No bairro Alto da Glória, na pequena e gélida cidade de Palmas, no sudoeste do Paraná, o visitante se depara com um nome forte, que é, de certa maneira, a inspiração para uma caminhada de luta.
Com o rosto impresso e bem fincado numa placa metálica, no interior da ocupação de 83 famílias e 102 crianças, o nome da vereadora carioca, brutalmente assassinada em 14 de março de 2018, Marielle Franco, batiza um lugar que, em menos de quatro anos, conquistou o direito de não ser despejado e de avançar no caminho da regularização fundiária.
Ali, Cleia Rezer, é coordenadora, em uma direção de oito pessoas. De protagonismo natural, corpo delgado, marcas da vida no rosto, estava ao lado da neta, Evelin, quem já estava aprendendo com a avó os passos da luta. O barraco, no início da pandemia, comportava as duas lideranças e mais vários integrantes da família. Recorreram à ocupação durante a pandemia por necessidade.
O carisma de Cleia é evidente. Torna a prosa tranquila numa manhã de sol. Ela reúne o cotidiano de liderança popular com a experiência política de quem já havia atuado em lutas sociais e na militância também. “Eu era trabalhadora em empresa de madeirite. Agora vivo aqui”, relata, batendo nas madeiras que já foram produzidas por suas mãos e que agora ergueram o espaço coletivo da comunidade.
A boa notícia foi que, ao final de 2023, depois de três anos de luta, a partir do trabalho da Comissão de Soluções Fundiárias do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), presidida pelo desembargador Fernando Prazeres, a Câmara de Vereadores do Município aprovou por unanimidade um Projeto de Lei para que a prefeitura adquira o terreno e realize a regularização fundiária da comunidade. “Ou pagávamos aluguel ou comprávamos comida, optamos pela comida. Eu fiz o promotor chorar, explicando isso para ele”, afirma.
O apoio para tal conquista, sempre lembram as lideranças, veio do MST, da Campanha Despejo Zero - PR, do Fórum de Entidades e Movimentos Populares do Sudoeste, do Fórum e da Rede Nacional de Advogados Populares (Renap), entre outros atores.
As dificuldades nesse meio tempo foram tamanhas, maiores do que a subida necessária na saída da ocupação. As lideranças recordam a luta pelo serviço de água, o impacto do frio e chuva, no terreno de barro, contra o preconceito na cidade e contra os ataques que a ocupação sofria. Por exemplo, quando uma das placas com o símbolo de Marielle Franco foi arrancada.
E voltou a ressurgir, como semente.
A avaliação mais recente, no entanto, é sobre o respeito conquistado. “Já sofremos bastante com a sociedade e com o rótulo de invasores. Somos uma ocupação, eu sempre corrijo”, afirma Cleia.
O local é visto pelas moradoras como adequado para ficar. Há bom espaço para os lotes, a escola e creche ficam próximas. O preconceito foi sendo derrubado aos poucos, na parceria com a universidade, com o Instituto Federal do Paraná (IFPR) - campus Palmas, na oferta de cursos de artes marciais para crianças dada pela própria Polícia Militar. Corporação que, anteriormente, havia pressionado a ocupação pela sua saída.
Parcerias e pontes
Bruna Zimpel é coordenadora do MST no Paraná e presta apoio à ocupação Marielle desde o começo das ações de solidariedade propostas pelo movimento, logo no início da pandemia. Conta que está havendo mediação entre a família proprietária de uma área marcada por ter sido um aterro de lixo e pela destruição de pinheiros.
A organização da comunidade foi se dando aos poucos, da formação da coordenação, que hoje conta com seis mulheres entre oito componentes, da construção de horta comunitária e espaço coletivo – construção de espaços comuns, um ensinamento que a campanha Despejo Zero proporcionou a várias áreas nas mais diferentes situações.
“O Sejusc veio, e no começo os proprietários não queriam nem conversa. A prefeitura se abriu no último período para o processo. E foi aprovada a compra da área. Ainda haverá nova audiência em março”, narra Zimpel. A comunidade também se comprometeu, a partir da sinalização do poder público, congelando os cadastros e comprometendo-se a manter a comunidade do mesmo tamanho.
Com o MST, as lideranças apontam reiteradas vezes que aprenderam a propor acordos coletivos com a comunidade, o que facilitou a organização. “Cada família precisava comprovar, a cada seis meses, que os filhos estão frequentando a escola”, exemplifica Cleia. “Depois veio o batismo como Marielle Franco, uma mulher negra, também vinda da periferia, simbolizava essa luta”, aponta Bruna.
A resistência é então o episódio final?
A última audiência garantindo a compra dos terrenos é o ponto final dessa história? Cada família agora segue sua vida?
No que depender da coordenação da Marielle, não. Este ano mesmo, no primeiro dia de sessão da Câmara local de Palmas, moradores estavam fazendo barulho “para garantir que os acordos sejam cumpridos”.
Vencida a pauta de não haver o despejo forçado, a comunidade tem plena consciência que a luta entra em outro patamar, numa verdadeira guerra popular prolongada. Como, no fundo, sempre foi.
Edição: Lucas Botelho