Ceará

Visibilidade Trans

Entrevista | “O mês de janeiro demarca um momento de conquista do movimento trans do Brasil”

Luma Andrade conversou com o Brasil de Fato sobre políticas públicas para pessoas trans no Brasil com os novos governos

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |

Ouça o áudio:

Essa data demarca o momento de conquista do movimento trans do Brasil e, principalmente, travesti porque são aquelas que são as pioneiras dentro da luta por direito e cidadania. - Foto: SPS-CE

No dia 29 de janeiro é comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Trans e durante todo o mês, diversas ações são realizadas para lembrar e pedir a garantia da proteção social à população transexual e travesti do Brasil. Mas será que estão sendo garantidos os direitos da população transexual? Será que elas estão ocupando espaços e cargos institucionais? Existem políticas públicas para garantir o bem-estar das pessoas transexuais? Os crimes de transfobia estão diminuindo? Para responder essas e outras perguntas o Brasil de Fato conversou com Luma Andrade, primeira travesti com doutorado do Brasil e docente universitária, atualmente Diretora do Instituto de Humanidades da Unilab. Confira.

No dia 29 de janeiro é comemorado o dia nacional da visibilidade de trans. Qual é a importância dessa data?

Essa data demarca o momento de conquista do movimento trans do Brasil e, principalmente, travesti porque são aquelas que são as pioneiras dentro da luta por direito e cidadania.

Nós tivemos um bom tempo da nossa história onde não tínhamos a possibilidade de existir na sociedade com respeito, com dignidade. Nós não poderíamos ocupar os espaços das ruas, nós éramos presas, nós não poderíamos estar na família, por exemplo. Eu fui expulsa de casa e tive que me prostituir para poder sobreviver porque a família não aceitava, porque a religião não aceitava, porque as escolas não me queriam, mas eu insisti em lutar pela escola e resisti todas as tentativas de expulsão que eu sofri por conta da minha singularidade, porque em torno dos 15 anos eu começo meu processo de mudança, então assim, eu pude vivenciar essas dificuldades dentro do espaço escolar em uma época, ainda em períodos pós ditadura, que foram muito difíceis e nós tivemos que superar essas dificuldades com as lutas. E aí nós temos as nossas guerreiras ancestrais que abriram espaço, que sofreram nas ruas, que foram espancadas, que foram presas para poder sobreviver. 

Eu ainda peguei o tempo que quando nós aparecíamos nas ruas nós éramos xingadas, ouvíamos um batalhão de “pei”, como se fosse uma metralhadora. O que é isso? Simbolicamente é um assassinato. Mesmo que seja algo verbalizado, mas implica um desejo de exterminar aquele corpo, aquela existência. Jogavam tomate, jogavam ovos, gritavam, ou seja, quando nós aparecíamos em público, nós éramos simplesmente violentadas, e isso era inaceitável porque nós também somos cidadãos, mulheres e homens trans, travestis e transexuais são pessoas que têm também seus direitos garantidos na nossa Constituição. Então aquilo era inaceitável. Daí subverter tudo isso e chegarmos em um momento histórico em que se há necessidade de dizer: “Olha, nós precisamos dar uma visibilidade a essa população que historicamente foi discriminada”.

É uma população que foi negado o direito de estar na escola, porque nós tivemos casos por exemplo, em São Paulo, que foi proibida a presença de pessoas travesti, transexuais LGBTQIA+, não poderíamos ocupar esses espaços, principalmente, as pessoas travestis e transexuais e isso implicou muito em um déficit muito grande de acesso à educação, que é um direito fundamental. Daí quando você bloqueia esse acesso ao direito a algumas pessoas você impede que essas pessoas consigam se desenvolver dentro da sociedade com a normalidade que as outras pessoas também têm acesso, as pessoas heterossexuais, brancas que estão dentro desse contexto todo de uma conjuntura e de uma cultura em que elas têm todo o acesso a tudo.

É importante, é relevante, não é querendo superar ninguém, mas é uma forma de dizer “olha precisamos, ter uma atenção”. E, obviamente, não pode se limitar a esse momento do dia 29 de janeiro, tem que ser uma atividade que tem que ser contínua em nossas vidas.

A questão da violência contra as pessoas trans e travestis, em comparação ao passado mudou alguma coisa? A gente avançou em algum ponto na questão do combate a essas violências?

Nós não podemos negar que houve uma mudança, até nas ruas, pois você consegue ver várias pessoas trans, travestis homens e mulheres trans transitando nas ruas, nos centros das cidades, durante o dia. Antes nós não tínhamos essa possibilidade, o trânsito das pessoas travestis e transexuais eram noturnos, eram pessoas de vida noturna, exclusivamente porque não poderiam ocupar os espaços da rua durante o dia. E você veja que coisa, o corpo, que ao mesmo tempo que é indesejável, ele é desejável, porque eu vivenciei a prostituição, como eu disse antes, eu fui expulsa de casa e eu tive que vencer a prostituição, e por que eu tive que vencer a prostituição? Ora eu não tinha família, eu não tinha como trabalhar dentro da sociedade, dentro de trabalhos legalmente estabelecidos pela sociedade, eu tinha que fazer alguma coisa, e o que eu tinha disponível era meu corpo, então comercializei o que eu tinha, que era o corpo, e olha que é um corpo procurado, é um corpo que é desejado. Quando eu falo o corpo não é só o meu, é das pessoas travestis e transexuais.

É interessante que os maiores consumidores são exatamente aqueles que mais criticam e que produz ações contra essa população. O que é uma contradição, mas obviamente a própria psicologia vai explicar que é uma tentativa de se distanciar daquilo que se deseja. 

Nós tivemos avanços. A discussão da temática, apesar de toda dificuldade e o retrocesso que nós tivemos nos últimos seis anos, porque não foram só nos quatro anos, nós estamos nesse sofrimento, quem faz parte da diversidade, desde o golpe da presidenta Dilma. Obviamente eu tenho algumas críticas à questão da postura da presidenta Dilma, mas eu creio que não foi correto o que fizeram com ela. Colocar o golpe e retirar exatamente ela do exercício de um cargo que foi colocado pelo povo, por razões sem nenhum sentido. Eu sei que eu tenho as minhas críticas em relação ao kit anti homofobia, que deveria já ter sido trabalhado nas escolas como forma de cidadania.

Eu sei que é muito difícil, porque nós temos um Congresso conservador, nós não avançamos em nada dentro do Congresso Nacional que envolve as políticas das populações LGBTQIA+, o que nós temos são gambiarras produzidas pelo STF ainda, citando um pouco Berenice Bento, o termo “gambiarra”, porque não é nada que é seguro, você muda ali o STF, todo o pensamento pode mudar, a questão da união civil entre pessoas do mesmo sexo, o caso do reconhecimento da identidade de gênero das pessoas travesti e transexuais, mudar o gênero e mudar o nome dentro dos documentos oficiais, equiparar a LGBTQIA+fobia, inclusive a transfobia como um crime de racismo... Então são gambiarras que o STF, percebendo que essa população não poderia ficar desamparada, acaba criando um artifício legal para poder proteger, mas por pura indisposição do nosso Parlamento de poder deliberar legislação que reconheça a nossa cidadania, que respeite os nossos direitos, que isso deve ser uma pauta que nós devemos lutar sim. E tem a importância dessa representatividade que hoje nós temos, por exemplo, duas deputadas federais que são mulheres trans, de luta.

Como estão as redes de apoio e políticas públicas para a população trans e travesti no Ceará?

Nós tínhamos ligado diretamente à Secretaria, eu não me recordo o nome, acho que é a Secretaria de Ação Social, ou algo dessa natureza, nós temos ainda uma coordenadoria LGBTQIA+, onde essa coordenadoria é responsável de acompanhar as políticas, as atividades da população LGBTQIA+. Então nós tínhamos esse setor dentro do governo do estado para poder desenvolver essas políticas a nível tanto da capital quanto do interior. Obviamente uma equipe pequena para dar conta do todo, mas de certa forma, nós tínhamos esse dispositivo, que também desenvolvia atividade juntamente aos outros órgãos governamentais e não governamentais buscando pautar a questão LGBTQIA+, em especial, às pessoas travestis e transexuais, homens e mulheres trans, por serem aquelas que sofrem com o maior número de violência e assassinatos.

Hoje nós temos a surpresa que o estado do Ceará, no dossiê da Antra basicamente é o primeiro colocado em número de assassinatos. Então assim, é um dado muito triste, mesmo tendo uma política para esse desenvolvimento ainda falta algo mais. E esse governo atual que assumiu, o governo Elmano, traz uma outra tática, vamos dizer assim, para poder fazer esses enfrentamentos, que é criar uma secretaria, algo que é inédito no Brasil, uma secretaria que envolve a cidadania e diversidade, que está à frente a Mitchelle Meira, que é uma militante muito forte, uma mulher lésbica militante que sempre esteve com o movimento LGBTQIA+ e tem desenvolvido e sempre desenvolveu um excelente trabalho onde esteve.

Quais as expectativas dos novos governos, tanto Federal como estadual?

Com os governos que nós temos, tanto Federal quanto estadual, estamos com uma perspectiva muito positiva, até porque está alinhado com as nossas lutas. São governos que pautaram as nossas lutas e que se posiciona como nós sendo importantes também para essa sociedade, e que nós merecemos a nossa cidadania. Então assim, a esperança e a expectativa são das melhores possíveis.

O governo Federal traz também dentro dos direitos humanos uma secretaria, que antes era apenas uma diretoria, e hoje é uma secretaria dentro do Ministério dos Direitos Humanos. Isso é um avanço em termo hierárquico, em temo de ter uma participação nas tomadas de decisão, porque uma secretaria tem um maior poder do que uma diretoria, e antes nós tínhamos uma diretoria no governo Federal e hoje nós temos uma secretaria, inclusive ocupada por uma pessoa com consciência política, uma pessoa que se autonomeia travesti com consciência política, de luta, do movimento. Então isso aí é muito importante. É dizer assim: “Vocês vão cuidar daquilo que é de vocês. Vocês vão poder opinar e poder sinalizar naquilo que é importante para vocês”. É dar o espaço de nós podermos tratar das nossas questões com nossa presença.


Em ato público realizado no último dia 12, Luma Andrade, primeira travesti doutora do Brasil, denunciou casos de perseguição e transfobia na Unilab / Divulgação

Luma, recentemente você fez uma denúncia de que vem sofrendo casos de transfobia em uma instituição de ensino. Gostaria que você falasse com a gente sobre esse caso.

Não é normal o que tem acontecido comigo desde que fui eleita diretora, desde o pleito eleitoral que concorri para diretora do Instituto de Humanidades da Unilab. Não é normal. Algo não está dentro da conjuntura legal.

Eu me candidatei, eu poderia ser candidata como qualquer outro professor da universidade e logo quando me candidatei quem era meu concorrente era, na época, o diretor do Instituto, um homem cis, hétero, branco, toda a conjuntura que nós sabemos, mas a nossa comunidade queria mudanças, principalmente com o momento que nós estávamos vivendo, de um governo muito difícil. Isso foi ano passado, por volta de julho de 2022. Então eu me candidato e coloco como vice alguém que estou alinhada, que é um professor negro, gay e pai de santo, então é uma postura que já quebra. Uma travesti com deficiência e um homem negro, gay e pai de santo.

Então isso foi muito pesado para algumas pessoas tendo essa conjuntura de direção. Isso foi muito perceptível, teve muitas acusações de que o pleito estava com problemas, e possivelmente causados por mim, pessoas ligadas a uma certa ideologia, criando situações que não existiam, reclamando que eu tinha sido convidada pelos estudantes para participar da posse do DCE, quando foi antes do processo eleitoral, o edital não tinha sido lançado. Criando acusações de que eu estava sendo beneficiada pelo movimento estudantil, ora, eu sou uma pessoa querida pelo movimento estudantil, eu sou uma pessoa querida pelos estudantes e eu recebi o convite e eu fui participar daquele momento, até porque eu não estava como candidata.

Alegaram também que o sindicato que estava participando do processo não poderia ter participado, mas quando eles participaram do processo de eleição para a reitoria não teve nenhum problema. Acusações que foram feitas absurdas que a gente sabe qual é a lógica ideológica desse povo, então assim, nós estamos vendo o que tá acontecendo, são criações absurdas, é viver um mundo muito paralelo onde cria coisas que a gente fica assim “Nossa, o que foi isso?”. No entanto, tudo aconteceu dentro do estabelecido pelas comissões e, inclusive, chegou ao ponto que meu opositor publicou uma mensagem falando das supostas acusações do processo eleitoral e desistindo do processo. Desistiu, mas não oficializou. O vice também, que estava ligado ao mesmo desistiu também e não oficializou e a comissão seguiu o processo como se tivesse candidato, até porque depois poderiam recorrer. E eu venci o pleito.

Antes de vencer o pleito, se não me engano, o que estava concorrendo comigo foi nomeado pró-reitor da própria PG, ou seja, ele sai, desistiu de tudo, inclusive pediu a exoneração do carro que estava, mas logo em seguida foi nomeado pró-reitor. Pasmem, todos os TAEs, Técnicos Administrativos em Educação, são três técnicos em educação, que tinha no Instituto, todos foram removidos para a mesma pró-reitoria do senhor ex-diretor. Todos. Não ficou nenhum.

Quando entrei, no dia 24 de agosto, eu levei toda a situação através de processo no sistema para a reitoria, colocando a situação que eu tinha recebido, colocando que estava sem TAEs e precisava de TAEs para poder desenvolver o trabalho, e é dada a justificativa de que estava dentro do período eleitoral dos três meses que antecede a eleição e não se poderia remover e que os TAEs tinham sido removidos por questões de saúde. Atualmente teve um manifesto de uma servidora do setor de saúde que disse que aquela remoção foi irregular porque não seguiu os tramites corretos. Então é um processo sigiloso, mas aí a justiça tem que ver o que tem dentro desse processo, o que de irregular foi cometido, por que esses TAEs foram removidos? Qual é o sentido desses TAEs serem removidos? Porque se não tiver justificativa está explícito que houve uma tentativa de boicote com a gestão atual e especial com a minha pessoa. 

Para receber nossas matérias diretamente no seu celular clique aqui.

Edição: Camila Garcia