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Coluna

Apontamentos para uma análise da correlação de forças no Ministério da Educação do Governo Lula

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Esse parece ser o caminho: manter a resistência ativa construindo um processo de acúmulo de forças populares. - Foto: Christofer Dalla Lana
Mas há, além disso, resquícios do próprio neofascismo dentro do MEC

1. Desde que se iniciou a terceira gestão de Lula na presidência da república, em janeiro/2023, diversas observações a respeito da conjuntura interna do Ministério da Educação (MEC) têm sido feitas. Tratam-se de análises oriudas dos mais diversos setores – academia, sindicatos, entidades educacionais progressistas, movimento estudantil etc. –, que, a despeito de diferenças de natureza e na abordagem de temas específicos, obtêm uma conclusão comum: o novo MEC contém uma correlação de forças peculiar em relação aos demais setores do aparelho de Estado, parecendo preservar componentes fundamentais da política do período Temer-Bolsonaro (2016-2022).

2. De fato, a manutenção do núcleo da política educacional do período anterior dá bastante legitimidade a esse diagnóstico, apesar do curto período do novo governo Lula até aqui. Como discutimos em outros textos (2) o chamado Novo Ensino Médio (NEM) sintetiza a articulação neoliberalismo-neofascismo que definiu o eixo da política governamental de Bolsonaro. O NEM não se reume a um conjunto de orientações curriculares neoliberais ou a possibilidades de oferta e gestão educacionais privatistas. Apresenta, além disso, uma radical alteração no eixo do ensino médio nacional, visto ser alicerçado em um caráter fortemente anticientífico dos conhecimentos ensinados (fundamentados no binômio itinerários formativos + competências socioemocionais) e guardar relação estrutural com formas autoritárias de organização do espaço escolar, como, por exemplo, o modelo de escolas cívico-militares.

3. Esses ingredientes, por si, ampliam as desigualdades educacionais e esfacelam o cumprimento do direito à educação para os trabalhadores. Mas o ensino médio tem, ainda, a capacidade estrutural de influenciar diversos campos da política educacional, incluindo boa parte da educação básica, a educação profissional, o ensino superior e as modalidades previstas na LDB. A literatura especializada mostra que, principalmente em países que ainda não atingiram certa estabilidade na oferta do ensino médio, assumindo-o com um caráter de massas universal, mudanças sensíveis de modelo provocam significativas alterações de conjunto nas políticas governamentais. Tal fenômeno, aliás, é verificado de modo muito evidente na história brasileira em, pelo menos, três momentos: a reforma Capanema (1942), a reforma tecnicista da Ditadura Militar (Lei 5692/1971) e a primeira reforma neoliberal (década de 1990).

4. Mas qual é a correlação de forças que permite a preservação daquele modelo até o presente momento? Os apontamentos seguintes, ainda preliminares, buscam contribuir para a resposta a essa questão, analisando politicamente a situação atual do MEC. Espera-se que tais reflexões auxiliem o movimento popular educacional a encontrar caminhos propositivos na conjuntura presente.

5. Retomemos, de início, o primeiro movimento de articulação educacional da frente ampla que elegeu Lula: a montagem do chamado Grupo de Transição, em meados de novembro de 2022. O grupo assumiu as tarefas de elaborar um diagnóstico preliminar das políticas em curso e oferecer sugestões gerais para o novo governo, restringindo-se a função meramente consultiva. Quantitativamente, foi composto por maioria de representantes da burguesia brasileira, especialmente fundações empresariais e do terceiro setor, Sistema S e instituições privadas de ensino. O resultado foi um relatório de conteúdo genérico, que não apresenta propostas concretas de revogação de medidas do período anterior, apesar de denunciar o retrocesso representado pelas políticas bolsonaristas. As propostas gerais, cujo eixo foi a ampliação do direito à educação, não enfatizaram a perspectiva pública, estatal e gratuita como pressuposto das políticas educacionais.

6. Ao serem nomeados os cargos do MEC no novo governo, já em 2023, essa maioria quantitativa permaneceu. No entanto, agora, a natureza de cada cargo ocupado importa sobremaneira na análise da correlação de forças, dadas a estrutura hierárquica da burocracia de Estado e a importância política de cada secretaria, diretoria ou coordenação. Cargos estratégicos passam a ser ocupados por representantes de setores progressistas e sem vínculo direto com entidades da burguesia. São os casos, por exemplo, da atual Coordenação-Geral de ensino médio, da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec), da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) e da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi). Essa situação garantiu avanços na política educacional já nas primeiras semanas de governo, como, por exemplo, ampliação de recursos para a merenda escolar, valorização de bolsas de pesquisa, retomada do diálogo com universidades e a própria recriação da Secadi.

7. Duas ressalvas, todavia, precisam ser feitas. Em primeiro lugar, a noção de “setores progressistas” adotada aqui é bastante alargada. Pela própria natureza heterogênea da frente ampla que sustenta o governo, o progressismo de esquerda passa a ser permanentemente tensionado pela direita tradicional, adquirindo, com maior ou menor intensidade a depender da situação, um potencial liberal. Na educação, dada a função precipuamente ideológica que cumpre na acumulação de capital, a permeabilidade a esse fenômeno parece ser ampliada. No neoliberalismo, como define Pablo Gentili (3), o campo educacional aciona e mobiliza estruturas cuja função central é recompor o poder das classes dominantes, em nível nacional e internacional, mas que aparecem como árbitras dos conflitos sociais. O grande exemplo é o Banco Mundial (BM) e sua influência nas políticas de educação da periferia, a partir do Consenso de Washington.

8. A segunda ressalva se refere a uma aparente simetria verificada, no âmbito do MEC. Um olhar descuidado pode identificar, no momento atual, um equilíbrio entre, de um lado, as forças progressistas e, de outro, os setores burgueses que viram seus interesses prioritariamente atendidos pela política educacional de Temer-Bolsonaro. Na nova conjuntura, porém, as fundações empresariais permanecem com influência significativa no ministério. Ainda que não consolidem uma maioria numérica, esses grupos seguem ocupando boa quantidade de cargos e operam a partir de uma lógica bastante própria do MEC, que vai além da secretaria executiva e do gabinete do ministro. Os vínculos com as Secretarias Estaduais de Educação e com os Sistemas de Ensino, nesse caso, são a alma da política governamental e se constroem pautados nos repasses de recursos e na influência de organismos privados. Não é demais lembrar, por exemplo, o empréstimo de mais de um bilhão de reais contraído pelo governo federal, em acordo com o BM, logo após a aprovação da contrarreforma do ensino médio, amarrando contratos e programas que estão em pleno andamento.

9. Até aqui, quando abordamos os setores empresariais, tratamos daqueles que assumiram, ao menos na narrativa, uma postura política governista e conciliadora. Esses seriam os casos de entidades como o Sistema S, o Instituto Unibanco e o Movimento Todos pela Educação. Essas instituições são, na verdade, instrumentos de atuação política das frações burguesas para a disputa da hegemonia, fazendo-o prioritariamente a partir da política de educação (4). Mas há, além disso, resquícios do próprio neofascismo dentro do MEC, representados por indivíduos que pautaram o programa educacional neoliberal no período anterior apoiando-se na política autoritária e negacionista. A recondução de duas dessas figuras a cargos do ministério foi objeto de intensas críticas de setores da esquerda, implicando, finalmente, na substituição dos cargos.

10. A mudança mais significativa, porém, foi a saída de cena do núcleo educacional mais sólido do neofascismo, composto por três forças articuladas: ala ideológica liderada por Olavo de Carvalho e seus seguidores, igrejas neopentecostais e militares. É desse núcleo que partem as medidas que estruturam a plataforma educacional do neofascismo, representadas, principalmente, pelo Projeto Escola Sem Partido e o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM). O primeiro foi interditado ao longo do próprio governo Bolsonaro e o segundo, assim como a contrarreforma do ensino médio, continua vigente sob responsabilidade do novo MEC.

11. Fato é que as políticas educacionais mencionadas, tendo sido implementadas ou não, vieram de uma frente política composta pelo núcleo neofascista e por setores importantes do neoliberalismo tradicional. Encontrando base social para legitimá-las, em um amplo movimento reacionário de massas, que é o sustentáculo do bolsonarismo, encadearam-se em uma trama institucional bastante coesa e complexa. A Lei 13.415/2017 que institui o NEM, por exemplo, alterou a LDB e ganhou status de política de Estado.

12. A opção pela nomeação de Camilo Santana para dirigir o MEC deve ser analisada a partir desse contexto. Em primeiro lugar, dada a articulação do ex-governador do Ceará com setores empresariais, representa a manutenção do neoliberalismo tradicional na proposição das políticas educacionais. Isso provoca uma situação na qual o campo progressista tem suas ações sempre restritas e é permanentemente disputado pela concepção liberal e privatista de educação. Em segundo lugar, a nomeação manifesta a nacionalização do modelo assumido como exitoso no estado do Ceará, que pauta a educação em resultados de avaliações externas como o PISA. Esse parece ser o centro da implementação do NEM no novo governo: eficiência em exames de larga escala, preparação de alunos para resolver provas e repasses financeiros que servem como prêmios para boas notas nas avaliações.

13. Como se pode perceber, as batalhas que o movimento popular educacional travará ao longo dos próximos quatro anos são de natureza e complexidade bastante diferentes das encontradas no primeiro governo Lula. Seja porque os próprios agentes do neoliberalismo acumularam experiências desde a década de 1990, seja devido à teia institucional que foi muito bem amarrada no período Temer-Bolsonaro, a tendência é que, partindo do executivo, haja pequena margem para a proposição de políticas que atendam aos trabalhadores. Como vimos, apesar da ampliação do diálogo, sequer a desbolsonarização da educação foi completada.

14. Também no parlamento as batalhas não serão favoráveis. Todavia, nesse espaço parece haver melhores condições para a atuação popular do que dentro do próprio executivo. As iniciativas que propõem a revogação do PECIM e do NEM (respectivamente, PDL nº 56/2023 e PL nº 2601/2023) partiram de proposições parlamentares, como resultado de mobilizações sociais importantes. Esse parece ser o caminho: manter a resistência ativa construindo um processo de acúmulo de forças populares. Experiências como, por exemplo, a campanha nacional #revogaNEM, com atos de rua e organização de comitês populares tem sido determinante para o acúmulo de forças em um quadro de difícil mobilização e para a elaboração de uma nova proposta para o ensino médio nacional. No atual momento, a luta pela aprovação do PL nº 2601/2023 é o combate prioritário.


Notas:

(1) Agradeço a Maria Luiza Freitas Marques do Nascimento, Lucas Araújo (Cerrado), Pedro Carrano e Fernando Heck pelas contribuições e discussão a partir de uma versão inicial deste texto.

(2) https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/616650-reforma-do-ensino-medio-e-uma-contrareforma-que-aprofunda-as-desigualdades-sociais-entrevista-especial-com-lucas-pelissari

(3) GENTILI, P. Neoliberalismo e educação: manual do usuário. In: SILVA, T. T.; GENTILI, P. Escola S.A. – quem ganha e quem perde no mercado educacional do Neoliberalismo. Brasília: CNTE, 1996. p. 9-49.

(4) A esse respeito, recomendo a leitura da dissertação de mestrado de Kamila Anzen, defendida no PPGCTS/IFPR em março de 2023 e intitulada Contrarreforma da educação profissional: interesses e contradições entre frações de classe. O estudo apresenta um rigoroso mapeamento dos interesses educacionais das frações interna e associada da burguesia brasileira, a partir da análise de propostas de cinco entidades representativas: Instituto Unibanco, Instituto Ayrton Senna, Confederação Nacional da Indústria, Movimento Brasil Competitivo e Instituto Millenium.

 

*Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Pedro Carrano