Distrito Federal

Cinema Negro

‘Cinema é a arte do ajuntamento’, afirma primeira diretora negra da América Latina

Cineasta Adélia Sampaio destaca a coragem necessária para romper barreiras de um mercado majoritariamente branco

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Adélia Sampaio esteve na UnB em novembro para prestigiar a V Mostra Competitiva de Cinema Negro que carrega no nome uma homenagem à cineasta - Jéssica Jerônimo

Adélia Sampaio, primeira mulher negra a dirigir um filme na América Latina, traz em seu semblante, duro e ao mesmo tempo delicado, a coragem. O conselho recebido da mãe, ‘pra cima do medo, coragem!’, a acompanhou durante toda a trajetória. Foram necessárias ousadia e bravura para enfrentar um mercado cinematográfico que repetidamente dizia não para mulheres, principalmente as negras. Contrariando os estereótipos racistas, que insistem em colocar a mulher preta em lugares de servidão, Adélia produziu obras de denúncia, com temas que permanecem muito atuais, abrindo caminhos para outras cineastas negras, como as que participaram da V Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio. 

“Eu fico muito feliz em perceber que as mulheres negras estão se juntando para realizar. Porque cinema é a arte do ajuntamento. Então, é necessário que as pessoas se colem, se juntem, criem núcleos. Não fiquem discutindo títulos. Faça. Faça e faça bem feito. E aí com certeza vai chegar. Vai chegar a vez das preta tudo filmar o que quiser. Eu pelo menos creio nisso”, conta a cineasta, em entrevista ao Brasil de Fato DF, quando esteve presente na Universidade de Brasília, no último dia de exibição da Mostra que carrega seu nome. 

“Amor Maldito”, produzido em 1984, obra responsável por dar visibilidade ao trabalho de Adélia, conta a história de um casal de lésbicas enfrentando uma sociedade hipócrita. O longa-metragem se destaca também por ter sido produzido em um sistema cooperativado, já que a Embrafilme se recusou a financiar a produção. “É preciso ter muita coragem. Eu posso dizer isso de cadeira, porque eu tive todas as coragens do mundo. Todo mundo dizia ‘não, não vai dar’, e eu dizia ‘vai dar!’”.

O trabalho de Adélia Sampaio é, sobretudo, um trabalho de denúncia. Em “AI-5: O Dia Que Não Existiu” (2001), por exemplo, a cineasta, em parceria com o diretor e jornalista Paulo Markun, conta a história, por muito tempo escondida, do dia que antecedeu a criação do Ato Institucional que inaugurou o período mais repressivo e sangrento da ditadura militar no Brasil. Por isso, Adélia se espanta quando, atualmente, recebe questionamentos de alguns jovens que não acreditam na existência do AI-5 ou negam os horrores da ditadura. 

Ao mesmo tempo, a diretora se diz emocionada ao ver auditórios lotados por jovens interessados em seus filmes, que fazem apontamentos inteligentes. “Eles perceberam pequenos detalhes do filme que às vezes passam despercebidos. Teve uma menina que levantou e disse assim ‘por que razão toda vez que vai fazer uma observação, o autor está olhando pra câmera?'. É denúncia, é uma forma da gente denunciar. Então, pra mim foi importante. Isso é cinema”.

Atualmente, a cineasta, que tem na humanística o norte de seu trabalho, confessa estar mais voltada aos temas do interior humano. “Agora eu estou muito preocupada com o interior. Fiz documentários, um é o” Olhar de Dentro”, que é quando você pára na sua vida e olha pra dentro. E o outro é o “Olhar da Geração dos anos 60”, que é a minha geração, que foi uma geração muito conturbada, que acabou sendo atropelada pela ditadura. Uma geração que pregava o amor livre e, de repente, teve esse caos”. 

Leia abaixo a íntegra da entrevista com Adélia Sampaio, uma mulher corajosa que, aos 78 anos, continua inspirando gerações.

 


V Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio / Jéssica Jerônimo

As temáticas apresentadas em seus filmes, mesmo aqueles realizados no começo da sua carreira, ainda se mostram muito atuais. Em Amor Maldito (1984), por exemplo, você retrata um casal de lésbicas enfrentando uma sociedade hipócrita, o que, apesar dos avanços na esfera da garantia de alguns direitos, ainda permanece muito atual, principalmente no cenário corrente brasileiro, em que testemunhamos uma forte onda conservadora. Como você se sente ao perceber que as questões retratadas por você continuam latentes em nossa sociedade?

São questões que abordei há 38 anos. Eu pensava que um dia eu ainda iria viver para não ver preconceito, não ver violência, não ver abuso de poder. Mas, verdadeiramente, isso continua, agora de uma forma muito violenta. A gente está vivendo um cotidiano de feminicídio, é uma coisa que está atacando mulher, homem, travesti, todo mundo. Vivemos no Brasil uma era de Bolsonaro, que é um homem dodói da cabeça, violento, doido, e que instigou essa energia negativa do ser humano, o que é muito sério. Então, para mim é muito gratificante quando… Há quatro meses atrás houve uma exibição no Rio do ‘Amor Maldito’, e me supreendeu, primeiro uma casa lotada, um cinema grande, com 99% de jovens, aí eu fiquei emocionada, porque esses jovens fizeram perguntas muito inteligentes. Eles perceberam pequenos detalhes do filme que às vezes passam despercebidos. Teve uma menina que levantou e disse assim ‘por que razão toda vez que vai fazer uma observação, o autor está olhando pra câmera?'. É denúncia, é uma forma da gente denunciar. Então, pra mim foi importante. Isso é cinema. Hoje em dia, eu volto a dizer, cinema é uma coisa da expressão, da emoção humana, da narrativa. Se não tiver um desses três elementos, não é cinema, é um monte de película colada, não emociona. 

Já em um debate que eu fui em Juiz de Fora, levantou uma menina. A gente estava falando do filme “Denúncia Vazia”, que está aberto disponível no YouTube. E ela perguntou ‘é verdade que isso existiu no Brasil’? E eu falei: ‘existiu, e ainda existe, de uma maneira ou de outra, ainda existe’. Então, essas denúncias que eu fiz, na hora em que eu partir, eu estou deixando aí, como a denúncia do AI-5, né? Que foi um documentário que eu tive que utilizar atores pra fazer a representação dos personagens porque não existia nenhuma foto, nenhum filme, nada. Mas é uma loucura uma geração perguntar se o AI-5 existiu. Ele veio a voga agora, com esse maluco do Bolsonaro.

Essa filmografia minha, eu vou seguir com ela, mas agora eu estou muito preocupada com o interior. Fiz documentários, um é o ‘Olhar de Dentro’, que é quando você pára na sua vida e olha pra dentro. E o outro é o ‘Olhar da Geração dos anos 60’, que é a minha geração, que foi uma geração muito conturbada, que acabou sendo atropelada pela ditadura. Uma geração que pregava o amor livre e, de repente, teve esse caos. 

Então, por exemplo, eu sobrevivi a Bolsonaro. Eu fico feliz, porque significa que alguma coisa vai caminhar. Eu até tinha conversado com meus dois filhos e a gente estava se organizando, caso ele ganhasse a eleição, eu iria embora do Brasil, mas ia mesmo! Eu não ia ficar num lugar desse. 

Eu até hoje aprendo com o cinema. Faz parte do aprendizado. Eu estou vivendo agora a era digital, que pra mim é uma loucura, mas estou sobrevivendo. 

O documentário a respeito do AI-5 é realmente muito importante e atual porque a gente está vivendo esse problema de negar a ditadura. Não foi feita uma política de memória concreta, o que faz com que as pessoas duvidem do passado. Nesse sentido, eu gostaria de saber o que te inspira, o que te motiva a produzir seus filmes?

O âmago da questão é o ser humano. Então, é primorosamente a humanística. Se não tiver humanidade, eu não quero fazer, eu não me animo a fazer, ou melhor, é capaz de eu não saber fazer. Isso é fundamental, eu seguir a minha trilha da humanística. Eu, por exemplo, ia fazer um documentário sobre um menino que era cantor de rap lá no Rio, e que acabou caindo da janela do prédio do hotel onde ele estava. Tinha uma namorada advogada, muito bonita. A história do menino me interessou demais. Mas eu esbarrei, primeiro na namorada, que se dizia esposa, e depois na mãe dele. Aí eu digo não, não quero. Eu posso ficcionar, sem falar o nome dele. Mas aí eu não quis, eu desisti de fazer. Foi quando eu parti pra expor o cotidiano da minha geração, que é os anos 60. O que nós fizemos? Queimamos sutiã, inventamos a pílula, várias coisas. É uma geração forte, uma geração de coragem. 

Agora falando um pouco mais desse cenário atual. Aqui na Mostra, por exemplo, temos contato com muitas cineastas negras, muitos trabalhos muito bem feitos, como você mesma falou. Mas pesquisas mostram que o cinema no Brasil ainda é majoritariamente produzido por homens brancos. Mulheres e homens pretos ainda são minoria nesse contexto. Como você enxerga o futuro do cinema nacional? 

É preciso ter muita coragem. Eu posso dizer isso de cadeira, porque eu tive todas as coragens do mundo. Todo mundo dizia ‘não, não vai dar’, e eu dizia ‘vai dar!’. Então, eu vivi violento racismo quando estava filmando em um prédio em Copacabana, e eu tinha um fotógrafo, que já faleceu, que também era negro. Aí nós descemos para respirar um pouco. Às vezes, você sai do set pra respirar. Quando a gente está voltando, o porteiro diz: ‘não, vocês têm que entrar pelo lado dos fundos. Preto, empregada’. E eu digo ‘não, não, a gente tá filmando’. E ele ‘não, não’. E aí, claro, depois a gente avisou pro dono do apartamento, que era emprestado, mas eu disse ‘não quero que vá punir o porteiro, mas tem que dizer pra ele verdades, né?”. Agora, não tem muito tempo, eu sofri um racismo violento, porque como eu pareço tudo menos cineasta, eu sofri um racismo horroroso em Porto Alegre. Eu fui convidada para inaugurar um cineclube com meu nome, e eu voltei feliz demais com a moçada toda, porque lá é pouco negro, né? Quando eu chego no aeroporto e vou passar, eu tenho pinos, aí apitou. Uma menininha jovem gritou: ‘vamo ali naquele quarto, tira a roupa, fica de quatro…’. E eu disse não, eu não vou fazer isso. E ela saiu e voltou com a polícia. Eu fui parar na delegacia do aeroporto. A minha advogada que é gaúcha estava em Porto Alegre. E meu filho, em Brasília, ligou para Benedita [da Silva] e disse ‘minha mãe sofreu um racismo sério’. E ela foi ao plenário e fez um discurso belíssimo sobre a questão do preconceito. Então, eu acho que sempre vai ser muito difícil, porque você sempre é confundida com a empregada doméstica. Não tem como. E eu até peguei isso como refrão, o cara olha pra mim e eu digo ‘não se preocupe, eu tenho cara de doméstica, mas eu faço cinema’. Eu fico muito feliz em perceber que as mulheres negras estão se juntando para realizar. Porque cinema é a arte do ajuntamento. Então, é necessário que as pessoas se colem, se juntem, criem núcleos. Não fiquem discutindo títulos. Faça. Faça e faça bem feito. E aí com certeza vai chegar. Vai chegar a vez das preta tudo filmar o que quiser. Eu pelo menos creio nisso. 

É o que nós todas queremos. A última pergunta é também em relação ao cenário atual. Nós passamos agora por 4 anos de grande desmonte no financiamento da arte e cultura, o que afetou o cinema brasileiro. Como você percebe esse cenário e projeta o futuro daqui pra frente? 

Eu encarei no passado o Collor de Melo, que destruiu o cinema. Até porque nós éramos mesmo contra ele. Então ele acabou com a Embrafilme, ele acabou com os subsídios. A gente tinha uma verba, que chamava Remessa de Lucro, ninguém sabe onde foi parar essa grana, e era muita grana. E a gente foi aos poucos tentando criar uma situação. Porque o cinema é muita união. A gente se reuniu para fortalecer. A coisa da dispersão é muito perigosa. É melhor caminhar em grupo, porque você fica mais forte. E eu acredito que o negro nasceu pra vencer. A minha mãe dizia uma frase linda: ‘pra cima do medo, coragem!’. Não tem outro remédio que não seja isso: pra encarar, a coragem. Então, eu acho que a única coisa que tem que fazer, não é criar coisas faraônicas, é fazer um filme simples. É mais fácil você contar uma história, de uma forma normal, sem fazer labueta, do que fazer labureta e se perder no contexto. Aí fica um filme frouxo. Parece que a pessoa não pensou o que ia fazer. Isso é fundamental. 

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Edição: Flávia Quirino