Paraná

OPERATIVOS E CRÍTICA

Polícia Militar faz incursões diárias em áreas de ocupação de Curitiba

Invasões de casas, constrangimento de moradores e denúncias de racismo são cotidianas nas áreas Britanite, Portelinha e

Curitiba (PR) |
Com isso, em um bairro da extrema-periferia de Curitiba, de urbanização irregular, moradores denunciam situações como invasão de casas, agressão de mulheres e idosos, constrangimentos - Divulgação

Foi mais um episódio. Cotidiano. No dia 25 de agosto, uma sexta-feira, por volta das 14h, um jovem negro que reside na área de ocupação Britanite estava pronto para ir ao supermercado onde trabalha. Vestia a japona do local do trabalho e já estava em seu carro, quando a PM do 13º Batalhão realizou uma abordagem, revistou o automóvel durante meia hora, atrasando a vida do trabalhador e revoltando as pessoas no local.

O contato cotidiano com grupos de Whatsapp da ocupação, que em breve completa três anos, e convive com risco de despejo forçado, leva à constatação de que as incursões da Polícia Militar são diárias na Britanite. Mais de uma vez ao dia, envolvendo Rotam, Polícia Militar, Polícia Civil e agentes à paisana.

Com isso, em um bairro da periferia extrema de Curitiba, de urbanização irregular, moradores denunciam situações como invasão de casas, agressão de mulheres e idosos, constrangimentos.

Sob o argumento de flagrante ou mesmo de que as ações seriam motivadas por denúncias, fato é que toda a comunidade é prejudicada. Uma mulher residente na Britanite revela à reportagem que as ações policiais permanentes prejudicam seus netos e seu pai.

“Todos os dias, de madrugada, duas a três vezes ao dia, invadem casas de pessoas acamadas, casas de idosos. A polícia entra constantemente na minha casa, mesmo sem mandado judicial, sempre oprimindo. Justificam busca e apreensão. Queremos socorro”, apela.

Não se trata de uma situação limitada ao bairro Tatuquara. Lideranças populares consultadas pela reportagem do Brasil de Fato Paraná apontam que a prática é comum também em áreas de ocupação já urbanizadas e consolidadas no tempo.

O risco, em um contexto local e nacional de denúncias de violência policial e racismo, como o que tem sido visto nos estados de São Paulo e Bahia, é que trabalhadores, jovens, negros e negras sigam sofrendo consequências deste assédio diário. Execuções e mortes estão entre elas.

Portelinha (Santa Quitéria) e o trauma de 2021

Militante que atua na ocupação Portelinha, existente há 16 anos, no bairro Santa Quitéria, afirma que, principalmente depois do episódio de assassinato de um jovem na comunidade, em 2021, as incursões policiais se mantêm permanentes na ocupação.

Na noite do dia 6 de novembro daquele ano, o carrinheiro Eduardo Felipe Santos de Oliveira, de 16 anos, o "Zé", foi perseguido e alvejado com, no mínimo, 15 tiros, pela Rondas Ostensivas Tático Móvel (Rotam) quando já se encontrava dentro da casa de uma amiga, para onde teria corrido diante do operativo.

“É tenso, ainda está na memória dos policiais, que ameaçam, de forma mais sutil, pessoas que estavam nos atos após a morte (de Eduardo Felipe). Principalmente os homens jovens sofrem isso. Recentemente, a PM não está prendendo ninguém, mas entra de madrugada ali, na parte do beco, metendo o pé na porta das pessoas, com argumento das drogas, com ameaças de tempos em tempos”, afirma.

Parolin e o assédio contra mães de famílias


Em operação policial no Parolin, um adolescente de 17 anos foi morto a tiros da polícia / Giorgia Prates

No bairro Parolin, no dia 2 de setembro de 2022, operação policial, comandada pela Polícia Militar, terminou com o assassinato de um adolescente de 17 anos. Um grupo de jovens foi abordado em uma das ruas do bairro e apenas a vítima, de nome Dalison, permaneceu no local. Moradores relatam que o jovem não reagiu e, inclusive, levantou as mãos para o alto ao ser abordado. Seis policiais participaram da ação.

Comunidade, mães e avós naquele dia protestaram diante do que relatam como agressões diárias da corporação no local. Três anos antes, quatro jovens também foram executados na região, causando revolta, em episódio não solucionado.

“A polícia comete chacina contra a vida de pessoas pobres e periféricas. Tem a função de coibir ilícitos penais e não acabar com vidas. Vemos o problema quando, na realidade dentro das favelas, a polícia militar adentra a casa de mãe, dá voz de prisão, quando algumas equipes usam estilingue e bola de gude, ou das viaturas jogam ovo e agridem a população de rua. Sabemos que existe dentro da corporação quem honra a farda e a gente sabe que tem os corruptos”, reflete liderança do Parolin procurada pela reportagem.

Números de mortes crescem

A maior preocupação vem do fato de que, nos bairros periféricos e nas áreas recentes de ocupação, a violência é um problema levantado pelas comunidades. O que se soma ao preconceito e racismo contra os moradores.

“No período neoliberal, dos anos noventa até os dias atuais, a chamada política de segurança pública tem sido o principal instrumento para eliminar e encarcerar corpos negros, por meio dos aparelhos repressivos de Estado – como a Polícia Militar –, sob a justificativa de combate às drogas e de supostamente levar a paz social para os centros urbanos”, analisa Beniézio Eduardo Carvalho (Beni), militante do movimento negro e da Consulta Popular da Bahia.

Em 2020, ocorreram, no Paraná, 373 mortes realizadas pela PM em operativos, o que fez do estado o sexto do país em número de mortes. O número aumentou 29% em comparação com 2019, de acordo com dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública.

Numa curva temporal maior, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2012, houve 165 mortes decorrentes de intervenções da Polícia Militar no Paraná.

Já o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), aponta que, no primeiro semestre de 2021, houve um aumento de 14,13% em relação ao mesmo período de 2020. E aumento de 17,3% em 2022 em relação aos registros de 2021 – contabilizando ações e policiais civis, militares e guardas municipais. As principais ocorrências são em Curitiba, Londrina, Foz do Iguaçu e São José dos Pinhais.

Nos confrontos com policiais militares, 247 vítimas eram pardas (51%), 33 negras (7%) e 203 brancas (42%). Em relação à faixa etária, 287 vítimas em confrontos com policiais militares tinham entre 18 e 29 anos (59,42%); 166 tinham idade entre 30 e 59 anos (34,37%) e 30 tinham entre 13 e 17 anos (6,21%).

“Eles entram para oprimir o povo. Acham que bandido tem em qualquer lugar. Não é porque vivemos em uma comunidade que a gente é bandido. A gente trabalha. E temos nosso direitos”, completou moradora da Britanitee, que se mudou para o local em meio a um tratamento de câncer e durante a crise social da pandemia.

Homicídios dolosos por arma de fogo

De acordo com dados do “Monitor do uso da força letal na América Latina” – que analisou em 2019, Brasil, Venezuela, Colômbia, El Salvador e México, em alguns estados brasileiros, as mortes causadas pela polícia representam quase um terço de todas as mortes. No Brasil, entre 2019 e 2020, a proporção de homicídios dolosos causados por agentes de segurança pública em serviço por arma de fogo aumentou 6,3% em todo o país e 20 dos 27 estados experimentaram aumento.

Repercussões na Câmara Municipal

No dia 2 de junho de 2023, houve participação de integrantes da comunidade Britanite com pauta na comissão de direitos humanos na Câmara Municipal de Curitiba. À época, as reações de integrantes da comissão, diante dos relatos de ações diárias no local, foram diversas.

De acordo com ao transcrição do site da Câmara, a subtenente reformada da Polícia Militar do Paraná, vereadora Sargento Tânia Guerreiro (União) disse que durante seu trabalho na corporação jamais entrou em uma residência sem um mandado de prisão ou de busca e apreensão.

Guerreiro analisou que talvez o comando do batalhão responsável pelo policiamento da região não tenha conhecimento dos supostos abusos policiais e recomendou que a coordenação da Ocupação Britanite reúna evidências nesse caso.

“No tempo que permaneci na PM, eu jamais entrei numa casa sem mandado de prisão, de busca. E quem expede esse mandado é o juiz. […] É inaceitável isso”, completou, para depois orientar que os moradores tentem identificar os policiais, pela identificação na farda, para reunir mais elementos para a denúncia.

Já a presidenta da Comissão de Direitos Humanos, Giorgia Prates – Mandata Preta (PT), afirmou que a justificativa de combate ao crime não pode permitir violências contra a comunidade, e nem responsabilizar a própria comunidade pela violência. A mesma violência que não pode justificar a remoção de centenas de famílias de um local com risco de despejo.

“Esta violência que eles relatam, eu já presenciei. Dizer que o bairro é violento e a gente culpabilizar a comunidade? É justamente isso que eles estão trazendo. […] Muitas vezes, quem mora na periferia não vai causar violência na própria periferia. Às vezes, as pessoas vêm de outra região. Não é propriamente a pessoa que mora naquela comunidade. […] Acho muito importante que a gente possa levar a discussão adiante. Até porque os direitos precisam ser respeitados. E a vereadora Sargento Tânia bem colocou: não é normal.”

Nota do 13º Batalhão de Polícia Militar para a reportagem do Brasil de Fato Paraná

Em nota, a assessoria de comunicação do 13º Batalhão de Polícia Militar, responsável pelo policiamento no Tatuquara, afirma que “A distribuição do policiamento é realizada com base em análises estatísticas criminais, bem como visando a preservação da ordem. A realização de abordagens se dá embasada em fundada suspeita, podendo ocorrer em qualquer localidade, indiferentemente de classes sociais ou região".

Afirma também: “Ressalta-se a importância dos registros de ocorrências por parte da população, a fim de que auxiliem a Polícia Militar no sentido de prevenir a ocorrência de crimes em qualquer região. Nesse diapasão, há de se exaltar que os devidos registros em Boletins de Ocorrência, assessoram os locais em que é mais necessário a intensificação do patrulhamento realizado por viaturas”, justifica.

A corporação ainda sugere que “pessoas que se sintam hostilizadas em virtude de qualquer abordagem, procure a Corregedoria da Polícia Militar para formalização da denúncia. Ressalta-se que tais denúncias recebidas são encaminhas a autoridade policial militar judiciária para análise e possível instauração de Procedimento Administrativo a fim de apurar fatos que não condizem com a legalidade institucional”.

*Todas as identidades de moradores e entrevistados foram preservadas na reportagem.

 

Edição: Lia Bianchini