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Reexistências Negras. Perfil de Juliana Barbosa

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"Como quem ajusta o “GPS de si”, passou a considerar não apenas o destino final, mas também seu ponto de partida". Arte gráfica: - Guilherme Carvalho
A alegria é capaz de reivindicar mudanças e na luta antirracista é tão importante quanto a raiva

O black power de fios alvos e naturais ostentam imponência, requinte e modernidade. Os brincos dançam pendurados adornando a face com os tons quentes e vibrantes. O sorriso, de largura generosa, traz curvas com precisão milimétrica, em ambos os lados, no arranjo de um espírito que, imbuído de tradições, se projeta no mundo agarrado à crença entoada por Elza Soares: "Eu tenho o samba para me defender".

O estilo elegante e multicolorido comunica a junção do Rio de Janeiro com o Paraná. Embora carioca por registro, Juliana Barbosa teceu protagonismo nas terras londrinenses, onde posou com a família antes de completar seu primeiro ano de vida. Desembarcou em 1976, numa semana carnavalesca e, embora pequenina, já personificava a alegria em seu figurino festivo.

Cresceu embalada em acordes que, em sua direção, entoavam os versos "Oh coisinha tão bonitinha do pai", afeto em forma de canção. Herdou devoção à mangueira num legado de amor transmitido por três gerações em uma família apaixonada por carnaval. Mas devo alertar: enganam-se os apressados que só enxergam no rito uma boa folia, a Mangueira é palco, mas também palanque de reivindicações que, através de suas tramas, dão voz a questões como desigualdade, racismo e marginalização.

O Carnaval, pulsante em batuques, danças e cores enraizadas na cultura negra, precisou ser "adotado" por pessoas brancas para ganhar aceitação. Na adolescência, a ausência da perspectiva racial velou os meandros em torno da questão. Originária de uma família que, apesar da falta de ensino formal, sempre valorizou o estudo e incentivou seu aprendizado, estava ingênua diante dos preconceitos ligados à sua ancestralidade e tampouco imaginaria que esse encontro aconteceria no ambiente da escola. Certo dia, apareceu dançando em um programa televisivo e, ao retornar à sala de aula, viveu uma espécie de escárnio por parte dos colegas de classe. Sentiu como se tivesse cometido um erro. O solo da autoestima vacilou sob os pés, a identidade cultural havia sido abalada.

Na sequência, notou a escassez de eventos de samba e, consequentemente, o desinteresse proporcional de seus colegas em participar de algo semelhante. Julgou que o ritmo havia falhado em proporcionar uma conexão significativa com seus pares, flertou com a rebeldia e rendeu-se ao rock. Hoje, relembra o episódio com ponderação ao afirmar que sair da bolha teve sua importância.

A busca por reordenar o que estava dissonante também incluiu um drama com o cabelo, um elemento central da estética negra. O fio crespo e indomável foi parte da lista de coisas que Juliana pretendia “dar um jeito".

Aos quinze anos, ocupou-se de planos e como quem traça metas e confia no tino, incluiu em sua lista um diploma de curso superior.

Para tal, conciliou a escola com o trabalho a fim de desafogar as despesas familiares. Aos 17 anos, foi aprovada em relações públicas na Universidade Estadual de Londrina (UEL), em uma época em que não existiam políticas de acesso ao ensino superior.

Era uma das duas estudantes negras na turma e em pouco tempo, tornou-se a única, uma vez que a outra desistiu. Nessa fase foi atravessada pela questão da negritude e passou a ter outras formas de experienciar o conhecimento. Compreendeu o racismo de forma sistematizada. Ser a única pessoa negra em um espaço é ser atravessada diariamente por processos tão sofisticados de violência impossíveis até de se nomear. Como quem ajusta o “GPS de si”, passou a considerar não apenas o destino final, mas também seu ponto de partida. Conectou-se à ancestralidade, reconciliou com o cabelo e, como quem atende a prece de Alcione, em "Não deixe o samba morrer", retornou ao ritmo como quem faz as pazes com a alegria. Compreendeu o autoamor como uma ferramenta para ir em busca de quem era, e não de quem lhe diria quem teria que ser. Essa é mais uma evidência de que o aprendizado também emerge das vivências, especialmente no cenário das experiências das pessoas negras. Essa dimensão é ao mesmo tempo individual e política e se ampara na perspectiva defendida por Conceição Evaristo, escritora brasileira.

Dali em diante, Juliana abraçou a prudência, mas não exagerou na precaução para não sufocar a felicidade. Ao concluir a Universidade, já estava profissionalmente inserida no campo das Relações Públicas. Como uma força da natureza, preencheu todos os espaços disponíveis, desafiadores até para aqueles com privilégios mais amplos e maiores oportunidades de acesso.

Notou ser a única presença negra em uma série de ambientes que não estavam previstos para ela e reconhece que esteve diante de desconfortos em que, no momento em questão, não soube identificar a razão. À medida que as discussões sobre questões raciais aumentaram, ampliou o repertório. Compreendeu o significado de sua jornada, não apenas em relação a si mesma, mas para os seus, no sentido mais amplo da palavra. “Quando eu comprei um carro, as amigas da minha irmã disseram que já podiam se imaginar com um também e o meu era um fusca. Imagine?``, recorda com um sorriso, envolvida pela memória afetiva.

Juliana passou a assumir os espaços de forma estratégica e numa militância lírica, reivindica espaços, vez e voz, tendo o samba como seu fio condutor. "O papel do samba é escrever histórias que estão fora da história oficial", afirma relembrando das canções cujas letras traduzem o que corrói a alma de muitos corações brasileiros e que, se forem expressas sem a sedução do ritmo, podem dar até cadeia, a exemplo da crítica musicalizada na voz de Bezerra da Silva que aconselha: “meu irmão / se liga no que eu vou te dizer / hoje ele pede seu voto / amanhã manda a polícia lhe bater.

Nesse movimento, também ocupou lugares “glamourosos”. Quando tomou a decisão de prosseguir com o mestrado, atendeu o conselho de estudar algo que amasse e nem provou o privilégio da dúvida. Como resultado, alcançou a titulação máxima da academia como pós-doutora em samba. Em 2022, foi convidada a fazer parte do painel do júri do Estandarte de Ouro, uma premiação da 50ª edição promovida pelos jornais O Globo e EXTRA, após assistir ao evento como telespectadora por 40 anos. Como uma típica canceriana, aceitou sem medo da emoção.

Juliana também é professora no setor de comunicação da Universidade Federal do Paraná. A militância da luta antirracista aparece sem qualquer timidez nas suas produções culturais, nas pesquisas sobre o samba e na própria acolhida aos estudantes que, ao olharem para ela, sentem a força da representatividade. “Logo quando iniciei minha jornada na UFPR, participei de uma cerimônia de formatura dos cursos de comunicação. Fui abordada por duas alunas negras emocionadas por me verem ali. Essa não foi uma experiência isolada. Recebi retornos semelhantes dentro da sala de aula, vindos tanto de alunos negros quanto não negros. É muito significativo”.

Enquanto relata, se esforça para não quebrar o protocolo da entrevista e pressiona as mãos contra o queixo para não ceder à emoção. Contorna os olhos lacrimejados e se recompõe. Com certo orgulho, detalha os esforços dos estudantes do "Coletivo Black" para ampliar a diversidade no ensino da comunicação no setor.

Enquanto professora, aborda a comunicação também sob as perspectivas de raça, gênero e classe. Sempre que possível, utiliza o samba como veículo. É como se o ritmo desencadeasse uma descarga motora ligada a uma necessidade atendida. O samba, nesse contexto, é a ferramenta à sua disposição. Foi impulsionada por essa expressão que aprendeu a alterar profundamente a ordem das coisas ao redor.

Na esfera coletiva, através dessa manifestação, reformulou a experiência em relação ao racismo e elaborou abordagens para trabalhar a questão, rejeitando uma conexão baseada unicamente na dor. Na esfera pessoal, parece ter seguido o mantra entoado por Chico Buarque: "Apesar de você / amanhã há de ser / outro dia" num escudo de si e da perspectiva de que o futuro reserva a esperada mudança.

Qual é a mudança? Ju acredita que hoje, ao adotar uma perspectiva racializada, as jovens terão novas formas para abordar as complexidades ligadas à raça e ao gênero, desafios que ela teve que enfrentar durante a graduação diante da solidão racial sem orientação adequada. Ela vislumbra o futuro com otimismo, desejando que os ambientes se tornem mais coloridos tanto em termos étnicos quanto nas cores do samba. Espera que a juventude possa ocupar os espaços com uma autoestima mais sólida, abraçando os cabelos e tonalidades de pele, reconhecendo e celebrando a beleza da estética negra. "A autoestima dentro da comunidade negra é também uma ferramenta muito importante na luta. Minha geração construiu isso aos poucos. A de vocês já chega com ela e vem forte”.

Para Juliana, a alegria também é um sentimento capaz de reivindicar mudanças e na luta antirracista é tão importante quanto a raiva. Imbuída de uma personalidade tipicamente brasileira, sorri de orelha a orelha com facilidade, mas se necessário, canaliza o canto de Beth Carvalho como quem: reconhece a queda e não desanima / levanta e sacode a poeira / dá a volta por cima.

Antes de encerrar, revela seu plano de explorar o mundo dos sambas em Curitiba. Ostenta uma lista de rodas de samba em seu bloco de notas do celular em que dispara o "check" triunfal a cada meta cumprida. Sim, todo carnaval tem seu fim, mas Juliana é do tipo que tá sempre à espera do próximo festejo e como tal, deixa como sugestão o enredo A solidão ninguém sabe / Onde é que fica / Porque a festa já vai começar / No cafofo da Surica. E para bons entendedores, o convite para o samba foi feito.

 

 

Edição: Pedro Carrano