Paraná

DEMARCAÇÃO DE TERRAS

No Oeste do Paraná, Avá-Guarani são atacados com tiros, rojões e incêndio na véspera de Natal

Apenas em 2020, foram 11 mortes e 18 tentativas de suicídio, cujas razões as lideranças associam à perda da esperança

Curitiba (PR) |
Comunidades pedem apoio com campanha para arrecadar doações - Divulgação

Por Assessoria da CGY

Graves ataques ao povo Ava Guarani ocorreram às vésperas do Natal, no município de Guaíra, região Oeste do Paraná. Os episódios envolvem produtores rurais e moradores em incursões armadas violentas contra comunidades em situação de acampamento, nas aldeias Y’hovy e Yvyju Avary, ambas áreas compreendidas nos limites da terra indígena Tekoha Guasu Guavira.

No sábado (23), a comunidade indígena da aldeia Y’hovy sofreu um episódio protagonizado por um grupo de pessoas não indígenas que ingressou na área, mantendo um cerco, praticando hostilidades e ataques com foguetes e rojões, desde a tarde até depois de anoitecer. Um drone não identificado sobrevoou a aldeia, e em Guaíra foram difundidas informações inverídicas sobre a área e incitando o ódio da população contra os indígenas, acusando-os de “invasores”.

A chegada da Polícia Federal dispersou o grupo, porém os agressores saíram do local prometendo retornar no dia seguinte pela manhã, o que veio de fato a ocorrer no domingo (24), véspera de Natal.

Ao menos sete cápsulas de munição de arma de fogo foram identificadas pela Polícia Federal nas imediações da aldeia após o ataque. Na ocasião, ainda, os agentes alertaram a comunidade para não beberem água proveniente da caixa d’água, pois “provavelmente teria sido contaminada”, concretizando ameaças feitas pelo grupo que participou do ataque à comunidade.

Na aldeia Yvyju Avary, a investida foi por um grupo de não indígenas, que avançou de forma violenta sobre a área. Durante o ataque, os indígenas conseguiram fugir e se esconder na mata, porém os barracos, pertences, e até mesmo os animais de estimação da comunidade foram cercados pelos invasores, que atearam fogo nos bens da comunidade e mataram os animais (depois de torturá-los), enquanto soltavam rojões e atiravam na direção dos indígenas. A comunidade denunciou o ocorrido em carta divulgada naquele mesmo dia.

Os ataques parecem ser retaliação por produtores rurais e moradores da região às movimentações das comunidades avá-guarani dentro dos limites do território indígena, em exercício legítimo de seus direitos territoriais, e que foram usadas pelos agressores como supostas justificativas para os ataques. Além disso, a ação não pareceu espontânea, mas uma manobra coordenada.

Em vídeos, momentos tensos dos ataques foram registrados pelos próprios indígenas, enquanto fugiam e se escondiam na mata. Em um deles é possível ouvir disparos e gritos com ofensas e palavras de expulsão. Em outro, se veem os escombros e alimentos destruídos pelo fogo no acampamento incendiado ainda ardendo em brasa, ao som constante de estampidos de rojão e/ou tiros ao fundo.

Um relato dos ataques e ameaças em Y’hovy e a preocupação com possíveis novos ataques ali e contra a aldeia Yvyju Avary foram registrados pela Comissão Guarani Yvyrupa em ofício enviado aos órgãos competentes, dentre eles Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Ministério Público Federal (MPF) e Defensoria Pública da União (DPU), dos quais se espera atuação rápida e eficaz para garantir a proteção da comunidade indígena, assim como a apuração dos fatos e identificação dos responsáveis, para que episódios semelhantes de ataque às aldeias não voltem a se repetir.

Em nota, a CGY manifestou indignação e repúdio pelos ataques, e exigiu justiça às comunidades. O documento, divulgado hoje (25), destaca o clima hostil em que vivem os indígenas na região:

“É importante destacar o ódio com que o povo Avá-Guarani é tratado nas cidades de Guaíra e Terra Roxa, onde, mesmo estando em seu território, são acusados de ‘invasores’, com amparo em narrativas que procuram criminalizar as comunidades indígenas em luta pela terra, bem como em uma suposta garantia de impunidade da qual produtores e proprietários rurais se valem para usar da violência contra aqueles que tradicionalmente vivem nesse território” – diz trecho da nota da CGY.

A seguir, leia na íntegra a carta da comunidade da aldeia Yvyju Avary com a denúncia do ataque:

“Hoje no dia 24 de Dezembro de 2023 na área de retomada fomos surpreendidos por fazendeiros que eles vieram com armas de fogo e arma branca queimaram nossos barracos, alimentos, nossos pertences materiais e agrediram a nós e fez vários tiroteios em nossa direção trouxeram bombas caseiras e pegaram nossos animais cachorros e torturaram os animais antes de matar e depois enterraram-os com tratores e roubaram nossos dinheiros, celulares e queimaram nossos documentos e também queimaram nossas motos no valor de 8.000 reais cada um eles estavam com intenção nos matar pois todos estavam armados com arma de fogo. E o tiroteio durou quatro horas. Corremos muito perigo junto com crianças, adolescentes, adultos e idosos.”

Escalada de violência

A região oeste do Paraná é marcada pela violência extrema do conflito fundiário entre indígenas e produtores rurais, onde as comunidades resistem enfrentando ataques, assassinatos, sequestros e tortura já há décadas, além de preconceito e racismo cotidiano por parte da população não indígena e dos órgãos e serviços públicos.

Recentemente, os ânimos se acirraram na região após o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que afirmou a inconstitucionalidade da tese do marco temporal como parâmetro para a demarcação de terras indígenas.

Já antes, uma onda de violência e ataques contra lideranças da TI Tekoha Guasu Guavira foi provocada durante o governo Bolsonaro após a Funai editar a Portaria Funai/Pres n° 418, em 2020, pretendendo declarar a nulidade do processo administrativo de identificação e delimitação da terra indígena, cujos estudos técnicos haviam sido aprovados pelo órgão.

O documento foi revogado por ato da presidenta da Funai, Joenia Wapichana, restabelecendo a validade do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) aprovado pela Funai e publicado no Diário Oficial da União desde 2018.

Entretanto, hoje a Funai está impedida de seguir com o processo por força de uma decisão judicial dada em uma ação movida pelo município de Guaíra.

Crise humanitária

O contexto de confinamento territorial, em conjunto com as violências física e psicológica extremadas, impedimentos ao livre trânsito, negação de direitos e serviços (públicos e privados), contaminação de aldeias por agrotóxicos (inclusive, intencional), dentre outras violações de direitos, evidencia um ambiente similar ao de um regime de segregação, em que os indígenas estão sujeitos à violência pelo fato de serem indígenas propriamente e pelo estigma de estarem em luta pela terra.

Um dos efeitos nefastos dessa situação é o elevado índice de suicídios entre os avá-guarani, recorrente entre os jovens de até 20 anos, e que adquiriu caráter endêmico. Apenas em 2020, foram 11 mortes e 18 tentativas de suicídio, cujas razões as lideranças associam à perda da esperança ante a falta da demarcação de terras, em meio às precárias condições de vida nas aldeias e a violência extremada do conflito fundiário, que tem suscitado ou aprofundado quadros de depressão. Hoje, a saúde mental é uma das grandes preocupações das comunidades.

O povo Avá-Guarani enfrenta uma verdadeira crise humanitária.

Os episódios ocorridos em Guaíra evidenciam a importância da atuação da Funai no sentido de reconhecer e assegurar os direitos territoriais do povo Avá-Guarani na região oeste do Paraná, bem como a urgência da ação dos órgãos competentes para a garantia da vida e da segurança dos indígenas em seu território.

Aos apoiadores, as comunidades reforçam o pedido de apoio com doações para aquisição de alimentos e reposição dos pertences que foram destruídos.

Uma campanha de arrecadação foi lançada para doações destinadas à aquisição de alimentos e reposição de pertences destruídos pelo fogo. Contribuições de qualquer valor são recebidas via PIX (082.373.199-58). "Ajude as famílias ava guarani da região oeste do Paraná".

Edição: Pedro Carrano