Paraná

EDUCAÇÃO E MÉTODO

OPINIÃO. O governo Ratinho e Seed desmontam a carreira docente no Paraná

O método é mascarado de formação e uso de plataformas para esconder os problemas em sala de aula

Curitiba (PR) |
Os burocratas do estado e os apologistas do capital, marcham, em ordem unida, contra a formação intelectual dos professores - Divulgação

No dia seis de março iniciou-se a primeira fase do Programa Formadores em Ação.

A iniciativa ocorre desde 2020 e faz parte da política da Secretaria de Estado da Educação e do Esporte (Seed-PR) de formação continuada dos professores e professoras da rede estadual do Paraná.

O curso online está organizado na forma de grupo de estudos com carga horária de 40 horas e, desde 2022, a participação passou a interferir na classificação de professores concursados para a atribuição de aulas, tanto do seu cargo efetivo quanto da jornada complementar, as aulas extraordinárias.

Ao vincular a participação nesses cursos à classificação dos docentes, a Seed conseguiu com que o número de inscritos saltasse de 25 mil, em 2021, para quase 65 mil em 2022. Em 2023, o número de inscritos para a primeira jornada (mar/mai) já superou em mais de seis mil os inscritos para as três etapas de 2021 e, também, atingiu quase 49% dos inscritos de todo o ano de 2022. Ou seja, somente na primeira oferta do curso, no ano de 2023, já se inscreveram mais de 31 mil cursistas.

Permanecendo a média de inscritos, a Seed poderá atingir, ao final das três jornadas ofertadas ao longo do ano, quase cem mil trabalhadores da educação. O objetivo principal dos grupos de estudo é “incentivar” os professores a usarem as plataformas digitais em suas aulas.

O crescimento no número de inscritos, entretanto, longe de representar uma adesão à concepção de formação da Seed, expressa, ao contrário, que a política de punição está surtindo efeito. Manifestação disso são os relatos dos professores e professoras que não escondem o descontentamento por serem submetidos a tais cursos.

Ao mesmo tempo, em que se inicia a I Jornada do Programa Formadores em Ação, a Seed vem, desde fevereiro, tirando professores de sala de aula para se familiarizarem com as plataformas digitais impostas a toda rede estadual de Educação. Durante esse tempo, docentes de todas as áreas estão sendo reunidos em auditórios confortáveis de universidades privadas, com ar condicionado e cadeiras com almofadas, e manipulando as plataformas digitais em laboratórios de informática cujas estruturas em nada se assemelham aos laboratórios das escolas estaduais.

O governo não tem poupado esforços para impor tais plataformas fazendo com que milhares de professores e professoras usem o seu escasso tempo livre e sua carcomida hora atividade para se converter, sem ganho algum, em “disseminadores” do uso da parafernália digital em suas respectivas escolas.

Recorre a toda e qualquer artimanha para conseguir o seu intento. Assédio, ameaças e mesmo a barganha, compõem a artilharia mobilizada contra os educadores. 

Como é sabido, a escola pública se depara com inúmeras adversidades estruturais e problemáticas de toda ordem. O cotidiano de nossas escolas é atravessado por situações de violência, casos de racismo, homofobia e xenofobia. Se levarmos em consideração as ocorrências fora do ambiente escolar, como a violência doméstica, a negligência, abusos e, ainda, os problemas decorrentes do desemprego e do agravamento da pobreza, fica difícil conceber como que a Secretaria de Educação não empenha o mesmo esforço que tem despendido com o uso das plataformas para debater estas questões.

Fato que nos coloca importante pergunta: Qual foi a última vez que os sucessivos governos promoveram uma formação voltada para refletir os problemas que de fato interferem no sucesso escolar de nossos estudantes? Quantos educadores já não se viram desamparados quando recorreram à burocracia com denúncias de racismo?

Tanto o grupo de estudos quanto os encontros de propaganda das plataformas possuem diversas semelhanças. No entanto, a mais importante delas é a total ausência de reflexão teórica sobre Educação e prática docente. Não se trata de uma mera coincidência, ao contrário, expressa a própria concepção dominante na política educacional brasileira quando o tema é formação de professores.

Desde a aprovação da BNCC (2017/2018) temos experimentado na educação pública estadual do Paraná um processo gradativo de ataque à autonomia docente demarcado pela crescente divisão do trabalho com acentuada separação entre a concepção e a execução da aula, cujo exemplo máximo se materializa no planejamento anual da disciplina já pronto e atrelado diretamente à plataforma de registro de classe online, o RCO. Sem falar, obviamente, dos roteiros autoguiados e das aulas prontas também disponibilizadas na mesma plataforma. No RCO, o professor registra a presença dos alunos e os conteúdos já previamente selecionadas de acordo com o Currículo da Rede Estadual Paranaense (CREP) - alinhado à BNCC, acessa materiais didáticos, como slides das aulas, roteiros e atividades.

A novidade para 2023 foi a vinculação ao RCO de uma plataforma digital de aprendizagem com a função de quantificar o desempenho dos estudantes. Por meio do RCO, o professor, depois de selecionar o conteúdo da aula, disponibiliza para os alunos um link que dá acesso à plataforma com exercícios sobre o conteúdo abordado na aula elencada.

A plataformização da educação estadual do Paraná tem impactado, também, no aumento do volume de trabalho dos professores e professoras, anunciando medidas de intensificação do controle do ritmo e da produtividade, subjugando a ação docente ao controle e à supervisão, com o intuito de atingir metas inalcançáveis como, por exemplo, as exigências de produção de uma redação por mês, via plataforma digital, e com correção semanal por parte dos professores de Língua Portuguesa. Tudo isso para alimentar a base de dados por meio da qual o governo já fiscaliza a "produtividade" docente.

A nova plataforma, cujo uso se estende às demais disciplinas, é mais um mecanismo nessa engrenagem que busca reduzir o grau de controle do docente sobre seu próprio trabalho que, somado à política de formação implementada pela Seed, intenta converter professores e professoras em meros trabalhadores técnicos capazes de utilizar habilmente as plataformas. Há, entretanto, um componente novo no discurso da Seed presente tanto nas reuniões de apresentação das plataformas quanto no Programa Formadores em Ação: há um apelo entusiasmado, e mesmo insistente, para que os docentes se apropriem das ferramentas digitais, incentivando o desenvolvimento das habilidades técnicas para utilizar as plataformas a contento e, ao mesmo tempo, um apelo ao exercício da autonomia na elaboração de atividades para alimentar o sistema e socializar a sua produção com os professores de toda rede.

Por óbvio, essa ação não vem descolada da intenção original de controle docente e produção de estatísticas mediante coerção.  Chama a atenção, no entanto, o fato de que, ao assim proceder, não se retira o conhecimento técnico de utilização das plataformas necessário para a disciplina e produtividade do trabalho, objetivos centrais no processo de plataformização da educação. Ao contrário, tende a promover uma identificação entre os interesses dos sujeitos com aqueles pretendidos pelo Estado. O recurso a uma nomenclatura própria do mundo empresarial como “líder”, “colaborador”, “protagonista”, ou ainda, “embaixadores das plataformas” ou “disseminadores”, reforça essa lógica. Tirar o professor de sala em dia de aula, dando-lhe protagonismo para reproduzir na escola o que aprendeu nos cursos, propagandeando na mídia oficial suas ações para implementar o uso das plataformas, concedendo certificados, premiações e honrarias, são todas artimanhas para fomentar a motivação necessária e a disciplina para o cumprimento das metas, bem como o individualismo e a concorrência.

A expressão de todo esse processo talvez esteja melhor sintetizada na noção de “boas práticas”. Alijado de todo o debate teórico e reflexivo sobre sua ação, bastaria ao professor reproduzir os feitos de outros professores tidos por exitosos. Seria suficiente aos professores se apropriar das experiências socializadas. Na verdade, os cursos que estamos sendo obrigados a frequentar não nos instrumentalizam para os desafios da escola pública e muito menos para a reflexão teórica acerca da nossa prática. Ao contrário, contrapõe-se à teoria, uma vez que centraliza o processo ensino aprendizagem nas plataformas digitais em detrimento dos professores, desvinculando a prática da teoria. Dessa forma, a educação é tomada de assalto pela reprodução do senso comum, assumindo, cada vez mais, uma feição pragmática e utilitária.

Os burocratas do Estado e os apologistas do capital, marcham, em ordem unida, contra a formação intelectual dos professores. Visam atacar a sua autonomia por meio de uma política clara de desintelectualização, convertendo-os em agentes do pragmatismo educacional. Objetivam impedir que professores e professoras se apropriem dos instrumentos capazes de proporcionar a compreensão da realidade contraditória que os cercam, quebrando, assim, a sua capacidade de contestação.

Se as trincheiras do lado de lá já foram cavadas, do lado de cá, já passou da hora dos trabalhadores e trabalhadoras da educação se levantarem em defesa da sua profissão e da educação pública.

No país, a juventude volta a tomar as ruas contra a Reforma do Ensino Médio, imposta pelo governo golpista de Temer e continuada por Bolsonaro.

Nós, professores e professoras, precisamos nos somar a essa luta. Derrotar o Novo Ensino Médio é um passo fundamental em direção às mudanças que queremos ver consolidadas quanto à valorização, respeito e autonomia do magistério.

*Professor de História na Rede Estadual de Educação do Paraná. Doutorando em Educação na Linha de Políticas Educacionais (PPGE/UFPR). Membro do Observatório do Ensino Médio (UFPR).

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Pedro Carrano