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CRÔNICA. Batista de Pilar e o impacto permanente das palavras

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Agora carregamos as palavras de Batista nas noites frias do centro de Curitiba - Alice Rodrigues
E a poesia, penso agora a partir desses dois episódios, é o manto capaz de proteger a vida de muitos

A morte de Batista de Pilar, poeta rebelde na sua vida mais até do que nas palavras, nos recorda o quanto um gesto simples pode nos modificar, ainda que o próprio autor do gesto não se dê conta. Ou até mesmo quando uma ação distraída pode ter a capacidade de sobreviver à própria pessoa.

Pra mim, a poesia chegou dessa forma. No fundo, devo o meu interesse por literatura ao meu ambiente familiar na infância, marcado por livros de minha mãe na casa. Com uns 15 anos, em crise e desacreditado, como tantos adolescentes, sobre o quê fazer da vida, já que uma operação no joelho me havia decretado que nunca teria qualquer chance no ramo do futebol, recordo que uma estudante entrou na sala de aula e pediu licença. Carregando um manto negro em torno do corpo, levantou um silenciamento inicial de toda a turma. A professora entendeu que se tratava de algum projeto da aula de literatura e acenou que sim com a cabeça. Sem titubear, ela iniciou a declamação, com um quê de teatral, do poema E agora, José? de Drummond.

Relembro. Muitos colegas ironizaram. Os piás, sobretudo. Mas alguns, como eu, apenas silenciamos em solene respeito. Estávamos impactados. A jovem não vacilou um segundo, mesmo diante das vaias. Manteve-se firme no leme até o final daquelas palavras, disparos perenes e firmes, que, àquela altura, pra quem, como eu, buscava um sentido em sua vida, funcionavam também como lascas de madeira no meio do oceano pra um náufrago. Ou, como brincaria Leminski, um náugrafo.

Encerro este flash back e retorno para Batista de Pilar. O poeta, falecido há alguns dias, autor de várias publicações, candidato a vereador pelo PT, foi uma figura que, antes de eu visualizar nas ruas, já conhecia pelos poemas excelentes e divertidos: “Interessante/ a formiga/ morder o elefante”. Vasculho a minha biblioteca e me dou conta de que, entre tantas mudanças e perdas, já não trago nenhum exemplar publicado de Batista comigo.

E nem seria necessário. Na minha memória, fica martelando uma noite no Largo da Ordem, talvez em algum evento da Feira do Poeta, quando, microfone aberto aos convidados, Batista – causando choque em quem não esperava, ou até com muitos olhares de preconceito contra ele, arrastando um trapo envolto no corpo para protegê-lo do frio, calmamente, calmamente, apossou-se do microfone e disparou um verso curto atrás do outro, com a ironia e palavras afiadas que o caracterizavam. Como boxeador, cada palavra era uma porrada. "Minha vizinha tinha/ uma estranha mania/ de colecionar estrelas". Como ator, o manto simples e verdadeiro que protegia seu corpo do frio era da mesma verdade que a sua poesia. E a poesia, penso agora a partir desses dois episódios, é o manto capaz de proteger a vida de muitos de nós.

Assim como pediu a palavra, em meio às sombras do Largo, naquele mesmo instante Batista desapareceu. Deixando sua marca em palavras, provocando a estrutura cultural elitista de Curitiba, fazendo jus aos tempos de Leminski, quando não havia muitas fronteiras entre poesia e boemia.

Não sei se Batista se deu conta, que naquela noite podia ter deixado, em vários de nós, sementes de inquietação. Agora carregamos as palavras de Batista nas noites frias do centro de Curitiba.

Edição: Ana Carolina Caldas