa contradição interna do papel da própria Comissão. Porque ela é de fato, na prática, benéfica aos trabalhadores. No caso, aos moradores das ocupações. Então é utilizada pela classe trabalhadora. Ela se torna um espaço de negociação que serve aos trabalhadores, que acaba servindo, mas aí dentro dessa negociação. Veja, são coisas que em todos os espaços estão presentes, a correlação de forças para que exista a negociação dentro. Dos conflitos que existem entre as classes, mas para que isso possa existir e para que exista de fato um conflito para que as classes dominantes cedam, é antes de tudo preciso uma resistência, uma insurgência popular. E aí também o papel do Despejo Zero. Porque se não houvesse essa insurgência, essa resistência pela pressão do Estado, responsabilizando-o pela falta de moradia, não precisaria ter a comissão também, porque os conflitos seriam resolvidos com despejos. Mas sempre que se despeja, há uma massa que vai para a rua. E há uma massa reivindicando direitos, então, o reivindicar direitos perante o judiciário e sob a mediação, nesse caso, da Comissão, é resultado desse conflito de classes e dentro desse espaço se consegue fazer todas as pressões políticas de todos os lados para que isso seja usado a favor dos trabalhadores.

Dentro desse contexto todo, o sentido do FORT, que é uma experiência que você participa, uma experiência nova e de luta popular, ao lado de militantes oriundos de organizações, lideranças comunitárias e do Padre redentorista Joaquim Parron, com o enfoque na moradia, como o FORT contribui ou se posiciona nesse sentido?

O FORT surge da prática de diferentes pessoas, inclusive, em diferentes espaços e a partir das coisas que não deram certo. É a partir das percepções na realidade, do que as comunidades não estavam aceitando naquele momento e muito também da própria conformação das comunidades. Incluindo a percepção de que cada comunidade é muito específica, existem comunidades que estão no mesmo bairro. Mas que são absolutamente diferentes entre si. Da autonomia que as comunidades querem ter internamente na sua organização, e, principalmente, surge dentro dessas comunidades. O FORT é uma ideia que vem de conversas entre pessoas da militância com pessoas da comunidade, da militância mais do centro da cidade, já inseridas nas comunidades, eu digo já com certa confiança nesses territórios, e é dessas conversas entre essas pessoas que acaba existindo, sendo visualizada a necessidade de um formato diferente de organização das que já se tinha visto, em Curitiba, por exemplo. Considerando principalmente a autonomia entre as áreas e que a organização viesse da periferia, saísse de dentro da periferia. E não que viesse com um formato já estabelecido sobre a comunidade, mas que se pudesse apresentar um espaço que dê unidade também. Mas não como Despejo Zero, um espaço de maior unidade, com linhas ideológicas convergentes. E, inclusive, linhas ideológicas convergentes com um pensamento de organização das comunidades. No caso o pensamento convergente que se tem é a ideia de um povo forte, que não sejam estabelecidas normas comunitárias que acabem não dando espaço para o povo se desenvolver no dia a dia e criar e ter a sua vida de maneira espontânea. Que exista também uma participação efetiva do povo por vontade. Então é mais relacionada ao estímulo da participação. É também com formação política. É uma formação, não uma formação política convencional de sala de aula, mas uma que exista a politização em todos os espaços. E que se entenda que muitas entendendo que muitas vezes haverá coisas que virão de fora para dentro.


"No caso o pensamento convergente que se tem é a ideia de um povo forte" / Pedro Carrano

Mas não sem contexto e não sem ligação com a vida das pessoas. Acho que é isso que você traz como preocupação. Talvez por muito tempo a esquerda trouxe coisas já mastigadas, embora corretas, mas que o povo não estava inserido naquele contexto e esse contexto não tocava na vida delas como um ponto de partida para a organização e mobilização.

Existem duas visões no campo progressista, geralmente. Que são bem marcantes. Uma delas é: não se pode trazer nada de fora para dentro. Por exemplo, levar nada para a periferia do centro para a periferia. E existe uma outra visão totalmente paternalista de vamos levar nossa ideologia para a periferia. Na verdade, na prática elas se confundem. Porque é muito difícil não se levar nada, porque existe uma questão irreal aí, porque carrega-se ideologias. Inclusive, contraditoriamente, mesmo no campo da esquerda, no campo progressista e a ideologia dominante? Então quando se vai até um espaço, já existe uma proposta de se chegar e de estar querendo fazer alguma coisa nesse espaço. Então é impossível, é irreal, é fictício que se tem que como se não influenciássemos aquele espaço. A própria presença já influencia o espaço. Então, mas o que acontece na prática mesmo com essas concepções? É o oposto. É o extremo paternalismo porque, ao se verificar nas comunidades contradições ideológicas, seja por moralismo, seja por falta de compreensão da localidade, há muitos grupos que se retiram desses espaços. Na prática, quando se retira de um espaço porque não aceita esse espaço, é porque queria que aquele espaço fosse de determinada maneira e não se aceita aquele espaço como é. Então, e nesse sentido, é impossível a modificação da realidade. Porque os territórios não funcionam como a nossa ideia das territorialidades específicas. Chega-se aos territórios, é preciso primeiro compreendê-los. E há sim também contradições nesses territórios que fazem parte da ideologia dominante. Há contradições em relação à nossa moralidade burguesa e há também contradições em relação à totalidade burguesa, então há no centro da cidade uma moral que predomina e ela é diferente em diferentes espaços. E quando se depara com essa moral distinta? Muitas vezes não se suporta essa contradição. Mas há também a influência da totalidade burguesa e isso é sim algo que nós, do campo da esquerda, pelo menos os marxistas, queremos mudar. Então, se há uma vontade em superar o capitalismo e a ideologia dominante é preciso que se venha assim, ideias de fora é preciso sim, politização. E é preciso também organização, mas antes de tudo, aceitando o local como ele é, para então poder modificá-lo.

Edição: Lia Bianchini