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Bloco de Samba Boca Negra: resgate da memória, continuidade da história

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Bloco de Samba Boca Negra, em frente à casa de Maé da Cuíca, ao fim do cortejo de 11 de fevereiro de 2023 - Foto: Laís Valério Gabriel
Eu mesmo ouvi de um deles: “podem tocar, pelo menos assim a gente se diverte”

Quem diria! Mas não é que o Bloco de Samba Boca Negra voltou? Fundado em 2017, o Bloco é uma iniciativa de Leo Fé, sambista curitibano que, junto a mais gente apaixonada pelo samba do Paraná, procura resgatar a tradição dos cortejos pré-carnavalescos e homenageia a mais antiga escola de samba do nosso estado, a Colorado. Como a bateria da escola era conhecida como Boca Negra, nada melhor do que escolher este nome para o batismo do Bloco.

Pois então, nesse 2023, o Boca Negra voltou ao seu trajeto simbólico, depois do penoso período pandêmico. A proposta do cortejo é uma nítida mensagem de resistência: saindo debaixo do Viaduto do Capanema, o Bloco segue cerca de 500 metros até chegar à frente da casa de Maé da Cuíca, como era conhecido o fundador da Colorado, Ismael Cordeiro da Silva.

Fazer o percurso boca-negra é reencontrar a história do samba de Curitiba. Entre o ponto de encontro, sob o viaduto e localizado na avenida Dr. Dário Lopes dos Santos, e o de chegada, na casa de número 23 da rua Pedro de Araújo Franco, residem todas as glórias e infortúnios da cultura negra paranaense. Na verdade, é uma síntese de nossas contradições.

Mas o samba que nasceu aqui na Vila
não morreu, ainda respira
Está pedindo para voltar.
Ao longe escuto
Tamborins repicando
É o samba que está voltando
Por que aqui é o seu lugar

(“Saudade da Vila Tassi”, de Maé da Cuíca e Didi do Cavaco)


A Vila Tassi e a questão ferroviária

No primeiro meado do século XX, a região era conhecida por Vila Tassi. Ali morava a classe trabalhadora de Curitiba, especialmente ligada à rede ferroviária. Nos anos de 1940, por lá foi fundada a Colorado e, no fim desta mesma década, a Vila foi despejada. Maé da Cuíca canta essa história em samba de 1949: “quem diria que a Vila Tassi ia se acabar, quem diria que somente três casas iriam ficar...”

A região está toda marcada pela questão ferroviária e dá muito em que pensar. As estradas de ferro apareceram ainda na passagem dos anos de 1870 para os de 1880, no Paraná, chegando a Curitiba em 1885. A partir daí, toda uma história pode ser contada sobre o assunto. Para citar só um exemplo, talvez o mais importante, basta lembrar que a Guerra do Contestado (1912-1916) teve na linha do trem um de seus principais motivos, pois o capital ferroviário britânico, com o aval da república, se apropriava da terra dos caboclos da fronteira entre Paraná e Santa Catarina para construir a ferrovia e fazer a concentração fundiária característica do conflito.

Entre as décadas de 1920 e 1930, os trabalhadores ferroviários marcaram forte presença em Curitiba, a tal ponto de o clube de futebol Britânia Sport Club (fundado em 1914) sofrer uma cisão para abrigar trabalhadores da antiga rede ferroviária. Surgia, assim, o Clube Atlético Ferroviário, em 1930, que teria sua camisa “colorada” e sua torcida “boca negra”, em evidente referência a sua base social proletária e afrobrasileira (em 1971, o Ferroviário, agora fundido ao Britânia e ao Palestra Itália, faria aparecer a Colorado Esporte Clube). Em plena Curitiba, é sempre bom lembrar!

Já no ano de 1942, com o governo Vargas a todo vapor, ocorreria a fundação da Rede de Viação Paraná-Santa Catarina, uma espécie de estatização das estradas de ferro, antes de propriedade do capital privado e praticamente abandonadas por conta da luta de classes brasileira e da conquista, mesmo que parcial, de direitos pelos trabalhadores. É no meio dessa história, ainda, que surgiria o estádio Durival Britto e Silva, inaugurado a 1947 e tendo recebido o nome do militar que fora superintendente da rede ferroviária.

Parando para pensar e pensando em toda essa história, chegamos à destruição da Vila Tassi, o berço de nosso samba, decorrente do mesmo processo que impulsionou sua própria cultura. A rede ferroviária traz seus operários que fundam clube e escola de samba, mas acabam sendo expulsos dos territórios que lhes deram vida. O clube é de 1930; a rede ferroviária estatizada é de 1942; a escola de samba é da passagem de 1945 para 1946; o estádio é de 1947; e o despejo da Vila Tassi ocorre por volta de 1949. Uma linha histórica trágica, não é mesmo?

 

A Vila Capanema e a questão periférica

Hoje, a região é conhecida como Vila Capanema. O Capanema é o herdeiro direto da Vila Tassi e, se for possível uma licença poética, é de seu ventre que nasce a Vila Torres (antes conhecida como Vila Pinto, a última favela da região central de Curitiba). A nomeação do bairro remete ao Barão de Capanema, proprietário de toda aquela área, no século XIX. Curiosamente, o barão foi o bisavô do mais longevo ministro da educação da história do Brasil, o getulista Gustavo Capanema. A história é mesmo farsesca: as terras de Capanema passam a receber o nome da família Tassi, que se tornaria uma das novas proprietárias do terreno. Com a industrialização da capital paranaense, já no período getulista, a região renomeia-se como Capanema, o que era conveniente, pois lembrava o ministro da educação. À custa da expulsão da Vila Tassi, é lógico. Não tardaria a voltar a favela ao Capanema. No ano de 1976, novo despejo e, na década de 1980, urbanização de uma de suas partes limítrofes, a ocupação às margens do Rio Belém, onde hoje fica a Vila Torres. Para finalizar, como não é de surpreender, em 1992 o bairro muda de nome de vez e passa a se chamar Jardim Botânico.  A propósito, ao lado, fica o bairro Rebouças, homenagem aos irmãos negros que se tornariam engenheiros abolicionistas e que seriam responsáveis pelo projeto da estação ferroviária da linha Curitiba-Paranaguá...

Entre os decênios de 1950 e 1960, ali se instalaria o Moinho Anaconda e dois viadutos seriam construídos na região: o Colorado e o Capanema. O Viaduto do Capanema é o exato ponto de encontro do Bloco de Samba Boca Negra que, como se pode ver, hoje retoma toda essa história com um simples e óbvio intuito: o de dar visibilidade à história negra e trabalhadora da cidade.

Atualmente, o moinho e, embaixo dele, o viaduto sombreiam um armazém que vende produtos a preços mais populares, bem como um restaurante popular, com subsídios públicos. Muitas pessoas, em situação de rua ou não, ficam à espera das refeições gratuitas que o assim chamado complexo de segurança alimentar oferece. E foi neste exato cenário que o Bloco Negra realizou sua batucada, no sábado anterior ao do carnaval, dia 11 de fevereiro, às três horas da tarde.

 

O Bloco de Samba Boca Negra e a questão cultural

Tendo participado como cavaquinista do Bloco, vi seus integrantes pedindo licença à população que usava o viaduto como abrigo. Ao contrário de nosso receio, eles agradeciam poderem estar escutando os sambas. Eu mesmo ouvi de um deles: “podem tocar, pelo menos assim a gente se diverte”.

Sob o viaduto, transcorreu cerca de meia hora de samba paranaense. Várias brasas de compositores da Colorado foram entoadas, a começar pelos sambas do Maé, por certo. É verdade que não estávamos em muitos, mas os que ali se encontravam carregaram com vigor a emoção de relembrar o “bom do samba no Paraná”, como diria outro samba de seu Ismael. Por isso, salve, Leo, Carol, Napa, Ber, Thiagão, Paulo e Melina!

Já no cortejo, os batuqueiros – com seus surdos, repiques, pandeiros e tamborins – entoaram o samba com o tema do ano de 2023, “Enedina Alves Marques, a engenheira”, composição de Leo Fé e Fernando Ribeiro. A homenageada foi simplesmente a primeira engenheira negra do Brasil, formada em 1945, pela Universidade Federal do Paraná. 

Nos anos anteriores, aliás, também foram eleitos sambas para conduzirem o Bloco. Em 2017, ano da fundação, a escolha simbólica foi a do samba-enredo “Salve a liberdade”, composto por Maé da Cuíca e cujo compasso guiou a Colorado, na avenida do carnaval curitibano, em 1985. Justa homenagem à escola extinta como associação, mas viva nos corações dos sambistas curitibanos. Por sua vez, no ano de 2018 – último antes da pandemia, já que em 2019 não foi possível ao Bloco sair –, a composição foi assinada pelo fundador: “Presença negra desde a primeira imagem”, de Leo Fé, é um samba antológico para contar a história da cidade que despreza o valor das mãos que construíram a cidade, mãos “de pele escura que não estão nas placas, muito menos em molduras”. Não ter sido gravado ainda o samba é um sinal do absurdo tratamento que damos a nossa cultura. Um viva a Leo Fé que leva (com a mão!) nas costas o ofício de partideiro, militante cultural e compositor (compositor, por sinal, que conheci nas rodas de Samba do Compositor Paranaense, quando ocorriam no Teatro Universitário de Curitiba, onde ouvi dele, pela primeira vez, a história do Bloco).

Voltando ao samba em honra a Enedina Marques, foi com ele, cantado por 500 metros e atravessando o trânsito curitibano, que o Bloco chegou à frente da casa do Maé, após avistar uma a uma as três casas que sobraram da Vila Tassi, tal como versado pelo mestre. A rua – que no mínimo deveria ser rebatizada como Ismael Cordeiro da Silva – estava de portas abertas para nós e seus moradores, aquiescentes. O cortejo se encerrava, com o estádio se erguendo do outro lado e a casa 23, de Maé, abandonada, não só testemunhando a homenagem, mas depondo em favor da necessária transformação da região em um centro cutural do samba, com praça, busto, museu e política de resgate da memória e continuidade da história coletiva de tantas e tantos bambas. Um verdadeiro santuário da cultura negra proletária de Curitiba, portanto. Se, dessa vez, “nosso Bloco vem saudar e prestar a homenagem àquela que mostrou grande valor”, como é o caso da engenheira Enedina Alves Marques; que, nos próximos anos, o Bloco comemore o reencontro de Curitiba com sua história, no reduto sagrado do samba da Vila Tassi. E que o futuro assim seja, com muito axé!

*Ricardo Prestes Pazello é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e integrante do Bloco de Samba Boca Negra.


Para saber mais, acesse:

  • Bloco de Samba Boca Negra (Instagram)

https://www.instagram.com/blocodesambabocanegra/ 

  • Bloco de Samba Boca Negra (Facebook)

https://www.facebook.com/blocobocanegra 

  • Bloco de Samba Boca Negra (Youtube)

https://www.youtube.com/@blocodesambabocanegra3275 

  • Bloco de Samba Boca Negra (Soundcloud)

https://soundcloud.com/user-389965725 

  • “Colorado: a primeira escola de samba de Curitiba”, livro de João Carlos de Freitas

https://issuu.com/banquinho/docs/colorado_ 

  • “Maé da Cuíca: da Vila Tassi ao Museu Paranaense - Memória, Patrimônio e Carnaval”, artigo de Caroline Blum

https://eventos.ufpr.br/semanarq/semanarq2017/paper/viewFile/1075/408 

  • “O samba voltando para o seu ‘marco zero’”, texto de Bernardo Pilotto para o Jornal Batucada

https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=pfbid037BrrU4o8tdKTPGUK6YYm8oPnawpV4VukEsgL5DpB6oYdeDMt99jj9nkhjGXy2gKGl&id=533683836766956 

  • “Maé vive nas rodas de samba de Curitiba”, texto de Ricardo Prestes Pazello para o Brasil de Fato Paraná

https://www.brasildefatopr.com.br/2017/12/22/coluna-or-mae-vive-nas-rodas-de-samba-de-curitiba 

 

Edição: Lucas Botelho