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Junho de 2013, complexo e contraditório

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O movimento de massas, ainda que espontâneo, é formador e pode alterar a correlação de forças. É papel da esquerda disputá-lo, influenciá-lo - Reprodução
É papel da esquerda disputar o movimento de massas

Sem dúvida Junho de 2013 foi um marco na luta política e social no Brasil. A política é outra depois deste período, com uma notável mudança de qualidade.

Não podemos analisar 2013 sem levar em consideração a conjuntura política daquele período. Os governos Lula e Dilma possibilitaram crescimento econômico, com alguma distribuição de renda, seja pelos benefícios sociais, seja pela valorização do salário-mínimo, reduzindo as taxas de desemprego e melhorando a condição de vida da população mais carente. Os trabalhadores, por meio de aumento do número de greves e mobilizações econômicas, vinham tendo conquistas, que não foram acompanhadas necessariamente de avanço organizativo e acúmulo político. Em 2012, 96% das categorias tiveram ganhos acima da inflação (Dieese).

A partir da política de ampliação do acesso às universidades, com política de cotas, Prouni, Fies, várias políticas voltadas à população do semiárido do Nordeste; criação de novas universidades e institutos federais, vimos a entrada de um grande contingente de jovens nas universidades, que vislumbravam uma possibilidade de futuro melhor. A entrada na Universidade, além da melhora nas condições de vida, também possibilita a conscientização, sendo este ambiente propício para a reflexão crítica e palco e força de muitas mobilizações.

Apesar de beneficiar setores populares, os governos Lula e Dilma desagradaram outros setores. À época de junho de 2013, a burguesia associada ao imperialismo já demonstrava profundas insatisfações com os rumos do governo, exercendo influência para implementação de políticas de ajuste fiscal. O movimento conservador, principalmente organizado em torno de segmentos da igreja, também se demonstrou descontente com pautas propostas pela equipe petista, manifestando-se contundentemente sobre a questão do aborto na eleição de 2010 - o que levou a então candidata Dilma a retroceder - e contra o Projeto Escola sem Homofobia, pejorativamente chamado de “kit gay” por parte dos opositores, vetado pelo governo em 2011.

Outra parcela da população a dar sinais de descontentamento neste período foi a classe média, vendo os de baixo se aproximarem com a melhoria das condições materiais de vida, e os de cima se distanciarem cada vez mais, com ganhos extraordinários obtidos pela grande burguesia interna.

Para entender o contexto de 2013, não podemos desconsiderar os limites da estratégia lulista. Apesar de melhorias das condições de vida da população de mais baixa renda, as políticas que caminharam neste sentido não foram combinadas com um processo de organização e educação política, alimentando a ideia de que um líder resolve os problemas do povo a partir da negociação por cima, com pouco envolvimento das massas populares na luta pela implementação e defesa de tais medidas. Tal estratégia também alimenta a meritocracia, fazendo com que as melhorias fossem enxergadas como parte de um esforço pessoal, e não como resultado de um programa político.

Se olharmos o cenário internacional, também observamos grande efervescência social nos diversos continentes mundo afora. Em muitos lugares manifestantes denunciavam os efeitos da crise econômica de 2008 e apresentavam o descontentamento com governos e o sistema político. Em 2011 vimos o movimento Occupy Wall Street em Nova York. Na Espanha e Grécia grandes manifestações tomaram as ruas contra as políticas de ajuste fiscal, sendo que na Espanha o partido Podemos é criado dentro deste contexto. No Oriente Médio e norte da África toma a cena a Primavera Árabe, onda de mobilizações contra regimes autoritários e por melhores condições de vida. Os protestos da Primavera Árabe são amplificados e influenciados a partir da internet, o que alguns caracterizam como um dos primeiros experimentos de manipulação das redes sociais para fins políticos.

Este é o pano de fundo de Junho de 2013 no Brasil. Neste cenário, a luta contra o aumento da passagem (historicamente pauta da juventude, protagonizada pelo Movimento Passe Livre - MPL), coloca a juventude nas ruas em São Paulo, prefeitura de Haddad, e em outras cidades do Brasil. A repressão brutal em 13 de junho de 2013 por parte da polícia militar do então governador de SP, Geraldo Alckmin, gera comoção nacional e amplifica as mobilizações em São Paulo e noutros estados do Brasil, proporcionando atos massivos há muito tempo não vistos. Logo no início, as reivindicações extrapolaram a redução da tarifa do transporte e tinham caráter progressista: pela educação, saúde, contra o sistema político, etc.

Algumas considerações sobre os atos de junho:

1) A classe trabalhadora não entrou em cena. O corpo das manifestações foi constituído principalmente pela juventude da classe média.

2) As convocatórias, num primeiro momento, foram realizadas pelo Movimento Passe Livre, movimento de caráter autonomista, que nega a forma clássica de organização da esquerda tradicional (atos sem carro de som, sem partidos, sem comando claro, etc), o que influenciou o conjunto de manifestantes.

3) Não só por influência do MPL, mas também pela insatisfação com a política tradicional e pela demanda de uma nova geração de ativistas, novas formas de luta, agitação, propaganda ganham espaço.

4) É um dos primeiros momentos que sentimos com peso os efeitos da internet e das redes sociais na luta política. Tais recursos foram determinantes nas convocações massivas e na repercussão da luta. Muitos smartphones gravaram e disseminaram a forte repressão ocorrida em 13 de junho de 2013, gerando muita solidariedade e reforço à mobilização.

5) Desde o fim da década de 80 e início de 90 não observávamos manifestações tão massivas, seja em número absoluto de manifestantes, seja em capilaridade de estados e cidades.

6) Os partidos políticos de esquerda pouco conseguiram assumir o comando do movimento e exercer hegemonia e influência.

7) Vimos a direita também ocupar as ruas, tanto a neoliberal quanto a neofascista. Estávamos acostumados a enfrentar a direita no plano institucional, enquanto governo. Enfrentá-la nas ruas foi uma novidade que exigiu rápidos aprendizados.

Disputa de rumos

A mídia de direita se colocou em ação para disputar os rumos das manifestações de acordo com seus interesses, com destaque para a rede Globo. Escolhia o que noticiar, qual pauta dar visibilidade, qual militante destacar. Canalizou a insatisfação com o sistema político e a luta contra a corrupção, pauta típica da esquerda, para o anti-petismo e o enfrentamento ao governo Dilma, organizando o sentimento da classe média.

A partir da disputa das ruas, a direita acumula força, fundando em 2014 o Movimento Brasil Livre (MBL) e a operação Lava Jato. O MBL se apropria da estética das ruas de 2013, organizando jovens, com novas formas de agitação e propaganda, apresentando-se, mentirosamente, contrários aos partidos tradicionais. A direita canaliza sua luta contra a reeleição do governo Dilma em 2014, fazendo uma disputa bastante dura e acirrada. A Lava Jato, unindo Judiciário e Polícia Federal, a mídia burguesa, o Congresso, a burguesia, apoiados na classe média, efetivam o golpe de 2016. Todo esse processo, de junho de 2013 ao golpe, formou muitos quadros da nova direita. Podemos citar Kim Kataguiri, Carla Zambelli, dentre outros.

Há análises que demonizam Junho de 2013 como a semente do neofascismo e de todas as derrotas decorrentes do último período. Esta análise não nos cabe. Devemos entender a jornada de Junho como complexa e contraditória. O campo progressista também acumulou durante esse período. Vimos toda uma nova geração de jovens entrar para luta, somando forças nas fileiras da esquerda. Muitos destes militantes se desenvolveram e estão tomando a frente de diversos processos de luta e organizações políticas. Os movimentos de juventude se fortaleceram e cresceram a partir de 2013, como é o caso do Levante Popular da Juventude. Aprendemos novas formas de fazer política. Se a direita formou quadros, a esquerda também viu novas lideranças sendo forjadas.

Do ponto de vista da esquerda, as manifestações de 2013 posteriormente desaguaram em grandes processos de luta, como é o caso da ocupação das escolas em 2015 em São Paulo (uma das poucas lutas a impor uma derrota ao governo PSDB, que estava a frente do estado há 20 anos), as ocupações em 2016 contra a reforma do ensino médio, a resistência ao golpe e, se esticarmos um pouco a corda, a reeleição de Lula em 2022. A partir do processo de 2013, novas pautas tomam força e centralidade como, por exemplo, a luta das Mulheres, com expressão nas manifestações “Mulheres contra Cunha” em meados de 2015; a luta LGBT, antirracista, ambientalista. Tais sujeitos em luta, assim como o comunismo, são os inimigos elegidos pelo neofascismo e, portanto, força fundamental para derrotá-lo.

O movimento de massas, ainda que espontâneo, é formador e pode alterar a correlação de forças. É papel da esquerda disputá-lo, influenciá-lo para que de fato acumulemos forças no sentido da mudança estrutural da sociedade. As organizações que se colocaram nesta direção em 2013, acertaram e acumularam.

O intenso processo de luta desencadeado em Junho daquele ano colocou para a esquerda a necessidade imperativa da unidade. Iniciativas importantes foram construídas a partir desta ocasião. Como resposta à insatisfação política, construímos a campanha unitária pela Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político. Posteriormente, fundamos a Frente Brasil Popular, unidade importante para enfrentarmos o golpe de 2016.

Lições

Do complexo e contraditório Junho de 2013, ficam algumas lições:

1) A organização política é fundamental para disputar o movimento espontâneo das massas e acumular força na perspectiva da esquerda.

2) A unidade e a vanguarda cumprem papel imprescindível nos momentos de ascenso.

3) Não podemos abrir mão da disputa ideológica e da organização popular, mesmo em momentos difíceis (e principalmente nestes).

4) É fundamental a entrada em cena da classe trabalhadora para alteração da correlação de forças.

Edição: Pedro Carrano