Paraná

ENTREVISTA EXCLUSIVA

Instituto Democracia Popular: uma crítica às políticas públicas para moradia em Curitiba

Conheça mais sobre o IDP, uma das entidades que se soma à luta por moradia no interior da campanha Despejo Zero

Curitiba (PR) |
Libina (esquerda) e Mariana (dir): prefeitura sempre realizou projetos de regularização e remoção autoritários - Pedro Carrano

Com participação constante na campanha Despejo desde 2021, o Instituto Democracia Popular (IDP), é uma das entidades de apoio urbanístico e jurídico às áreas de ocupação em Curitiba. Atuantes há mais de dez anos, desenvolveram uma visão crítica sobre a construção de uma cidade excludente e sobre a ausência de políticas públicas em Curitiba e no Paraná. Ao longo da entrevista, duas integrantes do IDP, a advogada Mariana Auler e Libina Rocha, presidenta do Instituto, fazem um resgate das pautas na área da moradia e das diferentes lutas que marcaram o período 2012 – 2016 e, mais tarde, a resistência das comunidades, durante a pandemia, contra despejos forçados.

Mais que isso, Mariana e Libina traçam uma duríssima crítica ao papel que a prefeitura de Curitiba tem feito, historicamente, nos processos de regularização fundiária. Das formas de remoção e realocação autoritárias, passando pela ausência de participação nas mesas de negociação convocadas pela campanha Despejo Zero.

Confira a entrevista, realizada em dezembro de 2023, para a construção de livro reportagem sobre a experiência da Despejo Zero.

Brasil de Fato Paraná. Que áreas o IDP tem acompanhado, se puderem dar um panorama geral, no acompanhamento das áreas de ocupação região de Curitiba e no restante do estado?

Libina da Silva Rocha - Bom, a gente acompanha a São Domingos (bairro Cajuru), que é a primeira, já tem uns 10 anos que a gente faz esse acompanhamento e lá teve a estratégia, que é única, de fazer ações de usucapião individual. Foi pensado numa forma de fazer pressão. Então, a gente teve algumas vitórias recentemente depois de todo esse período. E daí tem o complexo da Cidade Industrial de Curitiba (CIC) que acompanhamos também faz uns 10 anos, desde o início. A gente acompanha (as áreas) Nova Primavera, Dona Cida, 29 de Março e a Tiradentes (que também já foi chamado complexo Hugo Chávez). E dá apoio para a área Tiradentes II. Tem o próprio Ribeirão dos Padilhas. Foi quando surgiu o IDP. A gente nem sonhava em ter o instituto. Então, o Ribeirão vem antes um pouco do instituto. É porque foi um projeto de regularização fundiária a partir da Cohab. Mas, quando o projeto chegou lá, era um projeto de remoção. Era de 100% basicamente a remoção. O projeto era o discurso de regularizar. Mas, quando o pessoal percebeu que era remoção e não regularização no local, então foram acho que uns três anos que o pessoal estava bem mobilizado.

Ribeirão fica aonde?

Libina - Xaxim e pega parte do Sítio Cercado. Então, ali eu também considero como uma vitória, porque eles estavam bem fortes e as casas já estavam prontas ou as casas que eles queriam remover as famílias que eram longe, lá no Tatuquara, e com esse coletivo forte, então, não foi efetivado. Eles colocaram outras famílias lá e as famílias específicas ali não conseguiram regularizar de fato, mas também permanecem como estão.

Mariana - Fora de Curitiba, a gente atua em dois casos, em União da Vitória e Palmas, com o setor de direitos humanos do MST, que foi uma atuação conjunta. Enquanto eles estavam estruturados em torno do coletivo Jatobá. Encerraram os dois casos. Finalizaram o de Palmas, inclusive teve um desfecho e vão regularizar as famílias lá.

Há alguns ciclos que foram de atuação do IDP, que tem uma relação com o contexto de governo, inclusive federal, disposição de políticas públicas e também com uma resposta no sentido de pensar uma ferramenta de luta territorial ali a partir da experiência do Ribeirão.

Porque foi um momento que teve esse pessoal que vinha da advocacia trabalhista, que se envolveu com o caso e pensou em estruturar, digamos, um braço que fosse mantido pelo escritório de uma advocacia voltada à luta social. O Ribeirão dos Padilhas é uma ocupação, mas é antiga, do final da década de 70. Então você vai lá e você nem diz que é uma ocupação. Só que teve uma intervenção ali a partir de 2011. Que foi uma intervenção do município a partir do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), então uma verba grande do PAC, que parte foi para a regularização fundiária, mas num propósito de implantação de um parque linear ali no Xaxim. Só que foi um processo bem arbitrário, que só se propunha à remoção das pessoas que não tinham título de propriedade, apesar de serem casas de alvenaria de um padrão bom já, depois de tanto tempo. E as realocações estavam sendo feitas para projetos do Minha Casa, Minha Vida, no Tatuquara, umas casas pequenas. Depois, tiveram até problema de qualidade de construção, com o teto caindo, coisas assim, que daí foi um momento também que existia uma crítica, da forma como o IDP fazia a leitura, da consecução dessas políticas no nível municipal, porque era a verba de produção habitacional sendo gasta para realocar pessoas que não precisavam de realocação. Então era um erro na política de regularização fundiária, um erro na produção habitacional. E daí a partir dessa experiência o IDP começa numa perspectiva de atuar em áreas de regularização fundiária, numa proposta de vamos fazer debate de regularização, de qualificação das áreas onde estão esses moradores, pensar em segurança jurídica da posse, então a gente começa mais nesse ciclo. As áreas nesse momento que a gente tinha uma proximidade maior, a Canaã (Novo Mundo), a Vila Joanita (Bairro Alto) a gente também atuou. Tinha uma articulação mais ampla que, daí incluíram outros atores que acompanharam.

Um perfil de áreas já com certo tempo? Não como a iminência de despejo, uma certa urbanização, que em parte o próprio povo também construiu. Mas que ainda não estavam regularizadas.

Mariana - Então, era mais uma perspectiva de construção da política pública de regularização fundiária no município. E uma reivindicação de reconhecimento, que era isso, perfis de áreas consolidadas. Não teve essa questão de uma eminência de despejo. Os problemas que adivinham das formas que estavam estruturadas as políticas públicas, estava vindo recurso e a forma como elas acabavam sendo feitas no município, é que a proposta de regularização fundiária por uma conduta do município de Curitiba era bastante conservadora. Com muita realocação, que era crítica como as coisas ficavam acontecendo aqui na ponta. Tinha então dinheiro para Minha Casa, Minha Vida (MCMV), só que, em vez de produzir para pensar no déficit, estava sendo feita a realocação de projeto de regularização fundiária, que não tinha necessidade, em muitos casos.

Libina - Nessa época, criou-se o movimento, entre 2011 e 2013, e a gente chegou perto de acompanhar umas 30 associações de moradores.

Aliança por Moradia?

Libina - Isso. Todos com esse perfil de serem áreas irregulares, de muito tempo, a maioria era esse perfil, e que estava com o projeto de remoção, na verdade.

Mariana - De regularização, mas um projeto de regularização autoritário, digamos assim, com muito pouca flexibilização de padrões por parte da concepção do município, mesmo. Então, “Ah, aqui não dá porque falta 3 cm na rua. Aqui o lote está muito pequeno”. Então um pouco também dessa incidência na perspectiva da regularização era incidência sobre os projetos. Que vinham de uma forma muito autoritária, construídas pelo município mesmo, sem diálogo com essas comunidades que estavam sendo impactadas.

Certo desrespeito ao próprio contexto dessas comunidades, que às vezes é isso, querem ficar onde construíram toda uma vida e uma estrutura?

Mariana - Exato, tem todo esse contexto de as pessoas terem feito urbanização da área. É só que também a participação no projeto de regularização, porque todas essas áreas têm, em alguma medida, algum tipo de reivindicação de melhoria de estrutura, certo? Então, em vez daquilo ser construído, digamos, de uma forma mais coletiva, e com consulta a essas comunidades sobre problemas.

Mas, ao contrário, são projetos autoritários porque não está olhando a base do território no sentido de pensar quais são os problemas efetivos. O que seria possível melhorar? O que seria possível reconhecer da forma como estava? Enfim, nesse sentido, com muito pouco diálogo. Essa linha da Cohab de chegar marcando casa, “você sai, você fica”, enfim, então, teve muito esse problema com a institucionalidade municipal, com o trato da Cohab em relação às comunidades.

Libina - Eu acho que Cohab é o maior entrave nosso. Pode-se dizer que não tem diálogo com eles e eles são muito autoritários e é por onde passa toda a política habitacional de Curitiba. Você não tem interlocução com o pessoal da própria prefeitura. E é assim o que a gente sente, que eles atuam da forma só que lhe convém. Porque quando convém, eles estão atuando pelo município e quando não convém daí eles são uma sociedade de economia mista que tem que ter lucro. Aí a gente sempre se deparou também com essa questão, da política habitacional de Curitiba para passar tudo por ali. Porque eu fui a muitas reuniões na época, em 2012, 2013, e se via muito esse discurso. Ora, o discurso vinha dizendo “poder público” e ora a companhia dizia: “A gente não pode simplesmente sair fazendo. A gente tem que fazer todo um planejamento, porque a gente tem que ter lucro. A gente não pode ter prejuízo”, enfim, então isso é uma coisa que a gente se depara. De lá até hoje, a gente vê o mesmo discurso.

Desse processo, vocês vão passando também a atuar com situação das áreas de ocupação mais recentes?

Mariana - Foi esse segundo momento, relacionado às ocupações ligadas ao Movimento Popular por Moradia (MPM). Começa com a Nova Primavera, em 2012, antes da fundação do Instituto, mas depois que foi fundado, a gente passou a atuar na defesa desse caso. No processo de reintegração de posse da ocupação Nova Primavera. Daí depois, já a segunda ocupação, que foi feita 29 de Março. Apesar dela não ter processo judicial. Depois, a Tiradentes, que foi feita em 2015. Por último, a Dona Cida, feita em 2016. Nesses casos, todos foram vários processos, né? A Dona Cida é mais de uma área, então são três processos. Na Tiradentes, são dois processos, porque um é do aterro, um é dos proprietários. E na 29? Apesar de não ter, é uma área pública municipal, nunca teve um processo de reintegração de posse proposto pelo município. Mas a gente teve, em 2018, o incêndio, que foi um processo que gerou várias questões jurídicas ali de acompanhamento. Que daí é isso, é outro contexto, é outra estratégia de ocupação naquele momento, o MPM estava fazendo essas ocupações pensando muito nas estratégias pautadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), tendo o exemplo do MTST, que ocupava as áreas não para já, digamos, lotear e estabelecer as residências. Era um processo de ocupação para depois vir com a reivindicação da produção habitacional via Minha Casa Minha Vida Entidades (MCMVE). Então, essas ocupações vieram de uma outra lógica. Num sentido de um movimento social mais orgânico, também com estratégias políticas mais definidas. A gente atuava nos processos judiciais, mas isso de uma forma muito conjunta com a estratégia política que estava dada. Foram ocupações que começaram com a estratégia política mais definida. Então a gente sempre fez esse trabalho de uma forma conjunta com o movimento ali na Cidade Industrial. E o que foi acontecendo nessas áreas das ocupações do MPM é que a gente também passou por muita transformação dos governos, tanto na escala municipal, mas também especialmente na federal. Então, tinha negociações acontecendo em 2016. Daí a gente tem o golpe. Na sequência, já tem uma reestruturação do Minha Casa, Minha Vida. A gente não tem mais MCMV Entidades. Fica nesse vácuo e nisso as comunidades internamente passaram a mudar a sua própria reivindicação, porque não era possível também ficar naquele padrão de construção, ad aeternum, considerando que não tinha mais a perspectiva de vir o programa.


"E daí os processos retomam esse ano e muitos deles no sentido positivo para a gente caminhar efetivamente no sentido de reconhecimento" / Giorgia Prates

A própria pressão sobre a prefeitura também se esgotou ali no final da prefeitura do Fruet também.

Mariana - Isso. Em 2017, começa a gestão do Greca. Então, o Fruet teve coisas que, por exemplo, ele não deu respostas a contento. Só que, ao mesmo tempo, a Cohab, comparativamente ao período anterior e ao período posterior, ela tinha mais interlocução. Era o Ubiraci Rodrigues (presidente da Cohab na gestão Fruet). Ele recebia as pessoas, então foram feitas muitas reuniões na Cohab. No caso da Nova Primavera, avançou efetivamente em negociação. Tanto que o processo judicial da Nova Primavera fica suspenso por inclusive aceite dos proprietários por muito tempo até mais ou menos 2017, que é quando se retoma a partir do campo judicial. Porque no campo administrativo/político tinham se esgotado absolutamente todas as possibilidades. Então, assim, a gente não teve respostas ao conteúdo no governo Fruet, mas a gente teve um diálogo muito melhor. Tanto teve esse caso da Nova Primavera que foi efetivamente negociado, no interior da Cohab e teve para vir a verba do MCMVE. E, depois, a gente nunca mais teve interlocução, por parte do município. Foi aprovada também a lei do aluguel social, em 2015. Em 2016, era o Fruet ainda. Não foi feita a dotação orçamentária e daí depois simplesmente aquilo saiu do radar da prefeitura, a partir de 2017. Apesar da lei estar válida ainda. Teria que ter uma reivindicação de orçamento para legislação que foi construída, mas a lei está válida ainda. Aquela lei de aluguel social que foi construída em 2015, mas, enfim, só que daí teve todas as transformações. Assim, não tinha muito como contar com a política pública na própria estratégia. Então, o cenário judicial, quando a gente tem esse enfraquecimento dos caminhos políticos administrativos, ele acaba virando a arena central de disputa, volta para o campo judicial quando a gente não tem esses caminhos. Então, depois de 2016, toda negociação passa a vir pelo campo mais judicializado e as comunidades passam a mudar um pouco o pleito de reivindicação, quando a gente vê essa desestruturação das políticas públicas, as próprias comunidades, elas, em alguma medida, se reordenaram. Do ponto de vista territorial mesmo, de se replanejar. A Tiradentes, mesmo, é uma comunidade que foi muito grande. Ela começa, acho que tinha umas 800 famílias, era muito grande a ocupação. E como teve ameaças seguidas de despejo ali na área, teve um dado momento que diminuiu o volume de famílias. Então, eles fizeram um planejamento da área territorial, que inclusive um pessoal do Sindicato dos Engenheiros do Paraná (Senge) ajudou, uma professora da UTFPR, Simone Poli, também contribuiu para a área. E então eles se reordenaram e todas as comunidades, num dado momento, começaram a reivindicar a regularização, trazendo a narrativa de que eram áreas consolidadas que, na verdade, aquilo precisava ser reconhecido. Então saiu de cena, digamos, a reivindicação da MCMV, sabe? Por todo um período e o que foi acontecendo judicialmente nesse ciclo dessas quatro áreas, que foi uma outra experiência, foi isso, a transformação da reivindicação para pensar em regularização e a gente está hoje numa fase de conclusão. Na Tiradentes, a gente teve uma situação bastante inesperada, que foi a doação de parte da área. A parte onde está a Tiradentes, na área mais antiga dela, por parte da massa falida que é proprietária; as ações da Dona Cida foram transformadas em perdas e danos. Então, também não tem mais uma ameaça de despejo ali, com uma tese de responsabilização do município pela regularização da área, uma eventual desapropriação para indenização dos proprietários e a mesma coisa, por último, acontece na Nova Primavera, que também aconteceu esse ano (2023) que teve um processo de suspensão, digamos, todos os processos de reintegração, como são áreas de ocupações anteriores à pandemia, com ADPF 828, a ação que tramitou no Supremo, do Despejo Zero, todos esses processos ficaram bem parados no período da pandemia, considerando que eram áreas mais antigas. E daí os processos retomam esse ano e muitos deles no sentido positivo para a gente caminhar efetivamente no sentido de reconhecimento, então essas quatro áreas que foram, digamos, a experiência principal do IDP de ir para esse outro nível de atuação, que é a ameaça de despejo mais nua e crua, eles tiveram resolução esse ano. Em alguma medida, pelo menos, claro, não tá tudo resolvido. Tem várias reivindicações das comunidades. Em termos de precariedade de serviço. Uma regularização efetiva, mas do ponto de vista da ameaça da reintegração de posse hoje, não existe nenhuma ameaça nessas quatro áreas.

E aí encerra-se um período conjuntural e se abre outro na luta por moradia?

Mariana - Teve esse ciclo. Teve uma mudança também da atuação, que é com a pandemia e daí um agravamento mais sério ainda com o contexto de ter o governo Bolsonaro, as portas mais fechadas ainda em termos de diálogo, os processos de mediação. E daí, com a pandemia, essas áreas, mesmo as áreas que a gente tinha um cenário de uma certa estabilidade ali da posse, passa a ter outros problemas. Então, essa questão da segurança alimentar. A gente teve também seca aqui em Curitiba, em 2020/2021. Afetou muito essas áreas. Então, algumas reivindicações dessas áreas passaram a ser de outra ordem e, por outro lado, houve articulação, via Despejo Zero, e pela interação com o MST, que passa a crescer desde a pandemia, na articulação do IDP, especialmente por conta dessas articulações para a gente conseguir chegar em certos territórios, dentro da linha da segurança alimentar, passa a existir uma interação maior. E daí nesse processo como pensar no núcleo da Despejo Zero, aqui em Curitiba e no Paraná, que daí foram construídas algumas coisas em colaboração. Então, com o MST, a gente acompanhou esses casos no interior. E, também, num âmbito mais coletivo da Despejo Zero, discutir as estratégias que eram transversais a vários casos aqui em Curitiba, que daí também é um outro contexto de ocupações. Que a gente está falando assim que foram ensejadas por um agravamento da crise social durante a pandemia. Então, a gente vê as ocupações crescerem na cidade e daí é um outro cenário. E é muito interessante, do ponto de vista das assessorias jurídicas, a gente percebe essa movimentação. Que é isso: em todas as atuações, seja nessas áreas que estão mais ligadas à pauta da regularização e são mais antigas, seja nas ocupações do MPM que vieram dentro desse contexto da Minha Casa Minha Vida, a gente sempre teve uma proeminência, digamos, maior do que o campo administrativo político, refletindo nos processos. Quando a gente começa a pandemia, como esses canais estavam absolutamente fechados, o Judiciário tomou uma proeminência gigantesca. E de algum modo também é isso que reflete, no sentido de ter a criação da Comissão de Conflitos Fundiários. Eu acho que tem questões que dizem respeito à pessoalidade ali, por exemplo, do Fernando Prazeres, que eu acho que foi uma pessoa que se sensibilizou efetivamente dentro do Judiciário para a questão e tocou em alguma medida a estruturação ali da comissão, dentro do Tribunal de Justiça. Mas eu também acho que isso foi possível, primeiro, a articulação, a reivindicação da Comissão de Conflitos Fundiários, ela parte de uma reunião que é feita pelo MST junto com a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), junto com o governo do estado. Então, isso parte de uma reivindicação do movimento social de experiências pretéritas que a gente teve do governo Requião, quando houve, enfim, uma instância de mediação de conflitos fundiários, que era ligada ao executivo, no governo do Requião (2002 - 2010). Foi desse governo também que que foi criado a partir dessa experiência que a gente teve de mediação dos confrontos fundiários, que era ligada ao campo, que a gente tem a sentença de mediação e é dali que surge o Coordenadoria de Mediação dos Conflitos Fundiários da Terra (Coorterra), que também virou, digamos, em alguma medida, um modelo referenciado pelo Conselho Nacional de Justiça, depois dessa decisão final do Barroso na ADPF 828. Enfim, uma instância da Polícia Militar focada em conflito fundiário. Então, isso é uma especificidade do Paraná. Às vezes a gente vê uma discussão, como o surgimento da Comissão de Conflitos Fundiários, como se fosse, simplesmente, uma originalidade institucional.


Desembargador Fernando Prazeres visita ao viveiro do Acampamento Terra Livre, em Clevelândia / Valmir Fernandes

Havia um acúmulo anterior.

Mariana - Exato. Um acúmulo que foi construído pelo movimento social. Assim, a experiência que a gente teve foi muito relacionada a essa experiência da mediação no governo Requião, que foi construída a partir dos movimentos do campo. Então, pensando nessa interação, da Despejo Zero e esse aspecto que eu acho que foi muito interessante. Foi a gente pensar nessa conjugação de diálogo entre o movimento do campo, MST, com as comunidades, os movimentos sociais urbanos.

Uma movimentação nova me parece. A pandemia, também, empurrou muita gente para a luta, não é? Quer dizer, surgiram pelo menos 12 comunidades mais consolidadas em Curitiba e região. Sem contar aquelas que aconteceram e tomaram o despejo nos primeiros dias. Quer dizer, houve uma movimentação nova também ali na base.

Mariana - Num ponto de vista municipal a gente chegou a fazer intervenções por parte das assessorias jurídicas, o IDP, a Terra de Direitos, outras entidades que estavam ligadas à questão urbana de fazer uma reivindicação sobre um plano emergencial de assistência social, porque as coisas foram totalmente desestruturadas no município. Então foi, digamos, um imperativo de sobrevivência, em alguma medida, naquele momento também. Pensar desde a questão de segurança alimentar, a questão da possibilidade de se fazer quarentena em um contexto de precariedade dos territórios e também esse cenário da própria permanência, a polícia num cenário com muito respaldo para ações mais violentas. Então, foi um momento ali que se empurrou muita gente para a luta, mas além disso também eu acredito que haja um papel proativo do movimento social de estar presente nesses territórios. Acho que houve esse movimento também. Enfim, os próprios grupos, que estão presentes na Despejo Zero. Houve um processo de movimentação ativa de ir para esses territórios, de trazer as comunidades para essa instância de articulação e politização que foi a Despejo Zero.

Vocês têm uma avaliação, enquanto IDP, que a Despejo Zero uma experiência organizativa positiva? E vocês acompanham esse processo organicamente. Quer dizer, sim, como uma entidade no interior da dessa construção.

Libina - Eu acho que, inclusive, muitas comunidades só conseguiram passar por esse período devido a essa união e a esse coletivo ali, unido, com os movimentos rurais e urbanos. E aí vem junto com isso essa questão do Sejusc (Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania), que vem atuar e a gente conseguiu passar esse período da pandemia e segue nessa luta que, ao meu ver, eu acho que tem que ser fortalecida. Pensar em formas de fortalecer, porque tem essa questão de que na cidade, muito diferente do campo, é mais difícil de se manter essa organização, essa coisa tão forte no urbano. Eu acho que tem muitas questões, porque isso acontece, enfim, mas a gente pensar esse espaço de uma forma de fortalecer e continuar a luta. Os coletivos continuarem a luta através dela como instrumento. Porque vendo hoje a gente tem a Ouvidoria Agrária, e eu acho que tem que sair essa Ouvidoria Urbana. Eu acho que a campanha tem que fazer essa pressão no governo federal para que isso aconteça, e os coletivos fortalecerem ali, porque eu acho que a gente teve muito efeito positivo através dessa campanha.

Vocês comentaram dessa proeminência da ação do Judiciário nesse momento. Nesse contexto que a gente vive desde a pandemia e nessa construção do Despejo Zero. Também foram construídas as mesas de negociação no marco também da presença da Comissão de Conflitos Fundiários e envolvendo vários atores importantes. Mas me parece que uma ausência ainda sentida é sempre a prefeitura. Com um papel muito tímido, mesmo nesse marco de uma mesa de negociação ampla da comissão, como que vocês veem isso?

Libina - Eu acho que a gente não teve participação da prefeitura de Curitiba. O município não abre diálogo, eu acho que esse é um outro olhar que também a gente tem que trabalhar. A partir do ano que vem de também fazer essa pressão de trazer o município para essas mesas, porque a política habitacional de Curitiba passa pela prefeitura, eles têm que dialogar. Hoje, se for pensar, não vou nem falar de Faixa 1, de renda de zero a um salário mínimo: não existe política habitacional. E, com toda a movimentação que teve, porque olha, foram muitas mesas de negociação, muitos atores, inclusive a polícia participou de algumas mesas. E a prefeitura de Curitiba não manda representante. Não, não abre o diálogo, então isso é um desafio que a gente tem dentro de Curitiba, de trazer o município para o diálogo, nessa questão da política habitacional, do município.


Greve de funcionários da Cohab - companhia de habitação da prefeitura de Curitiba / foto: Vanda Moraes

Última questão: a gente falou então do contexto do acúmulo da comissão. Também sempre escutamos das comunidades apreensão porque nesse período algumas situações de despejo aconteceram. Acho que o caso da Ocupação Povo sem Medo ficou muito marcado. Que limites vocês veem também ou que necessidade de avanço a partir desse da Comissão, que é importante, mas que não dá conta do todo?

Mariana - Sim, eu acho que tem uma questão muito complexa que é a própria estrutura do sistema jurídico. O nosso direito, ele não tem garantias para direitos coletivos, sociais de uma forma efetiva como você tem do direito à propriedade. A gente ainda está num regime de direito que existe uma centralidade, uma certa sacralidade, de alguns institutos. Pensar desde uma lógica do indivíduo, pensar na propriedade privada e pensar no contrato ali, como as instâncias fundamentais do Direito. Esse são, sobretudo, os institutos protegidos. Então, quando a gente vai pensar no sistema de proteção de direitos sociais, direitos humanos, ele é muito ruim comparativamente ao que é um sistema de proteção dos direitos individuais e do direito à propriedade, em especial. Então, por exemplo, existe um caráter disruptivo dessa decisão do Barroso, de pensar em condicionantes, porque o que está dado ali do regime das possessórias, o rito das reintegrações de posse, que é muito favorável ao aos proprietários, enfim, é isso é algo que é estruturante no Direito, tem elementos disruptivos nessa decisão do Barroso que é, digamos, de algum modo, condicionar essa questão do direito de propriedade. Só que ao mesmo tempo, 1) É um contexto de judiciário que é conservador, que é muito arraigado ainda nesse sistema legalista, que é de base individual e de sobre a propriedade. E, ao mesmo tempo, a gente está em uma interface muito grande com a questão de políticas públicas. Então, por exemplo, existe um limite ali, por conta dessa ordem jurídica, que a gente precisa da estruturação de políticas públicas para dar essa vazão certo? Porque também tem um limite ali do que que a gente consegue no judiciário, considerando a limitação, enfim, do próprio código civil, a limitação da nossa própria normatividade. Então, assim, esse também é um pouco o limite do judiciário, sabe? Também tem limites em níveis de instâncias, a comissão de conflitos fundiários tem puxado muito para ela as questões, mas, ao mesmo tempo, o poder de decisão. Ele está no primeiro grau tem entendimentos muito mais conservadores, então tem várias questões que dizem respeito a nosso desenho da institucionalidade, mas, sobretudo, o que que é a nossa lógica normativa. Que é um limite estruturante ali mesmo que a gente venha, veja situações de pessoas dentro do judiciário com boa vontade. Então eu acho que assim, a gente veio de um cenário que é isso, a gente teve uma proeminência muito grande ali, teve a questão do STF pela ADPF 828, a situação da Comissão de Conflitos Fundiários aqui no Paraná, que avançaram num cenário de retrocesso absoluto das outras instâncias. Só que a nossa arena de disputa fundamental tem que estar hoje na estruturação de políticas públicas. Porque a gente não vai garantir Despejo Zero pelo Judiciário. Existe uma limitação objetiva ali.

 

Quem são?

Mariana Auler - advogada e mestre em direito público pela UFPR, estuda políticas públicas e planejamento urbano.

Libina da Silva Rocha – Atual presidenta do IDP, militante e liderança popular. Foi enfermeira e empresária e hoje é administradora.

 

Edição: Frédi Vasconcelos