Paraná

POLÍTICA DE EXECUÇÃO

Martel Del Colle: "a polícia mata como um método de manutenção de poder"

"A morte é uma forma de fidelizar o policial à estrutura policial. A pessoa morta não tem importância", critica PM

Curitiba (PR) |
"Não há policial militar com “coragem” para entrar num apartamento por lá sem mandado. Mas na favela a coragem cresce e a prisão acontece", afirma. Foto: - Vanda Moraes

Eu poderia começar o texto perguntando se a polícia militar executa pessoas ou não, mas acho que essa discussão seria desnecessária. Desnecessária porque não estamos discutindo isso nem nos estudos de segurança pública e nem na sociedade.

A sociedade sabe que a polícia executa e, na verdade, em alguns casos tem achado essa atitude boa. A defesa repetida de ações truculentas de policiais feitas por meio de filmes e dos jornais de meio-dia gerou um clima de normalização dessa violência.

Em todo o país pipocam casos de policiais que vão à júri em casos nítidos de execução e são absolvidos porque a população acredita que as coisas têm de ser feitas assim mesmo.

Então vamos direto à questão: por que a polícia militar executa pessoas? A primeira é a tela de fundo feita de biologia malfeita e antropologia malfeita. Biologia malfeita porque se acredita que existem pessoas que são criminosas por natureza. Não há evidências para esse tipo de afirmação, mas é assim que a subcultura policial educa e o policial começa a ver que mais pessoas morrem em favelas, assim como mais pessoas cometem crimes em favelas.

Logo, ele deduz que esse pensamento está certo, chegando ao paroxismo de comemorar a morte de uma criança ou adolescente nessas comunidades porque assim um bandido a menos chegaria à fase adulta. Ele só não percebe que mais pessoas morrem em favelas porque a polícia só executa na favela. Também não percebe que há mais crimes na favela porque a polícia só patrulha na favela e criminaliza coisas que não são criminalizadas em outros lugares. Ninguém será preso traficando dentro do seu apartamento no centro.

Não há policial militar com “coragem” para entrar num apartamento por lá sem mandado. Mas na favela a coragem cresce e a prisão acontece. Aí ele diz que a favela é violenta por causa das drogas, mas ele nunca parou para pensar que no centro as drogas não causam a mesma violência e nem causam essa violência para os policiais que consomem drogas para aguentar o turno de 12h. Ele também não percebe as violências e injustiças sofridas e que levam as reações nas comunidades pobres.

A antropologia malfeita é uma mistura de Hobbes e Locke com esteroides. Eu chamaria de Brasil Paralelismo cultural. É a ideia de que a violência policial é necessária porque o homem é agressivo por natureza e a polícia serviria para corrigir o estado de natureza do homem. Novamente, as evidências vão no caminho contrário e mostram que as sociedades imperiais e estatais são mais violentas que as sociedades ameríndias, por exemplo.

Na visão “Brasil paralelista” os policiais seriam os cuidadores de uma gaiola de animais enlouquecidos que matariam uns aos outros a qualquer momento. Mas é curioso ver que o número de mortes causados por policiares é difícil de superar por outros grupos. Claro que essa visão não considera que todos sejam iguais, os mais agressivos “estariam nas favelas justamente por não conseguirem se sociabilizar corretamente e os ricos seriam os humanos superiores que se afastaram melhor do estado de natureza”. Aí também vem um pouquinho do íntimo do policial. Depois de humilhado no curso de formação, aquele policial que veio da favela se vê como alguém que não é como aqueles que ainda estão na comunidade. Ele é superior e não faz as coisas que eles fazem.

A segunda questão é o teste de fidelidade e o pertencimento. Perceba que sempre que ocorre uma morte, um número grande de policiais vai até o local. Obviamente, uma ocorrência de troca de tiros precisa de apoio, mas a marcha fúnebre continua bem depois da necessidade. A morte é uma forma de fidelizar o policial a estrutura policial. A pessoa morta não tem importância. Ela só tem importância como mecanismo para testar se os novos policiais aceitam ficar do lado da polícia ou do lado da sociedade. O poder da polícia vem pela capacidade de realizar a violência. Quanto mais livre a violência, mais poder a polícia tem. Se a polícia puder matar a qualquer um, então quem poderá mandar na polícia? Essa briga tem movimentos favoráveis e contrários. Por isso a polícia oferece o furo de notícia em troca de jornalistas que autorizem as execuções e oferece o título de macho aos juízes que absolvem execuções.

Assim, o policial que mata atesta que pertence a corporação e os policiais que assistem e corroboram também. Os que não fazem esse papel são vistos como traidores ou policiais frouxos. Obviamente, no meio de toda essa confusão, alguns policiais descobrem que podem usar a infantilidade das polícias para seus próprios negócios. Surgem assim os grupos de extermínio, as milícias. Portanto, a polícia não mata porque acredita que matar mudará algo, mas mata porque assim ela mantém o seu poder de matar e tem força para negociar. Toda a ideia de fazer um país melhor, combater o crime são mentiras que contam para o recruta para que ele aceite melhor abandonar seus valores pelos novos valores que a corporação deseja para ele.

A polícia é uma força a parte, um campo em separado, que busca a sua legitimidade. A guerra às drogas surgiu nos EUA como uma forma de legitimar a existência da polícia e a mesma estratégia foi adotada aqui. A polícia é um órgão a parte e que serve a si mesma.

Nessa luta por sobrevivência, ela precisa negociar com outras áreas, aceitar ordens de um governador, agradar um jornalista, gerar notícias, mas também precisa formar fiéis que mantenham sua ideologia. A morte é a porta de entrada dessa ideologia. Muitos policiais se encontram em uma situação bastante complicada porque eles matam sem saber o que realmente estão fazendo e são colocados em uma situação em que sua única saída é manter a mentira se não quiserem ser presos. Outros matam e se prendem a um grupo de corruptos que usarão a aliança da morte para continuar cometendo crimes.

Alguns estudos indicam que a polícia não segue a lei, já que como monopolista da violência, a restrição da lei seria uma restrição do seu poder. Logo, a polícia estaria numa constante luta por expansão de poder em que descumprir a lei seria uma forma de conquista.

Alguns poderes tentariam restringir seu poder e ela usaria uma estratégia de coerção e agrado. Coage o judiciário e o executivo com perda de proteção e um delay do cumprimento de ordens. Agrada dando o título de macho e patriota, além de garantir que aquele que agrada não estará no grupo que morre, inclusive ajudando a responsabilizar policiais que não seguem essas diretrizes.

Respondendo à pergunta: a polícia mata como um método de manutenção de poder. Não há razão para a segurança e a polícia não considera importante a segurança, talvez nem seja a função dela considerar. A polícia não é cobrada pela piora da segurança, se o crime piora a culpa não cai na polícia. Cai no povo, na esquerda. Então por que ela se preocuparia com os índices? No máximo para uma promoção de um oficial, talvez. No sistema burguês a polícia é um sistema de controle que tem como ferramenta a violência. O crime é uma desculpa para um método, a polícia pode decidir se age em um crime ou não, se ela fiscaliza um crime em determinado lugar ou não.

Ela não tem mecanismos para pensar em segurança pública ou entender os problemas sociais que geram. A polícia seria uma empresa pública cuja função é ser violenta quando precisar. Se precisamos dessa empresa ou não é algo a se pensar. Talvez precisemos, mas com outras características.

O fato é que a polícia também está perdida por pedirmos dela mais do que ela é preparada para fazer. Policiais, geralmente, odeiam ter de negociar, odeiam atender ocorrências de som alto, odeiam ter de ir a um lugar para resolver um problema doméstico, que não seja com a violência que eles são preparados para executar. Talvez todos ficariam felizes se a polícia só saísse para fazer aquilo que sabe fazer e outros órgãos entrassem para fazer as outras partes. Isso não isenta a polícia de responder por suas ações, mas o resultado da polícia já é esperado quando se forma policiais dentro desse sistema.

E se você quer saber qual é o tamanho do problema, pense que geralmente um campo começa a procurar mais campos para expandir seus poderes quando os campos de disputa já estão absorvidos. Nessa eleição o número de policiais se candidatando para expandir o poder da polícia sobre outros órgãos é grande. Dificilmente um policial será responsabilizado por matar aqueles que ele tem autorização para matar.

Edição: Pedro Carrano