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Coluna

Um abraço profundo em nossos mortos

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Mas agora temos também uma cicatriz coletiva como herança - Giorgia Prates
Somos hoje também um enorme coletivo de ausências

Talvez o dia dos mortos nunca mais seja o mesmo depois da pandemia de covid-19.
Talvez nunca mais seja o mesmo em todos os países. Porém, no Brasil em particular, ele vem carregado da sensação de que não precisávamos ter perdido tantos nossos nesses três anos. Por indiferença, por descaso, por corrupção do atual governo derrotado, por negação absurda à ciência, por lucro, por genocídio, por soberba do poder.
Agora, cada um de nós, ao menos aqueles que ainda guardam algo de empatia batendo no peito, associam talvez essa data com alguma pessoa próxima que se foi. Eu penso em dona Olga, da associação de moradores do Sabará, uma senhora que ajudou centenas de pessoas a conquistar sua própria moradia. Uma amiga e um abraço confortável de muito tempo. Tenho certeza que a maioria das pessoas a partir de agora trará esses vínculos, alguns inclusive muito mais próximos do que as pessoas que eu perdi.
Me recordo quando atravessei a América Central, território marcado pela luta político-militar nos anos 80, que levou à época mais de meio milhão de mortos no pequeno continente. Mesmo décadas mais tarde, era comum, no relato de qualquer pessoa que eu escutava, a recordação de um parente ou amigo perdido na guerra. Fiquei muito amigo do feirante Renan, personagem que encarnava toda uma geração: foi guerrilheiro aos 13 anos, comandante da guerrilha aos 20 e, na época, trazia dois filhos adotivos, certamente de alguma pessoa próxima que havia tombado na guerra.
Nosso vínculo com os mortos é profundo, desde os gregos e em tantas culturas, expressam o respeito à dialética entre vida e morte. A banalização disso promovida pelo governo derrotado pela democracia, é uma marca e uma derrota que carregaremos para sempre.
Os mortos nos habitam, de alguma maneira também nos guiam, nossas decisões e caminhos, conscientes e inconscientes. O legado que deixam em vida, as palavras, os gestos, seguem nos pressionando e fazendo parte de nós. É também, muitas vezes, uma roupagem que nos assombra, mas que também emprestamos para nos proteger e fortalecer. Mas agora temos também uma cicatriz coletiva como herança, dos quase 700 mil mortos perdidos. É comum que a vida siga e, como forma de defesa, tenhamos um certo esquecimento, parecido com um trauma, necessário para dar sequência e conseguir olhar para a frente.
Mas o fato é que experimentamos o genocídio do neofascismo de Bolsonaro. Nunca mais seremos os mesmos. Somos hoje também um enorme coletivo de ausências.
E o melhor que podemos fazer por nossos mortos é abraçá-los profundamente, seguir em resistência, e não deixar que a indiferença e chacina a partir de um governo nunca mais se repitam.

É nosso compromisso mais profundo.

Edição: Lia Bianchini