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Reexistências negras: Perfil de Carol Dartora

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“Somos super-representados na fome, na miséria. A gente não aguenta mais: temos sede de ser feliz”, afirma Carol - Leo Silva/ Arte de Edna Thramm
"A minha maior dor era a exclusão”

“Há pessoas que, assim como eu, cresceram vendo sua cor da pele e seu cabelo sendo depreciados. Foi nesse vazio que a gente entrou para preencher e a representatividade é a maior riqueza dessa construção.”

Erguer o punho de luta sem interditar o sorriso na face são gestos que, de tão cotidianos, podem ser lidos como uma assinatura da personalidade de Carol Dartora.

Seu ativismo antirracista não anuncia resistências em abordar temáticas difíceis pelo viés das possibilidades quando reivindica um futuro com a superação do racismo; um cenário que, até pouco tempo, era visto como utopia, já que os contextos e narrativas empurraram a população negra para “a pauta mais sofrida do dia”.

É diante da versatilidade dos cabelos crespos, com um sorriso largo, peças despojadas em tons vibrantes na estética jovial de sua pele retinta que Carol, intencionalmente, comunica o que sua existência aspira imprimir no mundo: o direito e o acesso da população negra à felicidade, um débito histórico do Brasil com seus semelhantes.   

Ana Carolina de Melo Dartora é paranaense e, com certa frequência, é categórica em seus discursos ao anunciar que é uma nativa curitibana. O gesto carrega um protesto contra a dor da segregação já que, ao vender enredos eurocêntricos, Curitiba marginaliza o que está fora deste contorno.

Sua afirmação tem eco ao representar pessoas que viveram sem o direito de colecionar referências e que, por consequência, desenvolveram pouca identidade com símbolos que retratam esse território. 

Aprendeu, de forma prática, a respeito das sutilezas do racismo cotidiano, ressignificou cicatrizes deixadas por ele em sua subjetividade e, hoje, desmistifica fatos inverídicos atrelados ao seu povo e à sua história. “Dizem que sou rica, que gosto de estar em locais com pessoas brancas. Não! Eu não sou e eu não gosto! Venho de família simples e minha luta é para que entendamos que esses espaços também são nossos", afirma, confidenciando as tentativas de deslegitimação que utilizam como alicerce um pretexto desinformado sobre sua origem.

Peregrinações

Carol é filha de dois servidores públicos: a mãe professora do magistério e o pai, motorista do Tribunal de Justiça. Na infância não foi poupada da saga comum às famílias pobres e negras que andam de um lado a outro na busca do aluguel mais barato. Entre as moradias citadas destaca as que mais lhe marcaram: o Conjunto Buriti, próximo ao CMEI Santa Quitéria e a Vila Guaíra, onde residiu numa casa de fundo e viu sua família fazer a pausa mais prolongada de suas peregrinações. Reconhece a segurança oferecida pelo serviço público e afirma que encontrou, mesmo com dificuldades, alguns poucos (poucos) centímetros a menos de desafios, em espaços que lhe garantiram maior trânsito e deslocamento social, especialmente por ser uma cidade com segregação socio-espacial. Por isso, defende que “a luta contra o racismo passa, inevitavelmente, pela pauta de habitação e moradia”.

Dartora cresceu, em todos os sentidos, em uma família cujo engajamento na luta de classe englobava o eixo de raça e viu começar - no próprio lar -  a organização coletiva, onde construiu as primeiras narrativas de si. Por coincidência, ou não, tem na data de seu nascimento uma mensagem emblemática sobre sua luta: Primeiro de Maio, dia em que proletários de mais de 80 nações celebram as conquistas de direitos trabalhistas e, como quem entende o recado, também construiu sua atuação no Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em 1980, apenas três anos antes de seu nascimento. 

Em sua família estavam reunidas suas principais referências de beleza e de autoestima. Considera que foi uma criança feliz até completar os nove anos de idade.  Isso porque, após essa fase, seu amor próprio foi demolido. “Cheguei na escola e era como se tudo aquilo que eu tinha reunido como referência, não tivesse nenhum valor. Tive uma infância feliz, mas na minha adolescência a minha autoestima foi destruída”. Carol retira o sorriso do rosto enquanto relembra o desafio de viver com a não representatividade de sua negritude, destacando dificuldades de inserção em certos grupos e a rejeição nas relações afetivas, num cenário em que a concepção estética estava - e ainda está - alicerçada nos parâmetros da branquitude. “Teve um CMEI em que eu cheguei a ser jogada, literalmente, em uma lata de lixo e, nessa mesma escola, apanhei de uma professora”, conta recordando a exaustiva atuação de sua mãe ao bater ponto na escola para denunciar os recorrentes casos de racismo.

Quanto mais crescia, mais se envergonhava desses incidentes e passou a escondê-los para evitar que seus familiares “batessem boca” em sua defesa. Para suportar, anestesiou a pele e se distraiu para dentro em uma fuga interna a fim de resistir àquele cotidiano. Como consequência, os anos de sofrimento psíquicos resultaram num diagnóstico de depressão, o que enfraqueceu o vínculo com os poucos amigos e restringiu suas saídas a um único trajeto: de casa em direção à escola e vice-versa, com raras exceções. Ao ser questionada sobre como conseguiu ser resgatada dessa condição, é capturada por uma lembrança. A cena mais parece um pedido de licença para reviver, com calma, uma recordação.

Na sequência, um sorriso harmoniza o rosto, os olhos lacrimejam e ela responde com convicção: "Foi o amor. A potência do amor foi o que me trouxe de volta”. As suas potencialidades e capacidades de enfrentamento foram evocadas quando, antes mesmo de completar quinze anos, recebeu nos braços um bebê com poucos dias de vida e, a partir daquele instante, redirecionou o foco da sua atenção. Ao descrever a incumbência de cuidar do irmão mais novo para auxílio na rotina dos pais, apresenta propriedade materna como quem parece ter dado à luz, ou melhor, nesse caso, recebido a luz.

A sua rotina incluía - para além da escola - uma lista de afazeres, que iam desde as trocas de fraldas, as papinhas e as canções de ninar, até o auxílio nas tarefas escolares, dinâmica narrada como quem demonstra não ter  sentido os anos passarem.

Leituras, questionamentos, posicionamentos

Estava num processo de auto-cura ao cuidar da sua pessoa preferida no mundo, um garotinho - também negro - cuja troca oferecia a segurança necessária para ser vulnerável, para sentir, se recompor e reagir à racionalidade cotidiana. Sobre isso, Carol revela que tem lido a obra “Tudo sobre o amor: novas perspectivas”, um livro da autora estadunidense bell hooks. É, também, sob esse olhar que identifica, em seu processo, a importância do afeto irradiado por um cordão umbilical e defende que recebeu a imunidade para derrubar as fronteiras que separavam a luta e o riso. 

Carol já estava na juventude quando agarrou a existência com as próprias mãos e retornou à cena. Nesse período já havia lido “O mundo de Sofia”, um romance escrito por Jostein Gaarder. Se encantou e tomou para si perguntas feitas pela personagem principal: “quem é você, de verdade? ” e “qual a origem do mundo?". Quis responder a partir da sua ancestralidade e, para investigar, optou pelo curso de História, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). 

Desse lugar, observou narrativas históricas, com pavor e preocupação. Estava diante de um vazio quanto à memória coletiva da cultura negra, um rastro premeditado das relações de dominação, resultado de uma sociedade eugênica que anula qualquer saber e conhecimento produzido por grupos “indesejáveis". Havia urgência em recontar a história “oficial”. Urgência em reexistir. Agora, historiadora e professora, renunciou ao lugar de “objeto de estudo” para assumir o posto de produtora de conhecimento, realizando pesquisas e levantando debates que se relacionavam com trajetórias antes postas à margem. A partir da sala de aula passou a propagar conhecimentos científicos e filosóficos, apoiada por narrativas afrocentradas, com conceitos complexos e libertadores, destacando a potência e a expertise de seu povo. A sua voz ganhou eco e os espaços, automaticamente, foram ampliados. A mais escandalosa, entre suas tantas denúncias, foi a ausência de uma mulher negra na cronologia política de Curitiba e do Paraná. Carol passou a repetir a informação em todos os espaços, desde conversas entre amigos até eventos formativos em universidades, sindicatos, movimentos ou coletivos.

Primeira mulher negra vereadora de Curitiba

Ela que, a princípio, se dispunha enquanto pesquisadora e intelectual, sempre embasada por dados, gráficos e estatísticas, deu mais um estímulo ao partido e a movimentos negros para a construção de uma candidatura que pudesse alterar esse cenário. Após algum tempo de ebulição, em 2020, seu nome estava entre as escolhas anunciadas para o pleito. O resultado chegou na urna e, com mais de oito mil votos, Carol Dartora foi eleita a primeira mulher negra vereadora de Curitiba. 

O ineditismo também esteve nos desafios encontrados na Câmara Municipal de Curitiba. Coube ao seu grupo supor quais seriam os reveses de uma negra dentro de um recinto com mais de 300 anos de história e que, até a sua chegada, não contava nem sequer com vestígios de alguém como ela - mesmas dores, semelhantes vivências - e que pudesse lhe explicar, minimamente, como seria recebida naquele ambiente. Vale lembrar que essa mesma Câmara tem em seu histórico  institucional registros que sustentaram a escravatura  e, em 1924, foi a responsável por  nomear capitães-do-mato para a caça aos chamados calhambolas, ordenar a fabricação de carimbos com a letra “F” para impor o ferro em brasas na pele dos escravizados em fuga e há, inclusive, um registro do alvará em forma de lei, no Arquivo Municipal, em que Francisco Negrão registra a seguinte afirmação: “O negro não pertence a espécie humana: é um animal”. É somente após 277 anos depois dessa declaração que essa mesma casa legislativa se direciona a uma mulher negra com o pronome de “Vossa Excelência”, respeitando-a enquanto autoridade local e garantindo, pelo menos regimentalmente, vez e voz, ainda que diante de tentativas de anulação. “Só se elegeu por ser preta" ou “se escorou na pauta racial” foram mantras declamados até pelo “fogo amigo”, na busca por anular a importância da sua representatividade. 

“Há um peso de chegar em um lugar em que sou a primeira, a única. As dores, as denúncias que eu trago não são conhecidas por ninguém. O que foi essa luta absurda de dizer para Curitiba que aqui tinha que ter cotas?” Afirma em desabafo. Ao perceber a ignorância e o obscurantismo acerca das pautas que abordava nas sessões, optou por assumir um lugar professoral na política. Ao subir na tribuna para fazer uma fala, pensava: “vai lá e dá uma aula, fala do que você sabe”. Tomando como bússola a educação, ousou reformular o imaginário dos colegas acerca de seu povo, questionou segmentos que desenham a marginalização de pobres e periféricos e incentivam o acúmulo de pretextos para a desvalorização desses grupos. Abordou as potencialidades das mulheres negras que desempenham múltiplos papéis na sociedade e rebateu a hipersexualização desses corpos. Denunciou o racismo estrutural e o empobrecimento como projeto político  de super-representação da população negra nos míseros índices de desemprego e falta de acesso aos serviços de saúde pública, quadro agravado durante a pandemia do novo coronavírus.  

Simultaneamente, foi propositiva.  Anunciou a elaboração de políticas públicas de enfrentamento a estes cenários no âmbito municipal. Entre seus feitos, destaca-se a aprovação do projeto de cotas que reserva 20% das vagas em concursos e processos seletivos à população negra e povos indígenas, de forma progressiva. Carol reconhece a relevância social, cultural e econômica da ação, especialmente para as famílias negras da cidade. Entretanto, é firme e enfática ao defender que ainda não foi feito metade, pois tudo que foi pautado ainda é sobre reparação e que a população negra ainda não exigiu, de fato, coisa alguma. Carol destaca que a pobreza, herança herdada por essa população, ainda é predominante nesses grupos em decorrência de um crime promovido no passado: "Nos Estados Unidos várias pessoas negras processaram o Estado e lá, quando houve abolição, eles tiveram direitos a pedaços de terras, aqui não. Isso é liberdade para quem? ”, argumenta. Mais uma vez, evidencia a necessidade de interlocução entre as pautas de raça e moradia, destacando que, pela primeira vez, Curitiba inseriu habitação no Plano de Promoção da Igualdade Racial - uma ação proposta por seu mandato.

Enquanto responde às perguntas, Carol apresenta trejeitos que - num primeiro momento - sinalizam um leve grau de timidez. Ao ser indagada, responde de pronto “tímida não! Eu sou introvertida.  Porém, mesmo assim, eu nunca me furto de falar”.  A crescente popularidade, a postura firme e os discursos articulados não almejam ocultar que há em sua natureza características de introversão. A razão - ela mesmo reconhece que, talvez, esteja na identidade e no jeito de ser curitibana. Filha de Curitiba, cidade que somente agora, após denunciar seus estereótipos, defende que está ressignificando a relação e aprendendo a amar. Essa percepção vem logo após o resultado da eleição que lhe trouxe a necessidade de mudança de endereço: Carol foi eleita, novamente, agora como a primeira mulher negra deputada federal pelo Paraná e, mais do que isso, foi a segunda candidata mais votada do campo progressista em sua cidade; escolhida por 130.654 pessoas, de diferentes idades e espalhadas por 392 municípios do Estado. “Para mim, havia um vazio: o da representação”, completa. Agora, de malas prontas para representar em Brasília, foi surpreendida por uma saudade antecipada de um lugar que já consegue olhar como seu território. “Parte de Curitiba entendeu essa denúncia e acolheu o que eu estava falando. Como filha da cidade, na verdade, o que eu queria era ser inserida. A minha maior dor era a exclusão”, revela. Para Carol, nenhuma pessoa negra, rica ou pobre, pode ser blindada do racismo e é inevitável que diversas situações sejam determinadas por esse contexto. Então, já que essa história é coletiva, esses territórios precisam refletir essa coletividade.

Reafirma que há em seus pares muita gana por viver, não só agora, desde que chegaram aqui acorrentados. A sua atuação vai em confronto com a ideia de democracia racial, narrativa que grupos conservadores buscam emplacar na cidade e, mais uma vez, sua reivindicação defende o direito à felicidade. “Somos super-representados na fome, na miséria. A gente não aguenta mais: temos sede de ser feliz”, afirma. Carol defende que a felicidade da população negra não foi filmada o suficiente e, por isso, opta em trabalhar a alegria, a estética negra, o acesso da população a bens e à cultura. Sorrir ao falar da satisfação que tem ao ver famílias negras em deslocamento social e alega que sua disputa por políticas públicas é para que esse sentimento contagie, de forma abrangente, esses núcleos.  Anseia pelo dia em que a presidência do país será conduzida por mulheres negras e à elas aproveita para direcionar um recado: “Vocês são bonitas. Vocês são potências! Ignorem tudo que tenta dizer ao contrário e vambora! Quem se libertou das correntes pode chegar em qualquer lugar: O futuro é nosso! ”.

 

Edição: Pedro Carrano