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Reexistências negras: Perfil de Iyagunã Adalzira

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"é possível supor que Iyagunã aspirava receber sorte para encarar um futuro cujo presente já lhe anunciava desafios" - Arte: Edna Thramm
Para a infância de uma criança pobre e negra, até hoje não existe referência natalina representativa

Encantamento e criticidade compõe a personalidade de Adalzira Maria Aparecida Iyagunã, uma anciã com pouco mais de oito décadas de existência e que, até os dez anos de idade aceitou que a magia do natal a inspirasse.

A data tem em si uma trincheira para ternuras e nesta brecha para o cuidado, certamente, os pedidos à famosa “fábrica dos sonhos” não se enquadrariam apenas ao momento  natalício, é possível supor que Iyagunã aspirava receber sorte para encarar  um futuro cujo presente já lhe anunciava desafios.

Yá - como carinhosamente é conhecida - cresceu em uma comunidade semelhante a um quilombo, no entanto, com apenas uma família de brancos: os patrões. Nessa fase, auxiliou ao pai no manejo dos cultivos e ajudou a mãe nas atividades como empregada doméstica da casa grande, sobre isso relembra: “A minha mãe era muito simples e sempre foi tratada como uma mulher de cor”.

Como quem inspeciona a memória, Iyagunã conta que em todo o natal surgiam boatos de que Papai Noel desceria pela chaminé para deixar os presentes. Ela, que acreditava devotamente, fazia a parte que lhe cabia ao deixar um pedido, mas apenas os filhos dos patrões eram correspondidos, o que a obrigava a encarar uma penosa frustração, ofertando a si mesma o privilégio da dúvida “Como Papai Noel não encontra a minha casa? por que ele não me visita?”. As razões foram compreendidas pouco tempo depois quando, além de descobrir a fábula, também captou a ausência de referências negras em torno da data a qual, até hoje, olha com certo fascínio.

Mas engana-se quem interpreta o episódio como ingenuidade, há nisso muito sobre a esperança, sentimento que conduziu os passos de uma mulher vocacionada à fé, cujo dom maior é a capacidade de crer sem ver.

Iyagunã passou a infância, e parte da juventude, nos trabalhos da lavoura de café e só aprendeu a “rabiscar” o nome aos 13 anos de idade, após reivindicar o que entendia ser seu por direito: o estudo - à época, ainda não garantido constitucionalmente. Com uma voz tranquila e em um tom inalterável, rir de si mesma ao contar que a primeira palavra que aprendeu a ler foi “delícia”, evidenciando a essência de uma mineira atraída por sabores culinários.

Na adolescência, encarou uma crise de autoestima, cenário recorrente na construção da identidade da mulher negra e travou um conflito bélico com o próprio cabelo, testou produtos para alisamento e até tornou-se adepta de perucas a fim de ter os fios ao balanço do vento, até então, restrito aos cabelos compridos e lisos. Teve insucesso, recuou e fez a paz com um crespo refletido no espelho. “A mídia sempre afirmou que cabelo bonito é aquele que balança, até o dia que entendi que não. Cabelo bonito é aquele que eu tenho”

A caminhada de Iyagunã contraria quem afirma que “não é possível sofrer com maturidade”. Ao custo de um alto preço emocional, ela se renova vertiginosamente diante da dor que, em sua vida, quase sempre, teve como raiz a hostilidade do racismo. Contra vontade, testemunhou perdas traumáticas de familiares negros. Sobre isso, evoca a lembrança da irmã que perdeu a batalha para uma diabete ao ser negligenciada pela equipe médica em um hospital no interior do Paraná. Por mera suposição, a diagnosticaram com parasitas e recomendaram vermífugos. “É como se toda doença de preto fosse lombriga”, afirma denunciando a estrutura sistêmica que dificulta o acesso à saúde à população negra através do racismo estrutural, institucional e interpessoal.

Na ditadura, já em Curitiba, enfrentou o desaparecimento do irmão mais velho a quem descreve como um negro de pele escura, corpo magro, rosto fino, alto, cabelo crespo e de personalidade inquieta cuja atitude era perguntante: uma audácia. Certo dia, saiu de casa para trabalhar e em seu lugar só retornaram manchetes de jornais com notícias do seu desaparecimento. A narrativa buscava emplacar uma imprudência ao afirmar que seu irmão havia se embriagado e embrenhado mata adentro do local em que os pertences foram encontrados. Chorou o luto sem corpo presente. Os dias foram, irreversivelmente, diferentes dali por diante. Iyagunã supunha o que teria acontecido.

“Meu irmão rebatia às afrontas da ditadura. Questionava! Já chegou em casa com canivete pendurado na pele. Além dele, outros jovens desapareceram e quando eram negros, ninguém dava atenção”.

Mesmo assim, fez um esforço e trocou o desespero pela esperança - sem perder a urgência. Recolheu os jornais, separou fotos do irmão e uniu-se aos grupos que buscavam pelos entes desaparecidos, perseguidos e torturados pela ditadura militar. De um lado a outro, procurava por autoridades e instâncias de denúncia que pudessem, no mínimo, oferecer votos de condolências - mas por vezes, nem isso encontrava. 

A ânsia por auxílio converteu-se em idas a necrotérios, hospitais, reconhecimento de corpos em diferentes ruas e nos mais variados horários, um verdadeiro garimpo de tragédias na busca por confirmar, ou não, a falência de uma existência. Até hoje, labuta diante da dor da inconclusão.

Não bastasse, ainda conheceu de perto o feminicídio ao presenciar a morte de uma tia. O desastre deixou sete crianças negras órfãs. Foram sete vezes um ventre roubado num único ato. O caminho do abrigo passou a ser o novo itinerário semanal de Iyagunã, que assumiu a responsabilidade afetiva com os pequenos desamparados. Após um acordo judicial, obteve a tutela das crianças e passou a exercer um papel maternal, por longos anos, na solidão de uma matriarca com tarefas maternas em carreira solo.

Educação como ponto de virada  

A mais difícil, segundo ela, foi garantir que todos tivessem acesso à educação. Iyagunã transmutou-se. A personalidade branda deu lugar ao que ela mesmo chama de “leoa” partindo sempre a caminho da Secretaria de Educação. “Foi difícil blindar todo esse contexto na criação deles. Foi difícil enfrentar o preconceito religioso. A educação precisa interagir com essas realidades. Precisa interagir com as vivências de pessoas negras.”

Estava com mais de 60 anos quando viu chegar a independência do filho mais novo, decidiu que poderia retornar aos estudos. Mesmo diante das fatalidades, havia conseguido concluir o ensino médio por meio da Educação para Jovens e Adultos (EJA) pouco antes de realizar a adoção, na época já com mais de trinta anos de idade.

Abraçou o desejo e definiu que faria uma graduação, escolheu o curso de Relações Internacionais e entre as motivações, queria entender as razões pelas quais o Brasil se submetia aos Estados Unidos e realizou a matrícula na Unibrasil, em Curitiba. Em sala, era constantemente submetida a questionamentos sobre as razões pelas quais estava ali. Inicialmente, até trajou-se de paciência para explicar que não dispôs de oportunidade nos anos anteriores e, da mesma forma, questionava: “Existe alguma lei que, por conta da idade, me proíba de estudar?”. Não se intimidava, retrucava a ideia de que estava na fase de repouso, entendia os incômodos como desprezo pela velhice, em posturas aguçadas também pelo racismo que renega a ideia de preto se construindo como intelectual.

“O curso de relações internacionais é muito próximo do direito. Um professor insistiu em dizer que me via no serviço social, mas eu disse que eu me via ali. Nada contra, mas eu sabia o lugar que eu queria estar’.

Iyagunã conta que começou a perceber a tirania do professor em questão, mesmo sendo aluna pagante como os demais. Ela relata que chegou a receber uma prova com uma nota maior riscada em 7,0 e, abaixo, uma pontuação bem inferior que a inicial. Como resultado teve a reprovação na disciplina. Um rastro premeditado da violência para enviar a mensagem de desafeto.

Ao relembrar esse episódio, sorri. O gesto parece contraditório, mas é justificado na sequência de sua fala: "Eu fui até o fim e terminei minha graduação. Tempos depois eu decidi que iria mais longe e ingressei no mestrado em tecnologia e sociedade na UTFPR”.   A decisão, que veio aos 72 anos de idade, rendeu uma pesquisa conectada com a sua fé e foi produto da dissertação “Templo religioso, natureza e os avanços tecnológicos: os saberes do Candomblé na contemporaneidade''.

Iyagunã parece ter moldado a alegria dando elasticidade ao termo, pois mesmo diante das dificuldades, tem no semblante a serenidade de quem sente que é feliz. Sorrir com sutileza, olha nos olhos com ternura. Dá atenção gratuita, oferece comida, café, água. Parece ter prazer em amparar os seus pares. Mas quem a ampara? responde a pergunta enquanto acaricia um pinscher que resmunga por sua atenção: “O que me ampara é a minha fé”.

Sentada, vestida de branco, com um lenço cobrindo os cabelos, observa seu terreiro e relembra que vem de família católica e desde muito jovem sentia uma espécie de  “chamado espiritual” para um trajeto novo em direção à fé “É algo que nasce com a gente”, afirma. Hoje, atua em um espaço próprio, com mais de 30 anos de existência e é sacerdotisa do Candomblé, religião afro-brasileira derivada de cultos tradicionais africanos. Diante da importante atuação, a mineira nascida em Guaxupé (MG), conquistou cidadania paranaense e em 2020, recebeu um título de cidadã honorária pela Câmara Municipal de Curitiba.

Em 2022, defendeu a tese “Professoras negras: gênero, raça, religiões de matriz africana e neopentecostais na educação pública” e foi notícia em jornais de grande circulação, até em veículos internacionais, cujas manchetes uniam na mesma frase termos relacionados à umbanda, à terceira idade e à titulação: “Yalorixá Iyagunã Dalzira defende tese de doutorado em educação pela UFPR aos 81 anos”.

Iyagunã revela que também ficou surpreendida com tamanha repercussão, reconhece a importância dos vários papéis que exerce e defende que a educação foi seu ponto de virada, seu maior alicerce. Porém, destaca que é necessário construir ações e políticas públicas mais efetivas para tirar a população negra da invisibilidade, inclusive, na própria construção de intelectualidade. 

É contrária à ideia de que religião não se discute e defende que a ausência de debates sobre questões como essas é que aguçam movimentos como escola sem partido, por exemplo. “É Deus acima de tudo e não sei o quê e daí queima o terreiro em nome de Deus, espanca pai de santo, mata artista, muda as escolas, destrói a sociedade em nome de Deus. Vamos só assistir isso até quando?” Há outro ponto que recebe sua atenção: a discriminação etária e os reflexos na produção do saber. Para ela, se os espaços acadêmicos já não estão preparados para os estudantes jovens negros, estão menos ainda para os que são idosos. “A estrutura da academia não foi pensada para terceira idade.  Porém, os velhos não deixam de pensar e muito menos de produzir. Esse lugar também é nosso, por direito”. Iyagunã acredita ser um desperdício colocar a população idosa no “cabide”, especialmente em um momento de empobrecimento, crescimento da fome, aumento do desemprego e de questões relacionadas à saúde mental.

Ela defende que todos os setores deveriam pensar em soluções em conjunto, já que há pessoas de todos os grupos entre os que estão vulnerabilizados. “Mudar a sociedade é um compromisso de todo mundo, tenha 80, 90, 100 anos. É preciso se virar e fazer alguma coisa e nós queremos fazer, mas precisamos saber que temos espaço”. 

A doutora em educação, mãe de santo e ativista do movimento negro reafirma que sim, é possível haver indignação como fundamento da esperança e diante dos tantos sonhos que tem para a sociedade que ajuda construir e que ainda deseja ver, deixa no ar um desejo:

 

“Que as pessoas compreendam uma verdade básica: os sonhos não envelhecem". Sorri e agradece como quem sabe que é a prova viva disso.

Edição: Giorgia Prates e Pedro Carrano