Paraná

ENTREVISTA EXCLUSIVA

ENTREVISTA. “Precisamos no Paraná de um sistema de monitoramento dos conflitos fundiários”

João Victor Longhi elenca a importância de acompanhamento da Defensoria e visita técnica às áreas em risco de despejo

Curitiba (PR) |
João Victor Longhi: Ironicamente, cumprir a Constituição foi inovador do sistema de justiça no Paraná e no Brasil. - Defensoria Pública do Estado

Coordenador do Núcleo Itinerante das Questões Fundiárias e Urbanísticas (Nufurb), da Defensoria Pública do Estado, João Victor Rozatti Longhi tem sido um dos atores presentes no acompanhamento de conflitos fundiários, urbanos e rurais, no Paraná.

Com mais de 360 áreas com risco de reintegração de posse, o Paraná tem sido um exemplo observado em todo o país por ter criado mesa de negociação entre movimentos populares, áreas de ocupação, campanha Despejo Zero, a partir do trabalho da Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato Paraná, Longhi elenca os desafios do atual momento, o projeto exclusivo de mapeamento dos casos de conflito e a importância de um Judiciário que, ao menos passou a visitar e entender a dinâmica das comunidades.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato Paraná. Vocês divulgam o dado de 367 áreas coletivas, urbanas e rurais com conflitos fundiários a partir de pedido de reintegração de posse. Qual é a avaliação sobre este cenário em que Defensoria têm atuado?

João Victor Longhi. Os dados que divulgamos foram compilados e estudados há alguns meses, então há uma lacuna de cinco a seis meses no que a gente conseguiu compilar. Então, eu estimo que hoje tenhamos mais de quatrocentos processos coletivos de reintegração de posse. Veja, este número é de processos, como é de praxe, muitas vezes os reintegrantes fatiam para conquistar, então pode haver mais de um processo sobre a mesma área, ao passo que você tem processos também cuja área é tão grande que talvez devessem ser inclusive subdivididos. Mas, o que chama a atenção desse número é que eu estou há dois anos no Nufurb.

E antes era a Olenka (Lins e Silva Martins, defensora pública, atuou no período da pandemia, acompanhando o caso trágico de despejo da Guaporé 2, em dezembro de 2020)?

Sim, dei continuidade ao trabalho da Dra Olenka, que viu nascer o Centro Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania (CEJUSC), a Comissão de Soluções Fundiárias, que assim se chama hoje no Brasil inteiro, por força da Resolução 510, inspirada no nosso modelo do Paraná. É muito importante que se diga isso, que a coisa que nasceu aqui. Quando eu cheguei, eram 73 processos. Ainda que esse número (367) não seja o número atual, estimo que estejamos com mais de 400 áreas. Houve um aumento de quase 400%. Então, os processos não cresceram porque os conflitos cresceram, os processos cresceram porque o sistema de justiça passou a ter um olhar diverso do que era antes para a questão dos conflitos fundiários coletivos. Bom, primeiro, a liderança desse processo passou a ser de quem de fato a exerce, que é o Judiciário. Eu já disse isso em entrevistas: qualquer um pode mediar, a Polícia Militar, em São Paulo, diz que faz mediação. A Defensoria poderia mediar, mas me parece que só o Judiciário tem o papel institucional de fazer a liderança e trazer todos os atores processuais e extraprocessuais para esse processo. (…) Então, o Tribunal de Justiça do Paraná fez a sua liderança. E qual é o papel da Defensoria? Primeiro, cumprir a sua função institucional, que é a de fiscal das vulnerabilidades, conhecido como custos vulnerabilis, nome chique para dizer que o Ministério Público faz a função de fiscal da lei, mas há lugares, e em especial com base na autonomia funcional que tem o promotor, há lugares que o fiscal da lei entende – não vou entrar nesse mérito –, que as pessoas têm que ser retiradas do local sem realocação, porque são invasoras, quando não se usa o meio ambiente de maneira com aporofobia. Ou seja, “eles são pobres”, um termo chulo típico desse posicionamento. São pobres, precisam sair, se fosse um condomínio fechado de rico ninguém estava agredindo o meio ambiente, o exemplo mais emblemático que vimos in loco foi no Graciosa (Pinhais). Um exemplo, um fragmento. Já me perguntaram: O que você acha que o Paraná tem de comum com o Brasil? De fato, tem lugares diferentes do ponto de vista do conflito. Mas a estrutura é a mesma. No tratamento da ADPF 828, o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não escreveu isso, não sei se escreverá, mas me parece que é estrutural mesmo. Estamos mexendo na base da sociedade brasileira. Então não é fácil. Mas está sendo exitoso. Nesse balanço, aumentarmos em quase cinco vezes os nossos processos mostra que a justiça se aproximou do problema, não o problema que alterou a sua quantidade.

Nesse tema do mapeamento, ainda assim os dados da realidade podem estar incompletos?

Esse é um outro passo que, em breve, saírá, estou passando em primeira mão para o Brasil de Fato, estamos trabalhando num mapeamento disso. Precisamos urgentemente no Paraná de um mapa, de um sistema de monitoramento dos conflitos fundiários, em que todo mundo tenha num site -, quero ver se eu ponho uma telinha aqui e saber: ‘Então, houve intimação nova de despejo numa cidade X?’, então, precisa estar no nosso mapa. Prefeitos, autoridades, estão sabendo que isso vai acontecer na sua cidade? Ou vão acordar com o povo na frente da prefeitura? Então, como balanço geral, eu diria que cresceu muito a demanda (de casos), ao mesmo tempo a gente conseguiu se aproximar, visualizar e enfrentar o problema.

No sentido dessa aproximação, qual é a importância da visita técnica às áreas de ocupação?

A Resolução 510, de junho de 2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), perceba que ela aposta no processo de mediação. Na verdade, o que é dito? Olha, primeiro, o Tribunal precisa criar Comissão de Soluções Fundiárias, e vai usar um dispositivo que foi colocado na Constituição, em 2005, vai fazer vinte anos, e que nenhum tribunal tinha feito, como a Constituição determina, que o juiz vá in loco. Só que, ao longo desses vinte anos, outros institutos normativos surgiram, dentre eles o custos vulnerabilis, que tomou a forma definitiva no Código de Processo Civil, no artigo 565 em especial, dentre outros, que diz: A Defensoria tem que ser intimada, no caso de conflitos multitudinários, em que há pessoas com gratuidade judiciária (…). Em que pese a mistura de conceitos, a lei diz: Defensoria tem uma função, que é fazer a defesa daqueles que não têm condição de constituir um advogado e muita gente está nessa situação.

E ainda sobre a dinâmica das visitas?

Sobre as visitas, na Resolução 510, a aposta na mediação é um segundo momento. Por quê? Para a gente fazer a mediação em um caso de tamanha magnitude é necessário um sistema autônomo de mediação, diferente de mediar uma situação de família, casos individuais, que podem ser resolvidos numa sala, por exemplo. As visitas técnicas são fundamentais para mim, porque têm todo esse caráter simbólico, que já foi mencionado, “Finalmente está tendo justiça na minha terra, finalmente o Estado está olhando pra minha situação jurídica”. Não com a violência estatal, não com o aparato repressor, não com a força pública, mas está vindo aqui de forma franca e aberta dialogar comigo, inclusive se for para dizer que está tendo decisão judicial da qual não podemos fugir. Então, a visita técnica tem o caráter simbólico, tem o caráter informacional, apesar de não constituir prova no processo, eu não posso atestar que, segundo a visita técnica, a área é desse ou daquele tamanho, não posso, porque não é um laudo, ela inclusive deixa em paralelo a lide (controvérsia jurídica), para ir atrás do problema social que está por trás disso. Vai lá, conhece a área, conhece as pessoas, entende a dinâmica da ocupação, para então sentar à mesa e fazer a mediação. Para mim, a resolução inaugura um sistema autônomo de mediação, que depende na verdade da visita técnica, senão você não consegue mediar, para não ser algo capenga, uma mediação pro forma. Então, em primeiro lugar, conhecer a área, saber qual é a dinâmica social, saber quem são as lideranças, conversar com advogados de alguns deles ou de todos, leva a Defensoria Pública, na sua função de custos vulnerabilis, para, em diálogo direto com as partes, com os advogados ou com ambos, para tentar traçar uma estratégia conjunta, conhecer os anseios da comunidade. Tem algumas pessoas que querem sair do local. Outras perguntam se não dá pra regularizar, que estão há vinte, trinta anos ali. Por tudo isso, a visita técnica é fundamental. Um ponto de partida para um ambiente de mediação. E fazer audiências, que são frutos desse processo. Então, para mim, a visita técnica é a cereja do bolo, é o que teve de mais inovador. Ironicamente, cumprir a Constituição foi inovador do sistema de justiça no Paraná e no Brasil.

Para mim, a resolução inaugura um sistema autônomo de mediação, que depende na verdade da visita técnica, senão você não consegue mediar, para não ser algo capenga, uma mediação pro forma


Fernando Prazeres, da Comissão de Conflitos Fundiários, reconheceu que a Britanite é marcada pelo enraizamento e vida comunitária / Pedro Carrano

Enquanto Nufurb, qual a sua percepção do papel dos movimentos populares nesse processo? Do que foi o papel da campanha Despejo Zero e das mesas de negociação após os atos?

A Defensoria Pública, pensando num sistema de justiça, usando um conceito controverso para alguns, mas para mim ilustrativo, que é o conceito do Luhmann, que é: conforme as coisas ganham complexidade, tomam diferenciação funcional. A Defensoria Pública surge onde o sistema não conseguia chegar. O sistema de justiça, como foi dito anteriormente, analisa papel, atos processuais, e não tinha essa interlocução, mais que necessária, com a sociedade civil, em especial as pessoas em situação de vulnerabilidade. O que eu quero dizer com isso? Pensando num sistema de justiça criminal clássico e pensando na crítica criminológica sobre um sistema de justiça que foi se distanciando e encastelando. A Defensoria Pública surge em 1988, ela ganha um formato importante em 2009, com o instrumento pioneiro das ouvidorias, e uma ouvidoria justamente composta por pessoas de movimento social, se você ver a forma de composição da nossa ouvidoria é isso. Movimentos sociais votam, no conselho de direitos humanos do estado, posteriormente vem para o nosso conselho superior, para decidir quem vai ser o integrante da lista tríplice. Temos a ouvidora Karollyne Nascimento (Karol) – é um papel ilustrativo do que tem que ser o papel da Defensoria. Porque, veja, a Defensoria tem o papel de custos vulnerabilis, mas é sine qua non que a gente estabeleça um diálogo constante com os movimentos sociais. (...) Então, os movimentos sociais são tão fundamentais para mim que eu criei o projeto do Nufurb em Rede, que é uma autorização da minha chefia, de troca constante de informações com órgãos públicos e representantes dos movimentos sociais, porque sem as informações de vocês, sem os dados dos moradores, sem essa mobilização constante de vocês, eu diria que muito do nosso trabalho ficaria vazio, tanto que quando, muitas vezes eu estou em processos onde não há movimentos atuando, é mais difícil relação com a comunidade. E é um princípio basilar para qualquer atividade processual: dividir enfraquece. Então, do ponto de vista da Defensoria, temos nos movimentos sociais a necessidade de fortalecimento do nosso elo, estamos de portas abertas e esperamos que sempre estejam. Caso contrário, se os movimentos verem a Defensoria como algo distante, é porque o sistema de justiça está falido há muito tempo. E, da ótica das negociações, é organizar as visitas técnicas e as audiências para justamente vocalizar o que a comunidade quer. Então, o papel dos movimentos populares é fundamental, para ajudar a organizar a voz da comunidade.

Nacionalmente, passamos pela pandemia, as orientações importantes do STF e a ADPF 828 e o STF prorrogando os prazos umas duas vezes, mas aqui em Curitiba acontece o despejo da Povo Sem Medo, como exemplo negativo e de um eventual risco. Como você analisa o que aconteceu? Foi uma exceção?


"Aconteceu o despejo e pra onde vão essas famílias, 200, 300? É preciso pactuar com as famílias e saber para onde elas vão" / Giorgia Prates

 

Conseguimos fazer prognósticos, mas o futuro é difícil dizer. Mas vou dar minha opinião. Quanto a Povo Sem Medo, fui lá pessoalmente. Tinha uma bruta de uma estrutura da FAS, da prefeitura, e eu fiquei sabendo acordando de manhã, “olha, estão despejando a comunidade que você acionou o STF”, é verdade que não ganhamos naquele momento. O processo continuou e as orientações estavam vigentes. Tudo para dizer que para mim o despejo da Povo sem Medo, para ser ameno e eufemista, ele foi muito exótico se comparado ao que dizia a ADPF. O MP não foi intimado, eu não fui intimado. Um oficial de justiça me ligou e disse: - O senhor pode vir aqui. E eu respondi: - Eu posso ir onde eu quiser, mas a questão é que eu não devo ir, porque eu não fui intimado, peticionei nos autos, aguardando decisão de suspensão, e é lógico o juiz não suspendeu, com as retroescavadeiras lá. O Ministério Público peticionou pedindo a nulidade do cumprimento. E simplesmente o fizeram. Mas por sua conta e risco porque o cumprimento de uma liminar pode gerar responsabilidade. E assim a construtora resolveu fazer, em um processo público muito estranho, a retroescavadeira lá, o juiz não suspendeu, e equipamentos da própria empresa, tudo aquilo muito estranho, sorrateiro e exótico, sem intimar a Defensoria. Meu posicionamento é que a gente tinha que ser intimidado com antecedência sobre o cumprimento de todas as ordens, e eles dizem que não, por razões de segurança. Mas que segurança é essa que a Prefeitura pode saber e a Defensoria não? E para responder a segunda pergunta…

Sobre o risco para outras comunidades.

Não está ausente a vigência da ADPF 828. Mas o que temos hoje é um regime de transição, estabelecido pelo ministro Roberto Barroso, que sacramentou certos avanços que a pandemia trouxe, em especial o que eu chamo de direito subjetivo à realocação, o que está muito claro nos artigos 14 e 15 da resolução 510, inclusive a resolução do CNJ diz quem vai fazer. O município vai fazer, isso é claro, ao arrepio de certos municípios, que inclusive estão lutando pela inconstitucionalidade, onde nós rebateremos.

Então, em condições normais, a Resolução 510 pode garantir um tratamento correto às comunidades?

O que a ADPF trouxe de fruto concreto foi a resolução do CNJ, que é clara ao dizer que o sistema de justiça inclusive se responsabiliza se isso não acontecer. Uma resolução do CNJ é de seguimento obrigatório pelo magistrado de segundo grau. (...) Se o município não apresenta o plano, então para mim não pode ter despejo. Se isso vai ocorrer ou não, atos ilegais, não sei, espero que não. Monitoro diariamente.


João Victor Longhi: Ironicamente, cumprir a Constituição foi inovador do sistema de justiça no Paraná e no Brasil. / Sanna Chedieck Rockas

Edição: Lucas Botelho