Paraná

EDUCAÇÃO PÚBLICA

OPINIÃO. Não basta o fim das Escolas Cívico Militares. É preciso desmilitarizar a Educação Pública

O governo Lula poderia ter encerrado o PECIM já no início de seu governo

Curitiba (PR) |
Não se pode abrir mão do embate ideológico, que tem a ver com o modelo de sociedade e de escola que se defende, ou seja, de qual escola para qual sociedade se está formando - Giorgia Prates

Em julho, o ministro da Educação, Camilo Santana, compareceu à Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. Dentre os temas debatidos estava o encerramento do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (PECIM) criado pelo governo Bolsonaro.

Na ocasião, o ministro justificou o ato devido a um “conflito normativo legal”, ou seja, uma questão burocrática: o MEC estaria destinando verbas da Educação para as Forças Armadas. E reiterou que não se tratava, portanto, de uma medida de cunho ideológico, como acusaram-no os defensores do programa. Tão logo o governo anunciou o fim do PECIM, ao menos 19 estados decidiram manter as escolas no modelo cívico-militar, evidenciando que a agenda da direita radical se mantém pautando a política nacional.

Por mais que o ministro tenha buscado se desvincular de argumentos ideológicos para legitimar a decisão do governo, os defensores do programa, presentes na audiência, ressaltaram justamente estes aspectos, salientando que as escolas cívico-militares seriam modelo de uma educação cívica e patriótica, garantia do combate à “ideologia de gênero” e ancorada na hierarquia e disciplinarização dos estudantes.

Ao abrir mão do embate ideológico, que tem a ver com o modelo de sociedade e de escola que se defende, ou seja, de qual escola para qual sociedade se está formando, abre-se espaço, também, para que o debate seja monopolizado justamente pela visão militarista de sociedade.

O governo Lula poderia ter encerrado o PECIM já no início de seu governo, juntamente com o “revogaço” que anulou um conjunto de ações do mandatário anterior. O ato tardio, além de tergiversação, acabou por dirigir os holofotes para a agenda bolsonarista e permitiu, uma vez mais, que o debate educacional fosse monopolizado pelas redes de desinformação e ataques à escola pública, colocando em evidência a doutrina militarista e a pauta dos costumes como respostas aos problemas da educação. Situação que coloca para as forças progressistas, sobretudo àquelas que gravitam em torno do governo Lula, mas não unicamente para elas, a massificação desse debate, uma vez que estamos às vésperas do novo Plano Nacional de Educação.

Esse debate vai além de uma mera questão burocrática como parece justificar o ministro. Trata-se, como dito anteriormente, da concepção de escola, educação e sociedade implícitas na militarização da educação pública. No entanto, se era para se apegar às questões legais, Camilo Santana poderia ter feito referências aos diversos aspectos constitucionais que as escolas cívico-militares estão a infringir, como, por exemplo, os princípios da gratuidade e da gestão democrática da educação pública, as restrições à organização autônoma dos estudantes, os ataques à liberdade de expressão e à livre associação sindical dos docentes, etc.

Mas, fundamentalmente, caberia ao ministro lembrar, à sua turbulenta e radicalizada audiência, a inconstitucionalidade das Polícias Militares atuarem fora daquilo que está previsto na Constituição Federal: policiamento ostensivo; manutenção da lei e da ordem; força auxiliar do Exército.

Para além das questões inconstitucionais, há, fundamentalmente, uma questão a ser levantada: Qual será o impacto da exposição de crianças e adolescentes à concepção militarista de sociedade?

Comecemos pela violência física e simbólica que a militarização da educação representa. A segurança dos estudantes, por exemplo, anunciada pelos defensores do modelo presentes na referida reunião como uma certeza, na verdade, não passa de uma caricatura. Os inúmeros relatos de bullying, racismo, inclusive com ameaças de morte, como o ocorrido numa dessas escolas em Curitiba, agressões físicas e verbais, praticadas entre alunos e alunas, desmentem essa falácia. Há relatos, também, de agressões físicas contra os próprios monitores militares. A situação mais grave, no entanto, foi o caso de uma menina executada a tiros em uma escola cívico-militar na Bahia. O assassino pulou o muro da escola e disparou contra a estudante depois de tê-la esfaqueada.

Os atos de violência mais graves, no entanto, são aqueles praticados pela própria instituição. Desde o início do programa, foram registrados vários casos de agressões físicas, assédio e, inclusive, acusação de estupro, praticados por militares. Em alguns casos, os militares acusados receberam o benefício da transferência do local de trabalho ou mesmo a reserva. Socos, mata-leão, ameaças verbais, são os casos mais comuns. Sem falar nos casos de assédio moral e abuso de autoridade contra professores. Tão repulsivos quanto estes, no entanto, são os casos de racismo promovidos por quem deveria zelar pelo bem estar dos estudantes.

Na Bahia, uma estudante negra foi expulsa da aula, por duas vezes, por ter seu cabelo, no estilo black, considerado inadequado às regras da escola. Outro estudante negro, de Brasília, foi “orientado” a cortar o cabelo. Também em Brasília, uma aluna, após se negar a retirar os fios-de-conta (colar usado por adeptos de religiões de matriz afro), viu-se diante da agressividade do diretor, militar, de tentar tirar o colar à força de seu pescoço. No Amapá, o militar que ocupa a direção de uma das escolas “sugeriu” à mãe de um aluno negro de treze anos: “ou corta o cabelo ou troca de escola”.

Por óbvio, não se trata aqui de desconsiderar ou mesmo relativizar as violências que também ocorrem nas escolas não militarizadas. A questão é que a “ordem”, a “disciplina” e a “hierarquia” das escolas militarizadas parecem estar mais fortemente perpassadas por questões de gênero, raça e classe e representam a negação das identidades étnico-racial e de gênero dos estudantes. Aqueles que não se enquadram nos padrões ou acabam sendo excluídos ou precisam desenvolver estratégias de sobrevivência institucional. As situações acima narradas evidenciam que o peso da discriminação racial e religiosa tem recaído, sempre, sobre as vítimas, que buscam, como forma de se proteger, a tranferência escolar. Situação que nos coloca outro questionamento: Como os estudantes que permanecem nessas instituições após praticarem ou presenciarem seus “monitores” praticarem as mais diversas formas de violência passarão a ver o mundo? Como lidarão com a diferença e a diversidade se toda vez que elas se manifestam nessas escolas são discriminadas, punidas e “convidadas” a se retirarem?

Se essas questões por si só já deveriam levar um governo de origem popular e progressista a adotar uma postura crítica e de enfrentamento à militarização da Educação, o que esperar quando, à questão da violência, adicionamos o risco à organização democrática do Estado brasileiro? Nas unidades militarizadas não há eleição para a equipe diretiva, os grêmios estudantis, quando existem, são, em sua maioria, tutelados e os professores, muitas vezes, cerceados em seu direito à organização e silenciados em relação a temas vistos como polêmicos. Essas situações limitam a experiência democrática de jovens e crianças, impondo-nos outra questão: como a negação da vivência democrática na vida escolar de crianças e adolescentes das escolas militarizadas os prepara para a vida em uma sociedade democrática?

O Brasil é um país de pouca experiência democrática. Se tomarmos o século vinte, veremos uma permanência de governos autoritários nos quais o povo pobre e trabalhador sempre esteve excluído. O que perdura na política brasileira é o autoritarismo. Os quase quarenta anos que se passaram do fim da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) até os nossos dias parecem ter sido insuficientes para a construção de uma cultura democrática. O artifício do impeachment contra Dilma e o 8 de janeiro de 2023 colocaram à prova, uma vez mais, nossas instituições. Permanecem, ainda, na política brasileira práticas coronelistas, clientelistas e patrimonialistas. A troca de favores, os apadrinhamentos, a corrupção, a compra e troca de voto por favores pessoais e o uso da coisa pública em benefício próprio, assim como o autoritarismo, inibem a democracia e o desejo de participação fazendo crescer o sentimento de impotência frente às injustiças e às desigualdades desumanizadoras.

Ao concebermos protagonismo a militares na direção do ambiente escolar acabamos por legitimar sua compreensão de mundo, ou seja, aquilo que eles consideram como mais importante para a vida em sociedade, como hierarquia, disciplina e ordem, passa a ter uma relevância maior para o seu público-alvo. Em contraposição aos preceitos constitucionais da igualdade de acesso e permanência; da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; do pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas e da gestão democrática do ensino público, esses jovens e crianças são submetidos aos valores da disciplina militarista, do privilégio meritocrático, da hierarquização social. Ou seja, em oposição aos preceitos constitucionais da justiça, da igualdade, da liberdade e do respeito, sobretudo às diferenças, essa juventude está sendo formada para aceitação da ordem injusta e desigual. A nossa juventude está sendo exposta a um projeto formativo que subjuga e tenta anular a diversidade humana.

Ceder espaço à militarização da educação é flertar com um passado recente de autoritarismo que, como vimos, está longe de ter sido soterrado. É legitimar práticas presentes na sociedade que criminalizam e discriminam a pobreza, que vê todo morador de áreas socialmente vulneráveis como um criminoso. É legitimar a prática daqueles que baixam a cabeça diante da elite, mas entram atirando em comunidades carentes, que atiram primeiro para depois perguntar, que forjam flagrantes “plantando” armas para se safar das atrocidades que cometem. É flertar com um tempo no qual a sociedade não tinha voz nem vez.

A militarização da educação é um projeto formativo da nossa juventude fundamentado na lógica da obediência cega, da padronização dos comportamentos e na aceitação passiva da desigualdade social. Quando as sucessivas gerações de egressos da militarização educacional se depararem com o mundo do trabalho e com os rumos da política, quais serão os princípios que balizarão sua prática?

 

Para saber mais:

Joselita Romualdo da Silva. Pedagogia do Quartel: Formação de Corpos Dóceis nas Escolas Cívico-Militares no Estado do Paraná: Appris, 2023.

Dossiê Militarização das Escolas Públicas no Brasil. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação (RBPAE): ANPAE, 2019 - v. 35, n.3 (set./dez. 2019). https://seer.ufrgs.br/index.php/rbpae/issue/view/3872 

Dossiê Militarização das Escolas Públicas no Brasil. Revista Retratos da Escola. v. 17 n. 37 (jan./abr. 2023). https://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/issue/view/47

Edição: Pedro Carrano