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Sua majestade o feijão

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Brasil tem destaque entre os principais pratos com feijão no mundo - Reprodução
Tropeiro e feijoada estão entre os melhores pratos com feijão no mundo. Mas consumo está em queda

Recentemente, o site Taste Altas, que busca ser um atlas mundial de pratos tradicionais, ingredientes locais e restaurantes autênticos, publicou uma de suas famosas listas: os mais bem avaliados pratos feitos à base de feijão. Para surpresa de nenhum brasileiro, emplacamos três entre os sete mais bem avaliados: Feijão Tropeiro, Feijoada e Tutu de Feijão. Com exceção, se ele vai em cima ou por baixo do arroz, o feijão é unanimemente a leguminosa mais famosa do território tupiniquim. Tão notória que faz parte do imaginário que compõe o país, mas, apesar do status de superstar, seu futuro e nossa identidade, anda incerto. 
Os avanços no consumo de ultraprocessados e do agronegócio, o aumento do preço dos alimentos e as mudanças culturais estão tirando a iguaria da mesa dos brasileiros. Se a tendência dos últimos anos se confirmar, o feijão deixará de ser consumido nas mesas brasileiras de 5 a 7 vezes na semana, já em 2025, de acordo com o estudo da Pós-Graduação em Saúde Pública da Faculdade de Medicina da UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais. Passaremos a comer o prato de forma considerada irregular, ou seja, de 1 a 4 dias semanais, conforme a pesquisa.
Não pensemos que deixar de figurar em listas gastronômicas internacionais será a pior das consequências dessa baixa. Ainda de acordo com a universidade mineira, não consumir feijão pode acarretar chance 10% maior de desenvolver excesso de peso e 20% no caso de obesidade, se comparado com quem faz o seu consumo regular. Além disso, o feijão é uma ótima fonte de proteínas, minerais - incluindo o ferro - e fibras. Não é à toa que baliza pratos há tanto tempo no país. Em adição a ele, seus acompanhamentos mais comuns, como arroz, vegetais, salada e uma proteína animal, compõem uma refeição muito equilibrada.
Porém, a predileção nem sempre foi relativa ao prato tal qual o conhecemos hoje. Apesar dos índios já consumirem feijão, é com a influência portuguesa que o prato ganha caldo e, mais tarde, a introdução de novos ingredientes, paulatinamente, com a chegada dos povos escravizados. O esforço de torná-lo símbolo nacional iniciou-se durante o começo do século 20. “Pois é apenas a partir do Modernismo brasileiro nos anos 1920 que o discurso sobre o feijão se estrutura, fazendo dele um dos pilares do mito da nacionalidade tripartite do Brasil – a miscigenação dos índios, negros e brancos”, nos conta o sociólogo Carlos Alberto Dória, um dos maiores especialistas em alimentação do país.
“A feijoada é, para nós, uma espécie de hino nacional comestível. Comungamos uma ideia sólida e simples de nação: um imenso território, uma unidade linguística, uma bandeira, um hino, uma seleção de futebol e um prato - a feijoada”, nos diz Dória ainda acerca do tema. A partir da observação e do diálogo com o cotidiano, o feijão emergiu de acompanhamento para prato principal na nossa dialética nacional. Tanto é que hoje colhemos o reconhecimento da nossa Feijoada como prato principal da tradição gastronômica brasileira, e, recentemente, um dos melhores e mais famosos pratos de feijão do mundo.
Porém, atualmente, vivemos em um contexto nacional de queda de mais de 50% no consumo médio do feijão, nos últimos 16 anos, que talvez implique em mais questões que não só a da saúde. Podemos estar pondo em risco a identidade que nos constituiu, a partir da observação dos nossos costumes orgânicos, em detrimento daqueles que nos empurram a indústria, com seus ultraprocessados, e o agronegócio, com sua monocultura. A retroalimentação dos dois lotam as gôndolas dos supermercados que nos servem, sobrando pouco espaço para qualquer escolha legítima.
Não é um problema que a identidade nacional mude, mas qual seria a identidade possível a partir de um achocolatado em pó ou uma lasanha congelada, quando esse é o hábito cotidiano de muitos brasileiros hoje em dia? No final das contas, o que está em jogo é a nossa própria liberdade individual de fazer escolhas. Fica claro que o apagamento a que está nos submetendo a indústria começa a mostrar a amplitude de seus efeitos deletérios para além de nossa saúde e, se não tomarmos cuidado enquanto sociedade, ela começará a definir também quem somos.

Edição: Frédi Vasconcelos