Paraná

EXTREMA DIREITA

Opinião | A estratégia Shen Yun, o absurdo sedutor

Seita Falun Gong promove narrativa conspiratória anticomunista em suas apresentações e veículo de comunicação

Curitiba (PR) |
O jornal The Epoch Times tem ligações com uma rede de 600 contas do Facebook que foram banidas, porque veiculavam conteúdo anti-vacina, fake news e teorias conspiratórias - Wikipedia: longtrekhome /CC BY 2.0

Na semana passada, no Teatro Guaíra, se apresentou a Shen Yun (“ritmo divino”, em mandarim), aclamado internacionalmente. A companhia está em turnê pela América Latina entre fevereiro e maio deste ano. A proposta poderia ser assim descrita: 5 mil anos de cultura tradicional chinesa, resgatada por um grupo de artistas, dentre dançarinos, músicos e cantores, que encantou com sua primorosa arte delicadamente exibida a nós, a plateia. Na primeira cena projetada na tela 3D, intitulada “Do céu para salvar a todos”, voa uma figura masculina, vestida de branco e com asas. Flutuando no ar, a personagem afirma que a humanidade seguiu o “criador” até o Planeta Terra. Parecia que, apesar da esquisita sugestão de que viemos do espaço, seria ainda assim um deleite inesquecível. A cada apresentação, não obstante falas estranhas, um suspiro da audiência, completamente envolta nas cores dos figurinos e na beleza das coreografias. Os movimentos dos corpos que lá se exibiam eram estonteantes e a orquestra harmoniosamente embalava a todos. Porém, conforme progredia o enredo, diversas referências invadiam o palco de uma forma despudorada.

Na verdade, a apresentação, muito mais que resgatar elementos culturais de uma civilização milenar, descortinou-se a serviço de um discurso de ódio e intolerância. A companhia de dança Shen Yun é patrocinada pela seita religiosa Falun Gong ou Falum Dafa (法轮功 – “roda de Darma”, doutrina de vida proposta por Buda), que se instalou nos Estados Unidos, após banimento da China pelo governo em 1999. O propósito principal deles é criar ódio ao comunismo e, especialmente, ao Partido Comunista Chinês. Seu líder religioso, Li Hongzhi, defende posições que, de maneira inacreditável, circulam livremente nas mídias do mundo todo: para ele, por exemplo, crianças mestiças não teriam lugar no céu. Aliás, no paraíso, as pessoas seriam separadas por raça. Para além disso, o “mestre” Li defende que haveria entre nós alienígenas cuja intenção seria destruir a humanidade por meio do uso de métodos científicos. Tais posições apareceram explicitamente na apresentação, quando a voz de um tenor cantava acompanhada por um afinado piano de calda: 

“(...) junto com a degeneração da moralidade, 
O coração das pessoas está se rebelando
Por trás do ateísmo e do evolucionismo
Satanás está à espreita (...)”


Contradizendo seus próprios princípios fundamentais (verdade, compaixão e tolerância), em pleno século XXI, o grupo defende posições contrárias à ciência e apresenta ateus, cientistas e comunistas como inimigos que devem ser combatidos. Falando em inimigos, não há como não mencionar o jocoso ato “Crime sem precedentes”. Supostamente baseada em “fatos reais”, a narrativa retrata uma família praticante do Falun Gong sendo perseguida por agentes de segurança do Partido Comunista, que lhes roubam os órgãos para transplantes forçados. Em outra apresentação, intitulada “Renovação divina no mundo humano”, praticantes do Falun Gong são perseguidos por duas agentes comunistas, “aficcionadas” (sic) por detectar qualquer violação das “muitas restrições do regime”. O símbolo da foice e do martelo nas roupas negras dos comunistas, o enredo e a atuação transmitem a mensagem cristalina: o comunismo é mal, é perverso, deve ser a todo custo combatido. Nesse sentido, sua representação traz personagens más e mal vestidas. O outro lado, porém, é santo, casto, divino e só quer o melhor para a humanidade. Os atores são lindos, sorridentes e o figurino, num colorido vivo.

Não bastasse a narrativa completamente maluca, seus seguidores contam também com uma plataforma de vídeos chamada Shen Yun Zuo Pin (“Shen Yun trabalha”) e o jornal The Epoch Times, veículo ultradireitista conhecido por ser um dos maiores patrocinadores da campanha de Donald Trump, ex-presidente dos EUA, e por publicar conspirações Qanon, as quais sugerem que os democratas participam de uma rede de tráfico internacional de crianças, formada por Satanás, canibais e pedófilos, e que somente o candidato republicano poderia salvá-los de seus feitos. O mencionado jornal inclusive tem ligações com uma rede que teve ao menos 600 contas do Facebook banidas, de acordo com Reuters e Facebook Inc, porque veiculavam conteúdo anti-vacina, fake news e teorias conspiratórias com um patrocínio de 9 milhões de dólares. É notável o investimento pesado que se faz em propagandas. Quem, em Curitiba, não recebeu em seu feed um anúncio da apresentação do Shen Yun que ocorreria em 24 e 25 de março de 2023? Não bastasse uma companhia de artes e um jornal, nem as fartas doações que recebe, conta também com um portal digital “limpo, livre de conteúdo violento, erótico, criminal ou prejudicial” (sic) chamado Gan Jing World (“mundo limpo”), bem como lojas de assessórios, vestimentas e instrumentos musicais. Mas o sucesso do grupo não depende apenas do capital que acumula, mas também de vasto time de voluntários que se dedica à divulgação dos seus ensinamentos e das suas mensagens.

Tais seguidores elegem para si um líder de extrema direita sem qualquer senso crítico, capturados em mídias cujo patrocínio pesado é insistente e permanente, com domínio exímio do uso das mídias sociais e da tecnologia cujo alcance é estarrecedor. Semeando diariamente falas racistas, violentas, anticiências e homofóbicas, estão embebidos de um misticismo religioso questionável que prega o ódio ao comunismo ou a qualquer doutrina, valor ou ideia que lhes seja questionadores. Estimulando cotidianamente uma intolerância frenética, impulsionam até falácias e acusações sem provas sobre supostas fraudes eleitorais. Só eles conhecem a verdade e podem salvar a sociedade da danação eterna! Alguma semelhança com o que enfrentamos no Brasil hoje?

É certo que a intensificação das violações de direitos humanos e dos retrocessos sociais que temos vivenciado nestes últimos anos, especialmente depois do impeachment de Dilma Rousseff, tem um moto-perpétuo cujo combustível é a ignorância e o ódio, que flagrantemente não mede esforços para combater seus inimigos e opositores. Para demonstrá-lo basta notar que, por exemplo, na edição da Folha de São Paulo de 28/03/2023, o ideólogo ultradireitista Steve Bannon apresenta Jair Bolsonaro como o salvador da pátria e que o deputado Eduardo Bolsonaro seria uma opção tão boa quanto o pai, em franca revelação sobre os passos das próximas eleições. A presidência atual do Partido Liberal, do qual faz parte a família Bolsonaro, já anunciou que a meta é triplicar o número de prefeituras em comparação à última eleição. Ou seja, vemos no Brasil o mesmo que tem ocorrido no mundo. A extrema direita tem apresentado o mesmo modus operandi que, aliás, é muito eficiente: a “estratégia Shen Yun”, que consiste em divulgar seus fundamentos antidemocráticos e violentos por meio de uma estética hábil e sedutora nas redes sociais.

Cabe a nós uma escolha: autorizamos, em nome da democracia, uma extrema direita ser contra a própria democracia e, com isso, devassar todas as conquistas e progressos arduamente conquistados ao longo da história; ou nos organizamos para, em alto e bom som, gritar que já basta?

*Ketline Lu é advogada, formada pela Universidade Federal do Paraná e especialista em Direito Constitucional e Direito Ambiental.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Lucas Botelho