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REFLEXÕES E EMPATIA

Opinião. Abraço ao cavalo

O acontecimento da simpatia é uma lembrança de nossa condição humana

Curitiba (PR) |
O acontecimento da simpatia é uma lembrança de nossa condição humana - Giorgia Prates

Foi Adam Smith quem criou a ideia de mão invisível do mercado. Porém, para se compreender Smith é preciso ir mais a fundo em suas obras. O autor divide a evolução do mercado em dois pontos muito importantes: material e moral. O mercado, o capitalismo, levaria a uma evolução material, aumento da produtividade, entretanto, Smith nos alerta para a deterioração moral que tal modelo traria.

Há dois caminhos dentro do sistema capitalista. O do capitalista, o daquele que pretende ser dono, empresário, patrão, e precisa entrar em uma competição injusta que lhe dirá que o esforço é pai do resultado afim de que ele ignore que a única regra é a glorificação dos vencedores sem olhar o método.

Sucesso é sucesso, mesmo que conseguido às custas de trabalho escravo. Fracasso é fracasso, mesmo que lutando para manter funcionários durante uma pandemia. O caminho do trabalhador é o da alienação e do incômodo não identificado.

O trabalho ou se repete ou se torna algo sem razão para o trabalhador que não seja a sobrevivência, a manutenção do lugar onde se está, e até essa garantia é contingente. O incômodo está lá, mas não se sabe de onde vem. A pequena janela para a vitória e os espasmos de dopamina são o suficiente para evitar o grito revolucionário em outro lugar que não seja o da tela.

Smith acreditava que moralmente o capitalismo seria uma tragédia. O sistema nos empurraria a uma desumanização que de um lado nos brutalizaria em busca da vitória e de outro nos alienaria pela sobrevivência. Não posso lutar contra o sistema sem o risco de perder até o pouco que tenho. Em vez de greve, silêncio. O neoliberalismo seria o paroxismo da dicotomia corpo e alma, na qual a alma é não humana e tudo que é humano é fraco e sujo. Seríamos destituídos do acontecimento. Aquele de que trata Zizek, que seria o momento do que não está programado nem esperado. O sexo com amor. A derrota vitoriosa. A simpatia Smithiana.

O acontecimento da simpatia é uma lembrança de nossa condição humana, delicada, contingente, trágica. Lembrança viva de momentos que são gostosos de superar e desafiar, mas que cedo ou tarde nos alcançarão para nos lembrar de que somos humanos, demasiado humanos.

É no momento da tragédia, de doença, de morte que somos lembrados de nossa falibilidade e limitações. É no velório que os irmãos se abraçam e se perdoam. É na enchente que nos juntamos a corrente que carrega o sofá do vizinho que faz festas barulhentas até tarde da noite. É a partir do diagnóstico da doença que se vê com bons olhos a visita de amigos e parentes no meio da semana. O acontecimento nos volta ao corpo, nos força a humanidade quando dela nos esquecemos.

Socialismo é ter por base tal simpatia. É não esquecer da parte humana que nos cabe num todo humano que insiste em se esquecer se si mesmo. Daí nasce o perdão, a aceitação, o abrir as portas ao que nos é estranho. Não digo mais que é pecado, digo apenas que ainda não entendo, que sou humano.

Nietzsche foi vontade de potência em vida e obra. Alguém que errava pelo excesso de querer, mas não temia admitir-se errado. A vida se mistura à obra e a complementa por vezes. Conta-se que um dia Nietzsche viu um cavalo tombar devido ao cansaço.

O filósofo era uma pessoa reclusa, sua ousadia às vezes parecia desconsiderar as emoções, mas naquele dia ele escreveu um parágrafo importante. Ao ver o cavalo tombar, Nietzsche se ajoelhou e, com lágrimas nos olhos, abraçou aquele pobre animal. Um acontecimento. O reconhecimento das limitações de toda uma espécie que apesar de toda a sua inteligência colocava um outro animal na condição de extenuação.

O reconhecimento da miséria compartilhada por todos os que dividem esse planeta. O abraço que só quer confortar sem muitas respostas. O alguém que não se vê como acima ou melhor do que o outro alguém.

Como será possível viver em um sistema com tantas afirmações sem apagar a parte humana em nós que é a dúvida?

Edição: Pedro Carrano