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DICA DE LEITURA. Lobo Antunes e a ressaca da revolução portuguesa

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Os trabalhos de Antunes usam imagens violentas, contínuas, revelando ao mesmo tempo o desencanto e o absurdo de um personagem diante de uma realidade - Divulgação
Entre o geral e o particular, a obra do autor é marcada pelo impacto da linguagem e pelo desencanto

A revolução portuguesa, chamada Revolução dos Cravos, de 1973, nem sempre é estudada com a devida atenção. Porém, contém experiências fundamentais e que marcaram toda uma geração, seja na política, enquanto experiência acumulada da classe trabalhadora no século vinte, e na literatura também.

Um dos principais autores portugueses do século vinte, senão o principal, José Saramago (1922 - 2010), não teve no retrato da revolução em seu próprio país o ponto central de sua obra. A não ser em romances iniciais, caso de “Levantado do Chão”, que aborda o turbilhão de lutas camponesas na região do Alentejo. A obra de Saramago busca a universalidade e suas alegorias revelam nuances gerais do tempo presente.

Coube, então, ao escritor António Lobo Antunes, nascido em 1942, focar seus principais trabalhos na particularidade da revolução dos Cravos, de 1973, um movimento que, ao mesmo tempo, derrubou a ditadura militar de 40 anos e o Estado Novo (1933 – 1974), dirigido por Salazar. A irrupção do movimento ocorreu devido às contradições do colonialismo português nos países da África.

Essa trama está presente com força nos livros iniciais de Antunes. Em “Fado Alexandrino”, um dos mais profundos, o quinto livro do autor, entremeia vozes a partir de um reencontro em Lisboa de oficiais portugueses que haviam servido na guerra colonial de Portugal contra o movimento de libertação nacional em Moçambique.

A revolução dos Cravos foi um movimento que conseguiu, ao mesmo tempo, reunir a revolta do povo contra os 40 anos da ditadura fascista de Salazar, que sobreviveu à segunda guerra, matando, exilando, torturando e prendendo, por meio da polícia política, a PIDE. Reuniu a insatisfação dos jovens capitães do exército cansados de matar injustamente e se ferir, combatendo os legítimos movimentos de libertação nacional em países explorados - caso de Guiné Bissau, Angola, Moçambique, Timor Leste e São Tomé e Príncipe. Para se ter uma ideia, os gastos do governo com a guerra alcançavam 40% do orçamento nacional em 1973. Uma situação insustentável que explodiu no dia 25 de abril de 1974, fortemente marcada até hoje na memória do país. E nos personagens de Fado Alexandrino.

A revolução conseguiu, com a direção do Movimento das Forças Armadas (MFA) politizar, em velocidade impressionante, soldados e também trabalhadores no geral, contando com o forte trabalho político do Partido Comunista Português (do qual Saramago foi militante e Antunes distante), apontando um programa que teve como rumo a transição socialista - barrada com o golpe conservador de 25 de novembro de 1975.

Os dois primeiros romances de Lobo Antunes, escritor talvez menos conhecido que Saramago, abordam justamente o desencanto de um protagonista envolto numa guerra sem sentido. Antunes servira como médico em Angola e sua obra é marcada por grande trabalho de linguagem, contaminado também pela sua experiência de vida.

Os trabalhos de Antunes usam imagens violentas, contínuas, revelando ao mesmo tempo o desencanto e o absurdo de um personagem diante de uma realidade encarada com niilismo, encontrado a todo tempo pelo personagem na realidade exterior. Rica em descrições, com imagens justapostas, metáforas inventivas, bestiários, e com o trabalho de longos discursos dos personagens, Antunes aborda um tema histórico e, ao mesmo tempo, subverte de forma rebelde a linguagem, lembrando a herança de James Joyce. Poucas obras romanescas alcançam um vigor que façam lembrar o autor irlandês. “Memórias de Elefante” e os “Cus de Judas” neste sentido são obras iniciais, porém indispensáveis do autor.

Se ali traduzem a experiência de um militar inserido no país africano, o Fado Alexandrino fornece um panorama completo dos antecedentes, do momento da revolução dos Cravos e das suas circunstâncias, dez anos depois, suas expectativas e suas frustrações, resultado da própria particularidade de uma revolução que ocorre já no final, na ressaca, de um ciclo revolucionário no século vinte. Como é sabido, revoluções e tomadas do poder do Estado, retirando as velhas classes dominantes, movimentam grandes energias populares. Uma vez derrotadas, podem suscitar também grandes frustrações coletivas. “Espécie de aniversário triste, celebrado por cinco homens fúnebres e gastos”, descreve inicialmente o autor.

Numa crítica visceral à burocracia, a escrita é a arma com que conta o autor, abraçado ao seu rancor (ver João Antonio). Num mundo de êxitos, publicidade, divulgações e materiais de auto-ajuda e sucesso profissional, Lobo Antunes talvez nos chame a atenção que o lugar do escritor é o do fracasso, o da revolta: “Recebi-os uma vez, recebi-os duas vezes, recebi-os três vezes, disse-me ele no seu tom desiludido e avelhentado, de palavras caducas e frases repletas de rugas de cansaço, e não havia maneira de me decidir. Tinha medo de perder a merda que ganhara nesses anos todos, percebe, o comando, o quartel, as promoções, a certeza de não morrer de fome, a vidinha do costume a que me habituei, sem complicações, sem gaita, sem chatices”, página 142.

Uma crítica ao peso do mundo, um desencanto que por vezes não polpa até mesmo a esquerda portuguesa, numa visão de mundo mais agressiva que a de Saramago, dilacerante e raivosa. Embora, muitas vezes, também mais angustiante e sem saídas. Talvez pela perspectiva de impacto da realidade nos indivíduos, enquanto, em Saramago, vemos um olhar de totalidade, uma compreensão maior das possibilidades coletivas, um otimismo no sentido gramsciniano, justamente da ação, que se opõe diante da cegueira individual, como vimos em Ensaio sobre a Cegueira.


Memória de Elefante e Fado Alexandrino tem como questão principal o impacto da Revolução dos Cravos e da opressão colonial portuguesa / Pedro Carrano

Edição: Lucas Botelho