É notável como até mesmo analistas de esquerda caíram na falta de contexto
1. Pedro Castillo foi eleito a partir do trabalho de base das Rondas Camponesas, que são comunidades camponesas, organizadas com jurisdição própria e autodefesa. O partido Peru Libre apresentava proposta inicial de um programa de reformas avançado, a partir de um mapeamento correto da realidade peruana, profundamente desigual. Desconhecido pela mídia, o professor rural havia se destacado nas greves da categoria e, sem qualquer trabalho em redes sociais, chegou ao governo a partir de forte trabalho social das Rondas Camponesas.
2. Nas eleições de julho de 2021, Castillo conseguiu avançar ao segundo turno em um cenário fragmentado. Já no segundo turno, contra a extremista de direita Keyko Fujimori, teve que fazer as concessões. A vitória eleitoral apertada de Castillo sobre Fujimori, filha do aspirante a ditador, Alberto Fujimori, por 44.080 votos, acentuou o desgaste que já era forte antes do resultado das urnas. O que se viu por parte de mídia empresarial, oposição e elite peruana foi deslegitimar o resultado eleitoral, desgastar o novo governo já antes do seu início.
3. Uma vez no governo, Castillo encontrou o que já se esperava: um congresso que havia derrubado dois presidentes em dois anos, uma conjuntura de crise econômica e social com a pandemia, e mecanismos particulares de amarras institucionais, como submeter a inicialmente a composição do ministério do governo de Castillo à aprovação do Congresso.
4. Desde o início, Castillo fez a opção por conceder a todo custo. Não ativou a bandeira da Assembleia Constituinte que havia surgido anteriormente nas ruas, nos protestos anteriores à eleição; tirou quadros da esquerda para atender uma composição liberal à frente da economia; afastou-se do partido Peru Libre. Com medo de mais isolamento e de forma questionável, fez um aceno simpático ao governo Bolsonaro. O problema é que, quanto mais cedia, mais os golpistas exigiam, até chegar na terceira tentativa de deposição e golpe, agora consumada.
5. Diante da intransigência da direita, o governo flexibilizou e perdeu a orientação mínima, retirando quadros da esquerda taxados como “terroristas” pela mídia e escolhendo nomes da direita, do campo conservador e economistas neoliberais para composição do governo. O início do governo já trazia essa contradição latente entre o executivo com as forças armadas, mídia, congresso e elite peruana – situação comum que marcou outros golpes recentes na América Latina. Castillo já iniciava também o desgaste com as forças armadas. Uma vez que o setor da Marinha ficou descontente com declarações do ministro de relações exteriores do país, Héctor Béjar, sociólogo, ex-guerrilheiro e militante histórico, a apenas 19 dias no cargo. Perda que analistas consideram importante.
6. O país herdado por Castillo é resultado de 40 anos de aplicação do modelo neoliberal no Peru. A esquerda foi massacrada pelo governo de Alberto Fujimori, que deixou o legado da Constituição de 93. Foi também deslegitimada pelos equívocos da organização Sendero Luminoso. Possuía quadros consistentes, um histórico forte do Partido Comunista Peruano, desde Mariátegui, e forte presença no país nos anos 70 e 80, mas se deparou com a aplicação do modelo neoliberal, aplicado de forma autoritária por Fujimori. O Peru se tornou um dos portos seguros do modelo aplicado pelos EUA, com Tratados de Livre Comércio e tentativa de desestabilizar o governo bolivariano na Venezuela, por meio do famigerado “Grupo de Lima”. A aplicação do programa neoliberal se deu com Tratado de Livre Comércio com os EUA e mais 20 diferentes acordos com outros países.
7. Ao lado do “uribismo” na Colômbia e do “priísmo” no México, foram as principais correias de transmissão do governo dos EUA no continente nos anos 90 e 2000. Certamente, como se vê, uma influência que o imperialismo estadunidense não poderia perder. O governo de Ollanta Humala, em 2008, militar que acenava ao progressismo, já havia enfrentado limites parecidos aos de Castillo, entre o discurso e a prática possível como governo.
8. Em vinte anos, a exploração das transnacionais da mineração garantiu números abstratos e ilusórios de crescimento da economia, e manteve o povo peruano e os trabalhadores na miséria. Além disso, as transnacionais do ramo ficam com até 80% dos lucros na extração – problema semelhante ao que a Bolívia vivia antes da chegada do MAS ao governo (2006). É possível ler o “risco Castillo” em artigos e análises de agências financeiras internacionais ao longo desse ano. Não há no país um patamar de leis trabalhistas consistente. O número de analfabetos é de 2,7 milhões, em uma população de 32,5 milhões de pessoas, sendo que 84% entre as vítimas de analfabetismo são mulheres – como informava o programa enterrado do Peru Libre.
9. O Peru é então um país massacrado por décadas de política neoliberal. Na pandemia de covid-19, alcançou a maior taxa média de mortalidade do mundo. Castillo foi expressão do anseio popular por mudanças. No entanto, o preconceito de classe social e a visão elitista presente no golpe dado pelo congresso peruano é evidente, com a “declaração de incapacidade moral do presidente” na deposição vista ontem (7).
10. Amarrados a uma fotografia de apenas um dia de notícias sobre o país, é notável como até mesmo analistas de esquerda caíram na falta de contexto, de análise aprofundada e de verificar as necessidades sociais para alardear o “golpe de Pedro Castillo”, olhando apenas a aparência institucional do fato e não as demandas sociais concretas. As questões relevantes são: qual a posição da classe trabalhadora e como foi a relação de convocatória e educação política por parte de Castillo neste um ano de pressão das elites? Qual foi o espaço que teve para cumprir o programa que o elegeu? Como se dá o combate e a pressão de agências internacionais de mídia, inclusive algumas colocadas como progressistas? São questões centrais. O resto são ações desesperadas e tentativas de melancólicos heroísmos.
11. É urgente que as organizações de esquerda no continente retomem o debate estratégico, a crítica ao modelo neoliberal, e recuperem a educação popular e o debate ideológico, para não ficar reféns de um debate focado apenas na forma institucional que, no fundo, responde a um conteúdo neoliberal e autoritário. Esse parece ser, infelizmente, o futuro do governo da vice Dina Boluarte.
A exemplo do caso boliviano, torcemos para que a resistência do povo peruano não permita nova consolidação do modelo neoliberal no país. A cada queda de governo progressista que assistimos, porém, sempre fica uma pergunta amarga na boca: quem vai defendê-lo e o que fez para ser defendido?
Edição: Lucas Botelho