Uma ilha cercada de despejos por todos os lados. Essa é a situação de hoje da vila Domitila. Um enclave ameaçado de reintegração de posse em plena região nobre do urbanismo excludente de Curitiba. As casas estão bem estruturadas e dão a aparência até de um residencial de classe média.
Porém, o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), autarquia do governo federal, alega que é legítimo possuidor do imóvel denominado "Vila Domitila - Gleba Juvevê”. No fundo, a disputa já consome mais de um século. A área onde fica a Vila Domitila, de 191.480 m², tem a avaliação de até $ 72 milhões. Localizada entre os bairros Ahú e Cabral, atrás da penitenciária desativada, segue sem solução e, permanentemente, retorna aos noticiários.
O cenário é de desolação. Numa cidade com tanta demanda por terra e moradia, a área já conheceu o despejo de cerca de 200 famílias. Tratores alcançaram casas construídas há mais de 40 anos. Agora, cerca de 20 famílias fazem, literalmente, uma ilha de resistência. E não querem sair.
“Minha mãe viveu aqui há quarenta anos, atuando por meio da associação de moradores. As famílias foram despejadas a base de trator e multa”, denuncia Marcos Flávio Gouveia, trabalhador autônomo, liderança que se criou desde a adolescência no local. Ele enuncia que sua mãe, falecida no período da pandemia, foi uma das antigas moradoras que não pôde ver o caso solucionado. “Perdemos muitos dos velhos, como eu perdi minha mãe. E agora as casas despejadas viram local de consumo de drogas”, aponta.
Quando esteve no local, a reportagem do Brasil de Fato Paraná atestou que moradores de diferentes gerações não querem deixar o local, inclusive diante da falta de propostas de realocação ou indenização. É o caso de Vilson, trabalhador de construção civil, há 20 anos no local. Passando por Nicole, jovem na região desde que nasceu. O INSS, por sua vez, em resposta à reportagem, aponta o interesse em leiloar o terreno, que não seria destinado à habitação de interesse popular.
Posse e direito
A tese principal dos familiares e da associação de moradores local é que, no episódio quando a tradicional família do ex-governador Munhoz da Rocha vendeu a área para o INSS, nos anos 1940, isso não incluiria o trecho atrás da antiga penitenciária, onde hoje fica o enclave da Domitila.
Hoje, afora as placas com o aviso do iminente despejo, moradores afirmam que não há um canal de negociação, seja com o INSS ou mesmo com a prefeitura. Marcos reclama da forma como as famílias são tratadas. “Cortaram luz e água das famílias que pagam a Copel e Sanepar há décadas. (Os órgãos públicos) nunca chamaram para acordo nem nada”, diz.
Neste momento, as famílias tentam denunciar a situação. A vereadora Giorgia Prates (PT) esteve no local e busca acionar a comissão de conflitos fundiários do Tribunal de Justiça do Paraná.
História remonta a 1871
Na versão da defesa dos moradores, as terras onde vivem eram de Tertuliano de Freitas, em 1871. O imóvel passou para Antonio da Ros que, em 1912, teria vendido os lotes a Jorge Polysú. Em meados de 1960, a filha de Polysú e o marido dela, Abdon Soares, registraram a propriedade no 2º Registro de Imóveis da Comarca de Curitiba, lotearam e venderam os terrenos. O casal moveu uma ação de reivindicação das terras em 1970 contra o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS, hoje INSS) - apontam informações da Câmara Municipal.
Por outro lado, a versão do INSS é de que uma área de 300 mil metros quadrados teria sido vendida ao governo do Paraná, em 1909, por Eugênio Wirmond. Em 1920, o governador Caetano Munhoz da Rocha teria leiloado a área, sendo arrematada por Carlos Franco. Em 1927, Franco teria vendido a propriedade justamente para Munhoz da Rocha. Ao obter a escritura em 1944, Munhoz da Rocha teria vendido a área de 191,4 mil metros quadrados para o INSS, no local onde está a Vila Domitila. A divergência já foi tema inclusive de CPI na Câmara de Vereadores, em 2016.
Posição do INSS
Via e-mail, o Brasil de Fato Paraná entrou em contato com a assessoria de imprensa do INSS, que emitiu a seguinte resposta sobre o destino das famílias: “Os imóveis citados pertencem ao Fundo do Regime Geral de Previdência Social (FRGPS) e devem ser alienados para o pagamento de benefícios. O INSS cumpre rigorosamente as decisões judiciais. Não é possível a doação destes imóveis ou inclusão em programas de regularização fundiária em razão da destinação ao FRGPS e ao seu alto valor econômico”, afirma a assessoria.
Edição: Lia Bianchini