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Resenha. Bom Dia para os Defuntos e a força da literatura peruana

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Scorza trabalha com a contradição entre as comunidades andinas, indígenas e campesinas, e o domínio de uma mineradora transnacional - Pedro Carrano
"A altiplanura sempre foi dos caminhantes"

"A Cerca não é obra de Deus, meus filhos. É obra dos americanos. É preciso lutar", página 117.

A literatura não se produz para ser apenas regional. Dificilmente, alguém teria essa pretensão.

Mas, sem dúvida, ela ganha força se sintetiza características universais com traços locais de uma determinada região. Entre várias exemplos de literatura andina produzida em países como Bolívia e Peru, o romancista Manuel Scorza merece destaque neste sentido.

“Bom dia para os defuntos”, é o primeiro romance de uma pentalogia de cinco textos, escritos na breve vida do romancista, que faleceu em 1983. Scorza trabalha com a contradição entre as comunidades andinas, indígenas e campesinas, e o domínio de uma mineradora transnacional - sob cumplicidade da autoridade burocrata local, do juiz, passando pelo latifundiário e chegando na conivência do prefeito.

À diferença de outros autores andinos que trabalharam com esse assunto, Scorza adiciona elementos de realismo mágico, próprio dos anos 70. Lembrando um pouco o enredo de autores como o brasileiro J.J. Veiga, de A Hora dos Ruminantes, na narrativa do peruano o complexo de comunidades andinas, em especial o povoado de Rancas, enfrenta a chegada de uma Cerca, instalada pela mineradora, que passa a limitar a criação de ovelhas dos camponeses – dialogando com uma imagem fundante do capitalismo.

Se em livros como “Socavones de angustia” (Fernando Ramirez Velarde), "Raza de Bronce" (Alcides Arguedas), "Yawar Fiesta - Fiesta de Sangre" (Jose Maria Arguedas), "El Tungstenio (Cesar Vallejo)", entre outros autores bolivianos e peruanos, buscam captar a exploração do capitalismo colonial, no enredo duríssimo das minas de prata, ouro, tungstênio em que os trabalhadores eram literalmente enterrados. Por sua vez, narrada em capítulos curtos e com forma de parábolas, a obra de Scorza adiciona elementos fantásticos para destacar a exploração dos trabalhadores de vários povoados.

"Seu advogado Carranza lhe afirmava que a Cerca abarcaria, mas um milhão de hectares. E sonhou com uma cerca infinita, vislumbrou uma nação encerrada por uma cerca mais comprida que a neve. Um milhão de hectares no Peru? A diretoria ficaria surpresa"

Sem dúvida, entre a leva de autores que citei acima, que abordaram a luta dos trabalhadores andinos contra a exploração da mineração, Scorza desenvolve a trama mais rica. Carregada de prosa, de cultura, de jargões populares, palavrões, situações históricas vividas pelos camponeses peruanos, misturando realismo e ficção. Chega a citar Hugo Blanco, líder da Confederação Camponesa do Peru. Nesse momento em que as comunidades camponesas peruanas estão em levante contra o golpe de Estado que destituiu um presidente de extrato camponês, Pedro Castillo, a obra de Scorza também ajuda a desvendar os mecanismos da elite peruana de intolerância com o povo.

"O rosto dos homens não se tingiu de ilusão. Inflamados pelas palavras de Fortunato, tinham sonhado, por um instante, com a reclamação. O cabo os devolvia à realidade. As autoridades jamais estão. Faz séculos que no Peru ninguém está", página 147.


Esse forte título de Bom dia para os defuntos alimentou meu imaginário por anos, na infância / Divulgação

Confesso que, enquanto resenhista, ainda tenho um tempero pessoal a acrescentar. Esse forte título de "Bom dia para os defuntos" alimentou meu imaginário por anos, na infância, na biblioteca de minha mãe, que foi professora de português. Só viria a reencontrar a obra recentemente na casa de amigos e resolvi encará-la.

Com tudo isso, no entanto, ainda não alcança os grandes autores do gênero. Inevitável citar o García Márquez de Cem Anos de Solidão. Porém, vale o conhecimento da obra de Scorza e, sobretudo, fica em aberto ainda a questão suscitada pelo romancista radicado no Paraná, Otto Leopoldo Winck, numa de suas oficinas literárias: qual seria um realismo mágico latino-americano nos dias de hoje?

O autor

Após terminar seus estudos no Colégio Militar Leoncio Prado, em Lima, em 1945, Scorza ingressou na Universidad Nacional Mayor de San Marcos e se tornou ativista político. Em 1948, aos vinte anos, saiu do Peru na condição de exilado. Só retornou ao país em 1958. Foi o organizador do primeiro Festival do Livro de seu país. Faleceu em acidente de avião, em 1983, com apenas 55 anos e deixando uma obra fecunda.

Fonte: Enciclopedia Latino-americana

Edição: Frédi Vasconcelos